Num pragmatismo extremo é possível se asseverar que todo relacionamento amoroso acabará, seja em decorrência do término da afeição que fez com que as pessoas viessem a se unir, seja em decorrência do evento morte. Assim, sendo o seu fim inevitável, resta apenas o fardo de lidar com as suas consequências1.

 

No presente texto me aterei a uma consequência do fim do relacionamento em decorrência de um fato inter vivos que, ordinariamente, tem por elemento originário uma ruptura fática, caracterizada pelo afastamento de um dos cônjuges ou companheiros do lar conjugal.

 

Evidente que existem situações em que não há a saída de casa de uma das partes, contudo a hipótese recorrente é que haja a cessação da convivência mútua do casal em domicílio comum. Em tais circunstâncias, mormente quando residem em imóvel próprio, o mais comum é que o cônjuge do gênero masculino deixe o bem, restando a mulher com o exercício exclusivo da posse.

 

Nesse contexto é possível se discutir se esse cônjuge/companheiro haverá de realizar algum tipo de pagamento em favor daquele que é coproprietário do bem mas que não está a exercer a posse direita. A correta interpretação fática exige a ponderação de vários aspectos distintos mas me aterei aos casos em que não há a expressa manifestação de que o outro cônjuge/companheiro está autorizado a exercer a posse exclusiva do bem comum sem o dever de qualquer sorte de compensação econômica, caso em que a avença firmada entre as partes expressamente afasta tal obrigação.

 

Assim, na carência de comodato com relação a utilização da parte ideal pertencente ao consorte (se o bem for integralmente daquele que deixou o imóvel prevalece a mesma concepção agora atinente ao imóvel como um todo) pode-se afirmar que caracterizado está um benefício indevido em favor de quem está exercendo a posse direta, o que dá azo à possibilidade de se questionar o dever de compensar o possuidor indireto.

 

O tema é objeto muita judicialização, sempre laborando sob a perspectiva da responsabilidade civil, considerando elementos como o fim da mancomunhão (REsp. 1375271/SP), ausência de partilha (REsp. 1250362/RS), momento do rompimento fático do vínculo (REsp. 1250362/RS; REsp. 1375271/SP) e possibilidade ou não de abatimento do valor da pensão (REsp. 1250362/RS).

 

E sob esse parâmetro da responsabilidade civil um dos pontos cruciais recai sobre a apreciação da culpa, aspecto que traz complexidade elevada no presente contexto fazendo com que as decisões venham se direcionado para a inexistência do dever de indenizar.

 

Nesse mesmo sentido de inexistência de qualquer dever por parte do cônjuge/companheiro que remanesce no bem pode se verificar o projeto de lei 3498/21, que visa a inclusão de um §4º ao art. 1.320 do Código Civil, com seguinte texto:

 

Art. 1.320. …

 

 

  • 4º O uso exclusivo do imóvel comum por um dos ex-cônjuges, após a separação ou o divórcio e ainda que não tenha sido formalizada a partilha, não autoriza que aquele privado da fruição do bem reivindique, a título de indenização, a parcela proporcional a sua quota-parte sobre a renda de um aluguel presumido, quando aquele residir com filho comum do casal (NR).

 

Importante se consignar que essa proposta não se insere exatamente nos parâmetros trazidos na discussão aqui entabulada já que apresenta características específicas e requisitos determinados. Apenas para que não reste sem a devida apreciação, a inteligência do artigo preconiza que não cabe direito a indenização referente a utilização do bem, após a separação ou divórcio, com base em um aluguel presumido, quando residir com filho comum do casal. De plano manifesto que tenho uma série de objeções ao texto proposto mas não é esse o momento para tecer considerações desse jaez, bastando reiterar que a questão de fundo que estou a considerar consolida-se desde a separação de fato.

 

Apresentado o problema e o todo que o permeia é premente trazer à lume posicionamento diverso daquele que vem sendo utilizado.

