Em 15 de setembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento 150, atualizando o Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (Provimento 149, do CNJ) com a regulamentação do artigo 216-B, da lei 6.015/73, que trouxe a possibilidade da adjudicação compulsória extrajudicial, requerida, processada e deferida diretamente perante o Ofício de Registro de Imóveis competente.

 

O Provimento 150, do CNJ, foi construído por várias mãos, sendo fruto de um trabalho técnico conjunto e participativo liderado pelo Corregedor Nacional, Ministro Luis Felipe Salomão1. O processo idealizado pelo Ministro resultou em um texto claro e objetivo, que esclareceu muitas dúvidas práticas que permeavam a aplicação da adjudicação compulsória extrajudicial.

 

Neste artigo, abordaremos algumas dúvidas que foram resolvidas pelo Provimento 150, trazendo as primeiras considerações sobre o ato normativo, objetivando fomentar a discussão em torno deste instituto que promete ser mais um grande passo em favor da desjudicialização.

 

Vamos lá!

 

  1. a) Quais contratos podem dar fundamento à adjudicação compulsória extrajudicial?

 

Um ponto muito importante definido pelo Provimento 150, do CNJ, foi quais contratos podem dar fundamento à adjudicação compulsória extrajudicial. E o ato normativo foi muito feliz na redação do artigo 440-B, ao prever que “podem dar fundamento à adjudicação compulsória quaisquer atos ou negócios jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta, bem como as relativas cessões ou promessas de cessão, contanto que não haja direito de arrependimento exercitável.”

 

Em primeiro lugar, o referido artigo deixou expresso que, ao lado da promessa de compra e venda, a promessa de permuta também pode fundamentar a adjudicação compulsória, conforme já defendia o Dr. João Pedro Lamana Paiva, brilhante jurista e Registrador de Imóveis do 1º Ofício de Porto Alegre/RS.2

 

Em segundo, o artigo 440-B, ao prever que quaisquer atos ou fatos jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta podem dar fundamento à adjudicação compulsória, foi ao encontro do que prevê o artigo 112, do Código Civil, que estabelece que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

 

Assim, independente do nome que foi dado ao contrato preliminar, seja ele uma promessa de compra e venda, um contrato particular de compra e venda, ou mesmo um recibo, se ele tiver sido celebrado com observância do disposto no artigo 462, do Código Civil, ou seja, se ele contiver todos os requisitos essenciais do contrato a ser celebrado, partes, objeto e preço, ele poderá dar fundamento a adjudicação compulsória extrajudicial.3

 

O artigo 440-B é digno de aplausos, pois leva em conta a realidade social brasileira, onde a maioria esmagadora dos contratos preliminares são feitas sem assistência jurídica, de forma que é imperioso considerar mais a intenção consubstanciada nestes instrumentos preliminares do que ao sentido literal da linguagem.4

 

Em relação ao direito de arrependimento “exercitável” a que faz menção o artigo 440-B, é preciso analisar o alcance da expressão “exercitável”.

 

É certo que se houver prazo no contrato preliminar para o exercício do direito de arrependimento, o transcurso deste prazo torna o direito de arrependimento não exercitável e, portanto, a adjudicação compulsória pode ser proposta pelo requerente.

 

Dúvida remanesce, contudo, em relação ao contrato preliminar que tem cláusula de arrependimento, mas não tem prazo ali previsto para o seu exercício. A expressão “exercitável” abrangeria também estes contratos, tendo em vista que a lei e a jurisprudência colocam diversos limites à cláusula de arrependimento e ao momento em que pode ser alegada?

 

Neste aspecto, Nelson Rosenvald salienta que tal direito potestativo não pode ser exercido de forma abusiva (art.187 CC). Segundo o autor, “o prazo decadencial para o exercício do poder de desconstituição da relação será o momento anterior ao cumprimento de todas as obrigações constantes do pacto (v.g. pagamento da última prestação pelo promissário comprador na promessa de compra e venda).”5

 

Assim, já tendo decorrido vários anos do contrato, havendo prova da quitação do preço e não havendo litígio envolvendo o contrato, seria o direito de arrependimento ainda exercitável?

 

Temos um importante ponto de discussão aqui, de forma que a questão da cláusula de arrependimento terá que ser analisada com cautela por notários, registradores e advogados.

