Há dois temas ainda pouco debatidos na doutrina nacional que mereceriam o olhar carinhoso do Legislador: a “Reprodução Assistida Post Mortem” e o instituto que ficou conhecido como “Bebê-Medicamento”

 

Sob a Presidência do ministro Luís Felipe Salomão, foi instalada e já trabalha com destacado afinco a Comissão de Juristas, que objetiva atualizar o Código Civil vigente.

 

Muito embora seja Professora de Direito Penal, há muitos anos dedico-me ao estudo da Bioética, sobejamente regulada por normas administrativas, até em virtude do tempo do legislador ser diferente do tempo da Medicina e da tecnologia que a ilumina.

 

Com efeito, Professores de Bioética, ou de Biodireito, não podem estar atentos apenas à produção das Casas Legislativas em sentido estrito, pois as regras a nortear as práticas na seara da saúde saem, com poder vinculante, do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais de Saúde, das Secretarias Municipais de Saúde, dos vários Conselhos de Saúde, da Anvisa, do Conselho Federal de Medicina e dos Conselhos Regionais de Medicina.

 

Nessa seara, prepondera a autonomia médica e, por mais contraditório que possa parecer, também a autonomia do paciente, em dinâmica que busca o consenso, muito embora seja impossível extirpar por completo o conflito.

 

De plano, assevero ser defensora aguerrida dessas duas autonomias; propugnando, portanto, que a interferência do legislador em sentido estrito ocorra de forma subsidiária. A bem da verdade, mesmo essas muitas normas administrativas haveriam de incidir nos limites dos princípios informadores da Bioética, quais sejam a Beneficência, a Não Maleficência, o próprio princípio da Autonomia e o consectário da Justiça.

 

Não obstante tal posicionamento refratário a uma excessiva ingerência, há dois temas ainda pouco debatidos na doutrina nacional que, salvo melhor juízo, mereceriam o olhar carinhoso do Legislador. Por isso, aproveito este precioso espaço para pedir que a Comissão de Juristas analise a “Reprodução Assistida Post Mortem” e o instituto que ficou conhecido como “Bebê-Medicamento”.

 

Já há um bom tempo, o Conselho Federal de Medicina disciplina a Reprodução Assistida, em suas várias perspectivas, mas nem sempre os pontos acima mencionados foram contemplados. Vejamos:

 

A resolução 1.358/92, primeiro diploma referente ao tema, não tratava da Reprodução Assistida Post Mortem, nem da possibilidade de escolher embrião para “funcionar” como futuro doador de um irmão acometido por doença grave.1

 

A Reprodução Artificial Post Mortem foi primeiramente prevista na resolução CFM 1.957/10, cabendo ressaltar que o texto vinha no sentido de impedir que tal procedimento fosse tomado como um ilícito ético. Referido diploma não fazia qualquer menção à possibilidade de criar um ser humano para servir como remédio para um filho vivo acometido de doença grave2.

 

A Resolução CFM 2.013/13 reafirmou a possibilidade da Reprodução Assistida Post Mortem e, salvo melhor juízo, pela primeira vez autorizou “selecionar” embriões com o fim de tratar irmão acometido de doença grave, passível de ser enfrentada por transplante de medula, ou mesmo de órgãos. Nos seguintes termos: “As técnicas de RA também podem ser utilizadas para tipagem do sistema HLA do embrião, com o intuito de seleção de embriões HLA compatíveis com algum filho(a) do casal já afetado por doença, doença esta que tenha como modalidade de tratamento efetivo o transplante de células-tronco ou de órgãos”.3

 

A Resolução CFM 2.168/17 manteve o previsto pela normativa anterior no que concerne à Reprodução Assistida Post Mortem; porém, no que tange à escolha do embrião compatível com o irmão doente, excluiu a menção feita ao transplante de órgãos, até em observância à lei 9.434/97 (Lei de Transplantes), que coíbe doação de órgãos entre vivos, com doador menor de idade4. Nos pontos, a Resolução CFM 2294/21 não inovou 5.

 

Atualmente, vigora a resolução CFM 2.320/22, que permite, expressamente, o “Bebê-Medicamento e a Reprodução Assistida Post Mortem, nos seguintes termos:

 

“Item VI.2- As técnicas de Reprodução Assistida também podem ser utilizadas para a tipagem do Antígeno Leucocitário Humano (HLA) do embrião, no intuito de selecionar embriões HLA compatíveis com algum irmão já afetado pela doença e cujo tratamento efetivo seja o transplante de células-tronco, de acordo com a legislação vigente.

 

Item VIII- É permitida a Reprodução Assistida Post Mortem, desde que haja autorização específica para o uso do material biológico criopreservado em vida, de acordo com a legislação vigente”.6

 

Em resumo, pode-se dizer que, no Brasil, esperma criopreservado, antes do falecimento do doador, pode ser utilizado para fecundar óvulos, a fim de formar embriões para serem implantados. Idêntico raciocínio se aplica aos óvulos guardados antes do falecimento da mulher.

 

Igualmente, embriões criopreservados, antes do falecimento do titular do espermatozoide ou do óvulo, poderão ser implantados. Por óbvio, a morte da mulher que forneceu o óvulo enseja maiores dificuldades, haja vista a peculiaridade da gestação; porém, em tese, não há objeções, até pela possibilidade expressa de “cessão temporária do útero”.

 

Quanto aos “Bebês-Medicamento”, nota-se que profissionais de saúde e familiares, ao menos administrativamente, já estão autorizados a selecionar, dentre os embriões, aqueles apropriados a gerar um ser compatível com irmão já nascido, viabilizando transplante de medula óssea e, por conseguinte, tratamento.