 

Entendo que a questão vem sendo enfrentada de forma equivocada por não se tratar de hipótese de responsabilidade civil mas sim de enriquecimento sem causa, o que gera uma severa alteração nos parâmetros a serem considerados para a compreensão do fato posto. Em linhas bastante superficiais a responsabilidade civil questiona a existência de um fato atribuível a alguém e que causou um dano, nos termos do art. 186 do Código Civil, enquanto o enriquecimento sem causa analisa se alguém obteve um benefício que não deveria ter obtido, com base no disposto no art. 884 do Código Civil.

 

De forma absolutamente panorâmicas, enquanto a responsabilidade civil está preocupada em analisar se houve dano, direcionando sua atenção à figura do lesado (quem perdeu), o enriquecimento sem causa deita sua atenção na direção do agente da conduta que obteve um benefício indevido (quem ganhou).

 

Importante se consignar que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se pautado no entendimento de que o uso exclusivo do imóvel comum do casal está inserto na perspectiva de enriquecimento sem causa, previsto no art. 884 do Código Civil, ainda que mantenha-se utilizando de expressões como “obrigação indenizatória” ou “dever de indenizar” o que remete a uma ideia de responsabilidade civil, como se pode constatar do REsp 1888863/SP julgado em 2022, sob a relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.

 

Venho sustentando já de algum tempo que não está correta a análise sob o viés do dano eventualmente sofrido pelo coproprietário, pois o que há de ser auferido é se aquele que está valendo-se de forma exclusiva do bem comum, sem a autorização expressão para tanto, está obtendo um benefício e favorecendo-se de forma indevida. Apurado que o possuidor direto está a utilizar patrimônio alheio (ainda que parcialmente) sem qualquer ônus, inexistindo autorização expressa para tanto, é inconteste que experimenta benesse imprópria, e, com isso, haverá de “ofertar ao proprietário o equivalente ao que não teve que dispender por tal uso, pagando o aluguel proporcional à parte do outro, desde o momento em que tal posse exclusiva teve início”2.

 

Anteriormente já tive a oportunidade de tratar da questão com profundidade acadêmica em texto publicado na revista do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC)3, bem como em palestra proferida no IV Encontro Nacional desse mesmo instituto realizado em Fortaleza em meados de 2023.

 

Contudo, exatamente como exposto na parte final dessa palestra, há uma perspectiva extremamente delicada que tangencia a hipótese aqui trazida e que, confesso, sempre me atormentou. Como conciliar a excelência técnica aqui exposta à necessidade da atenção a uma perspectiva de gênero que é inafastável da presente problemática?

 

Esse é o momento em que posso fazer uma apreciação conciliando meus dois grandes amores jurídicos: o Direito Civil e as relações entre direito e sexualidade. A confluência de dois mundos aparentemente antagônicos impõe a necessidade de acuidade técnica que demanda a conciliação da dureza da dogmática civilística com um olhar humanístico indissociável da proteção das minorias sexuais.

 

Que fique aqui evidente o entendimento do qual comungo de que se pode pensar o gênero feminino entre as minorias sexuais, como grupo sexualmente vulnerabilizado, nos moldes traçados desde o texto inicial da presente coluna que concebe a sexualidade alicerçada nos pilares do sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.

 

A conclusão pelo dever de restituir que compete a quem tem o uso exclusivo do imóvel comum após a separação de fato conduz automaticamente à necessidade de uma ponderação de gênero pois tal entendimento pode converter-se em manifesta injustiça, vindo até mesmo a respaldar um controle sobre quem é socialmente mais vulnerabilizado.