 

  1. b) É obrigatório o reconhecimento de firmas nos contratos preliminares?

 

O Provimento 150, do CNJ, não traz a obrigatoriedade de firma reconhecida nos contratos preliminares.

 

Na verdade, ele traz a possibilidade do controle de autenticidade do documento ser efetivado pelo notário que lavrará a ata notarial através do reconhecimento de firma “a posteriori”, conforme previsto § 7º, do artigo 440-G: “o tabelião de notas poderá dar fé às assinaturas, com base nos cadastros nacionais dos notários (art. 301 deste Código Nacional de Normas), se assim for viável à vista do estado da documentação examinada.”

 

Nesta linha, o CORI-MG, na Nota Técnica nº 03/2022, prezando pelo princípio da busca da conservação dos negócios jurídicos, já entendia ser possível que a autenticidade do contrato fosse apurada pelo reconhecimento das firmas dos envolvidos, pela autenticidade de documentos eletrônicos apresentados, como também pela apresentação de documentos complementares que reafirmem a vontade das partes ou ainda pela notificação dos envolvidos, nos termos do artigo 411, inciso III, do Código de Processo Civil, sem prejuízo da análise do caso concreto pelo registrador.6

 

  1. c) Onde inicia o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial: no Tabelionato de Notas ou no Registro de Imóveis?

 

Uma das grandes questões de debate em torno da adjudicação compulsória extrajudicial, sobre a qual, inclusive, já tivemos a oportunidade de escrever7, era onde deveria começar o procedimento, no Registro de Imóveis ou no Tabelionato de Notas?

 

A parte deveria ir primeiro no Tabelionato de Notas, para lavrar a ata notarial, que é requisito obrigatório previsto no inciso III, do §1º, do artigo 216-B, e então protocolar o requerimento de adjudicação no Registro de Imóveis devidamente instruído com o respectivo ato notarial? Ou, o procedimento deveria começar no Registro Imóveis, com a prévia notificação de quem deve outorgar ou receber o título de propriedade para a efetiva prova e caracterização do inadimplemento?

 

Pois o Provimento 150, do CNJ, encerrou com a discussão, ao prever, no artigo 440-M, que “o requerimento inicial será instruído, necessariamente, pela ata notarial de que trata este Capítulo deste Código Nacional de Normas e pelo instrumento do ato ou negócio jurídico em que se funda a adjudicação compulsória.”

 

Ora, ao prever que o requerimento inicial será instruído, necessariamente, com a ata notarial, o Provimento não deixa dúvidas que o procedimento deverá iniciar no Tabelionato de Notas. Somente após a lavratura da ata, o requerimento inicial ingressará no Registro de Imóveis, para, então, ser promovida a notificação do requerido.

 

O início do procedimento no Tabelionato de Notas é corroborado pelo §4º, do artigo 440-M, o qual prevê que “a pedido do requerente, o requerimento inicial do processo extrajudicial, a ata notarial e os demais documentos poderão ser encaminhados ao oficial de registro de imóveis pelo tabelião de notas, preferencialmente por meio do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos – Serp”.

 

Assim, a primeira providência do requerente da adjudicação compulsória extrajudicial deve ser a elaboração da ata notarial, em um Tabelionato de Notas de sua confiança.

 

Neste ponto, cabe pontuar mais dois aspectos muitos bem esclarecidos pelo Provimento: a competência territorial e o que deve conter na ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial.

 

  1. d) Competência territorial da ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial

 

O Provimento 150, do CNJ, pôs fim a outra discussão em relação à adjudicação compulsória extrajudicial: há competência territorial para a lavratura da ata notarial de adjudicação tal qual existe na usucapião extrajudicial, que observa o município de localização do imóvel?8

 

O artigo 440-F deixou claro que a ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial será lavrada por tabelião de notas de escolha do requerente, salvo se envolver diligências no local do imóvel, observados os artigos 8º e 9º, da lei 8.935/94.9

 

Ou seja, a ata notarial de adjudicação segue a regra de todos os demais atos feitos presencialmente perante o notário: é livre a escolha do tabelião de notas, exceto se o notário tiver que se deslocar ao local do imóvel, caso em que deverá ser observada sua circunscrição territorial, conforme prevê o artigo 9º, da lei 8.935/94.10

 

O artigo 440-F deixa claro também, e não podia ser diferente, que no caso de ata notarial eletrônica, lavrada pela plataforma do e-Notariado, devem ser observadas as regras de competência territorial previstas no artigo 20, do antigo Provimento 100, do CNJ, atual artigo 303, do Código Nacional de Normas.11

 

  1. e) Requisitos da ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial

 

O artigo 440-G traz os requisitos e normatiza alguns aspectos importantes da ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial.

