As questões atinentes ao dever de indenizar têm sido objeto de uma série de estudos nos últimos tempos, com uma plêiade de grandes juristas dedicando seus esforços para entender e desenvolver um tema tão relevante no nosso Direito, cabendo-nos o mister de contribuir para essa árdua tarefa. Nessa empreitada temos tecido algumas considerações vinculando as questões indenizatórias com o árido mundo do Direito das Sucessões e, mais especificamente, com a figura da colação e sonegados, objeto de uma ampla pesquisa que culminou na elaboração da obra “Sucessões. Colação e Sonegados”, lançada no presente ano.
Um dos aspectos que nos toca nesse trabalho alicerça-se em algumas das consequências do não colacionar (ou mais especificamente, do não retorno para a sucessão do que se adiantou) para as relações jurídicas, passando por uma compreensão do instituto que culmina num giro importante para a discussão do Direito das Sucessões. Para tanto partimos da necessidade de superar entendimentos jurídicos construídos ainda sob a vigência do Código Civil de 1916 e que seguem sendo repetidos mesmo com uma alteração no núcleo da questão no atual texto legal.
Atesto, de plano, que o entendimento aqui exposto quanto aos efeitos da colação e compreensão do art. 544 do CC/02 não é o adotado atualmente pela doutrina ou jurisprudência, contudo sustentamos a necessidade de que a discussão seja posta e considerada ante a sua relevância e impactos práticos.
De início é preponderante salientar que, diferentemente do que estava consignado no art. 1.171 do Código Civil de 1916, a legislação vigente ao discorrer sobre a doação realizada em favor de descendentes não mais a trata como um adiantamento da legítima, mas sim como “adiantamento do que lhes cabe por herança” nos temos do CC/02 (art. 544). Ao nosso ver é manifesta a distinção existente entre se afirmar que a doação nessa circunstância há de ser compreendida como uma antecipação de herança e não mais de legítima, fato esse que obrigatoriamente tem que estender seus reflexos por todo o nosso sistema sucessório, causando um profundo impacto na compreensão da colação como um todo.
Ainda que o corriqueiro seja que o art. 544 do CC/02 apenas seja lembrado para se falar em colação e que não se questione que esta tenha por objetivo igualação das legítimas é indiscutível que tal questão há de ser precedida pela realidade que circunda a doação que tenha sido realizada a descendentes e cônjuges, nos termos do referido artigo, que, com sua redação, determina que o objeto da liberalidade praticada há de ser entendido como uma antecipação do que o herdeiro efetivamente viria a ter direito em decorrência do falecimento do doador, mas não mais sob o selo da legítima1.
Assim é imprescindível que “antes de que se possa pensar em discutir a colação em si é necessário se verificar se o que se adiantou em razão da doação corresponde efetivamente ao que o herdeiro teria direito a esse título”2, isso porque se a liberalidade praticada, nos termos do art. 544 do CC/02, foi o recebimento prévio do que se teria direito por herança é imperioso se aferir se tal herança efetivamente existiria quando do falecimento do doador, bem como a forma que seria partilhada e o montante que cada herdeiro teria o direito de receber.
Nesse contexto, podemos sustentar que caso os bens do falecido mostrem-se insuficientes para a satisfação de todos os seus débitos torna-se plausível que aquele credor que não viu a obrigação adimplida pelo de cujus possa suscitar o questionamento acerca da ocorrência de algum “adiantamento de herança”, vez que não se pode “discutir antecipação se sua condicionante inerente não se efetiva da forma prevista, [assim] o que se recebeu de maneira prévia é indevido por não corresponder o que se adiantou”3.
Reitere-se que desde o início da vigência do atual CC/02 não há mais que se falar em adiantamento de legítima mas sim de herança, e, como tal, só é admissível qualquer sorte de distribuição de ativos do falecido após a satisfação dos seus débitos, já que, como bem salienta o art. 1.997, “a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido”.
Ao se consignar que a doação para descendente não mais haverá de ser considerada uma antecipação de legítima não se pode continuar a afirmar que o retorno do objeto da doação para o pagamento de dívidas do falecido é irrelevante já que há de retornar para o relictum e não mais para a legítima. Com a nova construção para o tema trazida no art. 544 do CC/02 entendemos não mais ser válida a concepção de Nelson Pinto Ferreira que se opunha à possibilidade de que o credor do falecido viesse a ter qualquer interesse nos bens a serem colacionados ainda que seus débitos superassem seu patrimônio ativo4.
Consignamos aqui de forma clara que em nenhum momento ignoramos o disposto no art. 1.847 e no parágrafo único do art. 2.002 do CC/02 que asseveram que os bens colacionados haveriam de ser acrescidos à legítima e que os bens colacionados não ensejariam em qualquer aumento da parte disponível. Apenas sustentamos que tais dispositivos se mostram conflitantes com o preconizado no art. 544 do CC/02 e que, por ser a doação ato que precede a sucessão, haveria, por lógica, que prevalecer o entendimento ali indicado de que a doação é adiantamento de herança e não legitima, como consideram os arts. 1.847 e 2.0025.
Assim, ainda que se possa afirmar que ao credor do falecido não importa a colação (já que a igualação do que os herdeiros necessários receberão em nada lhe toca) é indubitável que é detentor de legítimo interesse relativo à existência de um adiantamento da herança, pois se houve alguma doação realizada pelo falecido a algum herdeiro descrito no art. 544 do CC/02 é manifesto que a quitação de suas dívidas há de preceder a qualquer questionamento envolvendo a legítima6.