 

É perceptível nos tempos atuais uma maior atenção com relação aos impactos da estrutura jurídica eminentemente masculina. Ainda que não exista uma restrição ou direcionamento expresso certas circunstâncias, embora não mencionem o gênero, têm em seu cerne uma preocupação que perpassa por esse quesito, como se verifica da chamada usucapião familiar (art. 1.240-A do Código Civil). Outras normas são explícitas no sentido de proteção, como se vê do “Programa Casa Verde e Amarela” (MP 996/20), sucessor do “Programa Minha Casa, Minha Vida”, que determina que “tanto o contrato quanto o registro do imóvel serão feitos, preferencialmente, em nome da mulher”4.

 

Nesse campo vislumbro como grande marco o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que traz alguma esperança quanto a um novo pensar, em que pese não fazer menção específica acerca da figura objeto da presente coluna. De seu texto pode-se extrair que a seção destinada ao Direito de Família inicia-se com a afirmação de que nessa seara “a atuação com perspectiva de gênero mostra-se essencial à realização da Justiça, ao se considerar que as relações domésticas são marcadas pela naturalização dos deveres de cuidado não remunerados para as mulheres e pela predominante reserva de ocupação dos espaços de poder – e serviços remunerados -, aos homens”5.

 

Inquestionável que a dissolução do casamento tem o condão de remeter o cônjuge ou companheiro do gênero feminino à situação de vulnerabilidade ainda mais severa pois haverá de inserir-se em uma nova realidade em que não contará com o suporte financeiro do outro, tendo que arcar com responsabilidades normalmente muito superiores às suas condições, vez que seguirá tendo as mesmas atribuições domésticas sem o mesmo respaldo.

 

O protocolo assevera também que “não se pode deixar de afirmar, outrossim, que a construção de estereótipos de gênero relacionados aos papéis e expectativas sociais reservados às mulheres como integrante da família pode levar à violação estrutural dos direitos da mulher que, não raras vezes, deixa a relação (matrimônio ou união estável) com perdas financeiras e sobrecarga de obrigações, mormente porque precisa recomeçar a vida laboral e, convivendo com dificuldades financeiras, deve destinar cuidados mais próximos aos filhos, mesmo no caso de guarda compartilhada”6.

 

Em coluna anterior tratando do divórcio tardio ou divórcio cinza7 trouxe algumas ponderações referentes aos impactos econômicos do fim do casamento e união estável para as mulheres, as quais enfrentam uma redução de 45% (quarenta e cinco por cento) em seu padrão de vida, o que pode ser descrito como financeiramente devastador8.

 

Vários aspectos poderiam ser colacionados para oferecer suporte à necessidade de uma análise diferenciada para o quadro descrito nessa coluna, como o fato de que em apenas 4,1% dos casos de dissolução do casamento a guarda dos filhos é deferida em favor do pai9, o que faz crer que, ordinariamente, ao estar vivendo no imóvel comum do casal com os filhos do casal, por exemplo, o exercício da posse da parte pertencente ao outro cônjuge estaria sendo desfrutada pelo filho. Todavia não se pode olvidar que isso ensejaria a possibilidade de que o genitor a quem compete o dever de alimentar venha a requerer a compensação de tal “oferta” a título de alimentos in natura (REsp. 1699013/DF).

 

Entendo que está mais do que na hora de se discutir o direito à indenização à mulher por todo o “serviço” por ela prestado em favor da família, especialmente quando se tem em mente que este é amplamente superior ao realizado pelos homens, como demonstra levantamento do IBGE que revela que, em média, mulheres destinam 10,4 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas10.

 

Esse tema é pouco explorado no mundo jurídico além de ser tachado como absurdo pelos tradicionalistas, machistas de plantão e defensores de uma dita “tradicional família brasileira” que não querem ver “a subversão dos valores pelo implemento de ideias feministas”. Faz-se imperioso se discutir os impactos patrimoniais que a estrutura machista consolidada (tanto em nossa sociedade como no ordenamento) acabam por impor ao feminino.

 

As débeis ofendículas apostas por aqueles que buscam manter o status quo relegando o feminino a um lugar de submissão e opressão não podem prosperar. Tampouco podem persistir concepções jurídicas que ignoram fatos simplesmente em razão do gênero da pessoa lesada, privando-a de receber aquilo que está determinado de forma cristalina na lei, é francamente defendido pela doutrina e reconhecido pelos tribunais.