 

O primeiro ponto que é crucial destacar é a necessidade de a ata notarial conter as duas premissas fundamentais da adjudicação compulsória, previstas nos artigos 1417 e 1418 do Código Civil12: a prova da quitação e a prova do inadimplemento de quem deve receber ou outorgar a escritura pública definitiva.

 

Em relação à prova da quitação, o §6º, do artigo 440-G, elenca, mas não esgota13, as formas do notário constatar o pagamento do preço, incluindo mensagens, inclusive eletrônicas, em que se declare quitação ou se reconheça que o pagamento foi efetuado, comprovantes de operações bancárias, informações prestadas em declaração de imposto de renda, entre outros.

 

Um aspecto que merecerá discussão e aprofundamento é se a prescrição poderá ser alegada, substituindo a prova de quitação, já que o §6º, do artigo 440-G, menciona a expressão “além de outros fatos e documentos”, deixando claro que o rol ali previsto é meramente exemplificativo.

 

Com efeito, o Código de Normas do Rio de Janeiro permite que a prescrição seja alegada, substituindo a prova da quitação, se for acompanhada das certidões forenses demonstrando a inexistência de litígio envolvendo o contrato14.

 

De outro lado, o Superior Tribunal de Justiça tem decisões no sentido de não aceitar a prescrição como presunção de quitação, nem mesmo na adjudicação compulsória judicial.15

 

Desta forma, o tema da prescrição merecerá uma atenção especial dos advogados, notários e registradores, já que ele não foi trazido expressamente no Provimento 150, do CNJ.

 

Talvez a solução perpasse pelo caminho do meio, onde a prescrição possa ser utilizada como um elemento para a prova da quitação, mas não o único. Neste aspecto, o notário terá um papel essencial, podendo utilizar-se de todos os meios de prova em direito admitidos para tentar provar a quitação, inclusive diligência no local do imóvel, uma vez que a constatação de posse ad usucapionem poderá, eventualmente, ser considerada como mais um elemento a favor da pretensão do requerente.

 

Em relação à prova do inadimplemento do requerido, o Provimento 150, do CNJ, caminhou no sentido do que já defendíamos em artigo publicado anteriormente16, ou seja, de que a caracterização do inadimplemento na ata notarial não requer obrigatoriamente a notificação extrajudicial, podendo ser feita de inúmeras outras formas, valendo-se da essencial fé pública do tabelião.

 

Assim, conforme prevê o 440-G, inciso IV17, entendemos que é possível comprovar as tentativas que o requerente fez de obter ou outorgar a escritura através da transcrição na ata notarial das mensagens trocadas entre as partes, de e-mails, de carta AR. Além disto, o tabelião pode ele mesmo tentar ligar para o requerido, orientando-o quanto à necessidade da escritura e das consequências de sua não realização, dando de tudo fé na ata.

 

Aliás, em relação ao contato do tabelião com o requerido, o Provimento 150, do CNJ, trouxe a possibilidade de o tabelião de notas instaurar a conciliação ou a mediação dos interessados, desde que haja concordância do requerente, conforme prevê o §8º, do artigo 440-G.

 

Por fim, outra novidade trazida pelo ato normativo do CNJ no artigo 440-G, que trata da ata notarial, é a previsão do § 4º, que prevê que caberá ao notário fazer constar informações que se prestem a aperfeiçoar ou a complementar a especialidade do imóvel, se houver. Ou seja, a ata notarial contribuirá para a especialidade objetiva do imóvel.

 

Neste artigo, fizemos as primeiras considerações sobre o Provimento 150, do CNJ -, abordando principalmente a Seção I – “Disposições Gerais”. No próximo artigo, abordaremos as questões atinentes ao Procedimento, que é trazido na Seção II. Até breve!

 

Fonte: Migalhas

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