 

Percebe-se, da sucessão de normas éticas antes noticiadas, que as duas práticas, objeto desta breve análise, são condicionadas à compatibilidade com a legislação vigente.

 

Ocorre que a possibilidade de criar um ser para salvar outro não tem expressa previsão legal e a reprodução após a morte só tem respaldo indiretamente, na medida em que o artigo art. 1.597 do Código Civil reza que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

 

A questão da criação de um ser para salvar outro ainda é, em alguma medida, problematizada, buscando-se meios e argumentos para fugir da inequívoca instrumentalização. Alguns entusiastas fazem uma leitura romântica, a conferir à vida desse ser até um maior significado. Outros defensores asseveram que as técnicas de seleção de embriões não se aplicam apenas ao tratamento do já nascido, mas também a evitar a doença no próprio indivíduo a nascer.

 

Nesse sentido, imperioso que a Comissão reflita sobre esse desafiador instituto, colocando no centro do debate a premissa, tão bem pontuada por Ana Thereza Meireles Araújo e José Edson Oliveira Araújo Filho, em “Transplantes Hematológicos e Seleção Genética em Projetos Parentais”, de que “a existência de alguém não pode ser contingenciada por uma realidade que a estigmatize como o medicamento que servirá a outrem” 7.

 

Já, relativamente à Reprodução Assistida Post Mortem, como evidencia significativo levantamento realizado por David Francisco de Faria e Shirlei Castro Menezes Mota, em: “Inseminação Post Mortem: Dilemas Bioéticos e Jurídicos na Concepção de Criança Órfã em Portugal e no Brasil”, tem-se que o cerne de todas as análises está na sucessão e, por conseguinte, na questão patrimonial8.

 

De fato, na medida em que o Código Civil, em seu artigo 1798, prevê estarem legitimadas a suceder as pessoas nascidas ou concebidas no momento da abertura da sucessão, ou seja, no momento da morte, instala-se certa polêmica diante de óvulos fecundados depois da morte do titular do esperma, ou mesmo da implantação de embriões existentes quando do falecimento.

 

Hodiernamente, diante da insuficiência na redação, a fim de não abandonar o ser inocente à própria sorte, garantindo-lhe o direito a herdar, buscam-se evidências de que o falecido desejava ser pai e se levantam argumentos a fortalecer o fato de que a Constituição Federal não admite odiosas diferenças entre os filhos, independentemente de sua origem.

 

Nada obstante, até pela reconhecida lacuna no Código Civil atual, bastante provável que a Comissão buscará deixar mais seguros, ao menos em termos patrimoniais, os filhos havidos de reprodução assistida Post Mortem. Mas o que se roga, mediante esta breve intervenção, é que a Comissão discuta a prática em si.

 

Nos Estados Unidos, por exemplo, já não se contentam com a utilização do esperma e/ou dos óvulos criopreservados antes da morte, como prevê a normativa vigente no Brasil. Lá, já existem leis e decisões judiciais, autorizando o cônjuge ou companheiro da pessoa falecida, nas 36 (trinta e seis) horas posteriores à morte, a solicitar a extração do espermatozoide ou do óvulo para criopreservar e, na sequência, implantar o embrião no útero da parceira sobrevivente, ou de uma terceira pessoa, em substituição.

 

Tal temática é bem aprofundada no artigo “Reimagining Postmortem Conception”, de autoria de Kristine Knaplund, que não se preocupa em indagar em que medida essa modernidade é positiva, mas em conferir maior segurança de que todas essas técnicas são sim admitidas. Apesar de se tratar de um texto de Revista Acadêmica, o estudo em questão tem os contornos de verdadeira tese, tomando, inclusive, o cuidado de sugerir a construção de normas que não cerceiem direitos a seres humanos integralmente gerados fora do corpo de uma mulher, se a biotecnologia vier a possibilitar tal proeza.9

 

Na medida em que todas as “evoluções” que têm lugar no exterior costumam chegar ao Brasil, desejável que a Comissão reflita sobre as normas éticas já vigentes por aqui e se antecipe às práticas existentes em outros ordenamentos, não necessariamente para autorizá-las. Propositalmente, coloquei a palavra evoluções entre aspas para chamar atenção para a máxima ética de que nem tudo aquilo que é possível, em termos tecnológicos ou biotecnológicos, deve ser feito ou admitido.

 

Com efeito, nas discussões que há sobre a extração de esperma Post Mortem, nota-se certa limitação à avaliação de qual seria o desejo real da pessoa falecida ou de quais seriam os direitos do par sobrevivente. Incrivelmente, os direitos, os desejos e a dignidade da pessoa futura são colocados à margem, ocorrendo mais que uma coisificação, uma verdadeira invizibilização do ser.

 

É relevante falar dos direitos sucessórios, da igualdade entre os filhos, do real desejo do falecido, das expectativas do parceiro sobrevivente? Claro! Porém, não se revela menos importante considerar como a pessoa futura conviverá com o fato de ter sido gerada, até mesmo concebida, depois da morte de um dos pais, sabidamente sem o seu conhecimento.

 

A Bioética, em diversos momentos, coloca em xeque o sagrado da vida, sagrado não no sentido religioso, mas no sentido de dignidade. Agora, com o “sem limite” das técnicas de Reprodução Assistida, vê-se desafiado também o sagrado da morte.

 

Muitos são os desafios da Comissão de Juristas, na atualização do Código Civil, nesse campo da Bioética. Os pontos destacados nesta primeira abordagem constituem apenas o início desse importante diálogo.

 

Fonte: Migalhas

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