 

Caso eu relatasse uma situação de fato em que a lei estabelece deveres compartilhados e uma das partes não desempenhasse seu papel a contento, sendo o outro compelido a suprir tal omissão, me parece suficientemente claro estarmos diante de um enriquecimento ilícito. Mas se a vítima for a alguém do gênero feminino surgem várias ponderações religiosas, morais, culturais e históricas visando obstaculizar qualquer direito a compensação pecuniária, por não ser ela o ente “destinatário originário” dos direitos classicamente estatuídos pelo Direito Civil.

 

Dessa forma, considero que havendo o uso exclusivo do bem comum do casal após a separação de fato, pode-se pugnar, no mínimo, pela compensação entre o devido pelo exercício da posse direta com o crédito oriundo o enriquecimento ilícito experimentado pelo possuidor indireto em razão do desempenho ineficaz dos deveres familiares e domésticos que venha a ser aferido.

 

Não se ignora a dificuldade probatória que pode se estabelecer a fim de demonstrar esse aproveitamento por parte de um dos cônjuges ou companheiros, mas uma vez provado mostra-se perfeitamente cabível a caracterização do dever de restituir os benefícios recebidos, o que, eventualmente, poderia ser compensado com o enriquecimento decorrente do uso exclusivo do bem comum do casal.

 

Preponderante deixar patente que não pode restar ignorada a questão de todo o trabalho destinado pela mulher à família, o qual segue invisibilizado e desvalorizado, corolário de uma sociedade construída e constituída sobre bases formalmente democráticas mas que manifestamente não acolhe os que não se encontram entre os majoritários e detentores das rédeas do poder.

 

Estou consciente de que os posicionamentos aqui adotados serão combatidos por todos os lados, pelos mais variados motivos e fundamentos, mas o intento da presente coluna é, muito mais do que apresentar entendimentos consolidados, propor o pensamento e gerar o desconforto. O privilégio de ser professor titular da cadeira que um dia pertenceu a Orlando Gomes na Universidade Federal da Bahia me impõe esse agir, não podendo me escusar da obrigação de tomar posição e suscitar o enfrentamento de questões espinhosas.

 

Como tenho o costume de pontuar com relação a todas as minhas opiniões e construções jurídicas vistas como apartadas do que é ortodoxamente esperado reitero que não busco estar com a razão (apesar de sempre acreditar que a tenho, caso contrário não me manifestaria da maneira que faço), mas tão somente colocar uma semente de pensamento fora dos parâmetros postos e causar uma fissura no monolito do dogmatismo cego por muitos propalado.

 

A proposta é basicamente trazer subsídios para a busca de uma atuação jurídica que se mostre mais afeita a preceitos constitucionais nucleares, rompendo certezas construídas com base em uma sociedade e direito segregadores, mas ainda assim lastreada nos parâmetros legais.

 

Por fim, penso que, afastados os preconceitos e atendo-se apenas às diretrizes mais essenciais de um estado democrático de direito, a questão é de uma simplicidade extrema, sendo qualquer celeuma muito mais um reflexo de uma visão de mundo que não mais se admite.

 

Faz-se mister afastar a regência de uma falsa ideia de imparcialidade da lei e de sua interpretação até agora vigentes11, impondo a utilização de lentes que equacionem a turbidez que nos conduziu a uma coletividade que até hoje ignora preceitos basilares da democracia e tornam o gênero um marcador social que priva a dita minoria de direitos.

 

Assim, concluo afirmando que ela deve pagar pelo uso exclusivo do bem mas haverá de poder, ao menos, compensar o montante que lhe é devido face à dedicação superior destinada à família que gerou um benefício ao outro. Me parece ser o justo. Concordam?

 

Fonte: Migalhas

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