Tal concepção traz desdobramentos importantes até mesmo para a figura da colação que, em que pese objetivar a igualação das legítimas, tem como sua consequência prática mais evidente a consideração do que foi antecipado da herança na sucessão. Dessa maneira é de se entender que a discricionariedade que caracteriza a possibilidade de que se exija que o coerdeiro colacione acaba sendo mitigada ao se constatar que o não retorno do que se antecipou não atinge exclusivamente os herdeiros necessários, mesmo que não esteja agindo em conluio com os demais herdeiros, já que pode ensejar que credores do falecido não tenham a satisfação de seus créditos7.
Segundo o entendimento consolidado sob a égide do CC/02 anterior inexistiria ao credor qualquer sorte de prejuízo face a inércia do herdeiro que não exigisse a colação dos demais (já que a restituição do bem à discussão sucessória já se daria em sede de legítima), o que há de ser interpretado de forma diversa ante ao texto legal vigente, havendo o efetivo interesse quanto ao retorno do que se adiantou para a herança bruta, sendo de se compreender que o que se antecipou, ao menos sob uma perspectiva obrigacional, ainda há de ser visto como integrante do patrimônio do falecido e responsável pela satisfação de suas dívidas8.
A fim de demonstrar a mesma perspectiva por um outro viés é de se considerar que em tendo ocorrido a colação seria possível se afirmar que os demais herdeiros experimentariam um acréscimo no que receberiam da sucessão do falecido à guisa de herança, fato que poderia influenciar na satisfação de créditos daquele credor que viesse a demandar o referido coerdeiro, considerando que teria ocorrido um acréscimo nas forças da herança por ele recebida e que seriam, portanto, responsáveis pelo pagamento das dívidas do falecido, nos termos do art. 1.792 do CC/029. Pontua-se, assim, que a não colação pode vir a caracterizar uma redução no montante que o herdeiro se responsabiliza quando aos débitos do falecido que foram sub-rogados com a sucessão.
Nesse mesmo diapasão seria possível consignar a situação vivenciada pelo credor do herdeiro do falecido que ao não pleitear que se faça a colação não terá o acréscimo patrimonial que tal conferência iria propiciar, o que afetará a possibilidade de que venha a conseguir saldar suas próprias dívidas, em uma evidente situação de fraude contra credores, com a não exigência da colação podendo ser entendida como uma transmissão gratuita (art. 158 do CC/02).
Ciente de que a previsão da colação prevista na lei destina-se à equiparação das legítimas é de se entender que o credor do falecido não tem legitimidade para exigir que a conferência seja realizada, contudo é evidente que permitir que o herdeiro mantenha consigo montante que deveria ser utilizado para a satisfação das dívidas do falecido enseja claramente uma hipótese de enriquecimento sem causa, expressamente vedado no art. 884 do CC/02.
A fim de buscar minorar as críticas que possam ser dirigidas ao pensamento aqui apresentado, não entendemos que a solução explicitada coloca em risco a segurança jurídica acerca da doação realizada por considerarmos de direito a possibilidade de que o doador houvesse expressamente afastado a incidência do disposto no art. 544 do CC/02 quando da realização da liberalidade, por sustentarmos que o disposto no referido artigo “tem natureza supletiva, impondo-se apenas quando da omissão do doador”10.
Somos do entendimento de que não se trata apenas da possibilidade de que o doador venha a determinar que a doação seja excluída da legítima11 ou que seja afastado o dever de colacionar, mas sim que o doador tem a possibilidade de, valendo-se de sua autonomia, determinar expressamente que a doação que está a realizar não encerra qualquer relação com uma futura questão sucessória.
Ficando demonstrado que o herdeiro foi premiado por uma situação em que valores oriundos da herança lhe foram atribuídos, remanescendo em aberto dívidas do falecido, é de se considerar a possibilidade de que o credor venha a pleitear que tal benefício seja afastado, exigindo que o enriquecimento sem causa proporcionado ao herdeiro seja atacado, com a indenização em seu favor do montante equivalente à herança recebida que deveria ter sido usada para a satisfação das obrigações do falecido.
Tal solução lastreada no art. 884 do CC/02 se mostra hoje extremamente relevante ao se ponderar que além do credor do falecido não poder manejar o mecanismo de exigir que os herdeiros colacionem tem se colocado de forma recorrente que ele não teria como pleitear, em sede sucessória, que os herdeiros beneficiados com o adiantamento da herança responsabilizem-se pelas dívidas do falecido com o montante objeto da liberalidade.
Por sustentar que inegavelmente esse herdeiro/donatário está a se valer de forma indevida do que lhe foi adiantado da herança, desfrutando de uma importância que deveria ter sido considerada para a satisfação dos débitos do falecido, é que pugnamos pela possibilidade de que o credor venha a exigir a indenização equivalente ao benefício recebido que deveria ter sido destinado a quem tinha haveres para receber do de cujus.
Se mostra diametralmente contrária às proposições elementares do nosso ordenamento jurídico permitir que os direitos creditórios de alguém não seja satisfeito segundo a alegação de que o falecido não deixou patrimônio para quitar suas dívidas enquanto seus herdeiros gozam de acréscimo patrimonial oriundo do recebimento da herança. Caracterizado o enriquecimento sem causa esse há de ser devidamente rechaçado.
Fonte: Migalhas
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