Digital Twins (ou “Gêmeos Digitais” em português) são representações virtuais de objetos, sistemas, ou processos físicos do mundo real, criadas para simular, monitorar e prever o comportamento desses elementos em diversas condições. Essas representações digitais são alimentadas por dados em tempo real coletados de sensores e outros dispositivos conectados ao objeto físico, permitindo uma interação dinâmica entre o mundo físico e o digital.
A ideia por trás dos Digital Twins é criar uma cópia exata de um objeto ou sistema no ambiente virtual, no qual é possível realizar testes, simulações e análises sem interferir diretamente no objeto ou sistema real.
Seu uso é geralmente baseado em tecnologias de RV – realidade virtual, que proporcionam uma experiência imersiva, permitindo que os usuários interajam com um ambiente digital tridimensional como se estivessem fisicamente presentes, o que permite a visualização detalhada e interativa de modelos digitais de objetos ou sistemas reais.1 Indubitavelmente, a relação entre Digital Twins e realidade virtual é simbiótica, uma vez que o poder de simulação e análise de dados é amplificado pela imersão e interatividade proporcionadas pela virtualização imersiva. Juntas, essas tecnologias estão moldando o futuro de como interagimos, planejamos e tomamos decisões em ambientes complexos, desde a indústria até a medicina e além.
No Japão, onde o tema emergiu com pioneirismo, os Digital Twins são fundamentais para o desenvolvimento de cidades inteligentes (smart cities). Por exemplo, em cidades como Tóquio e Yokohama, são usados para criar modelos virtuais de infraestruturas urbanas, incluindo sistemas de transporte, redes de energia e edifícios.2 Esses modelos permitem monitorar e otimizar a eficiência energética, o fluxo de tráfego e a resposta a desastres naturais, como terremotos e inundações. Empresas de engenharia no Japão utilizam Digital Twins para planejar e gerenciar grandes projetos de infraestrutura, como a construção de pontes, rodovias e ferrovias. Ainda, a indústria automotiva japonesa, que inclui gigantes como Toyota e Nissan, utiliza tais tecnologias para simular o ciclo de vida completo de veículos. Desde a fase de design e desenvolvimento até a produção em massa, os Digital Twins ajudam a otimizar o desempenho, a eficiência dos processos de fabricação e a manutenção dos veículos.3
Mas, para os propósitos desse breve ensaio, chama a atenção o fato de que, dado o risco elevado de desastres naturais no Japão, como terremotos e tsunamis, os Digital Twins são usados para modelar cenários de desastres e testar estratégias de resposta. Isso inclui simulações de evacuação e otimização de recursos de emergência, melhorando a resiliência das cidades e comunidades e permitindo ao Estado a efetiva mitigação de riscos.
Tais riscos, na leitura de Romualdo Baptista dos Santos, “estão relacionados ao processo de modernização da vida em sociedade, seja em razão da interferência do homem na natureza, seja em razão do desempenho de atividades necessárias ao modo de vida, seja ainda em consequência da exclusão das grandes massas populacionais em relação ao processo civilizatório”.4
Sem dúvidas, o exemplo nipônico dos Digital Twins permite repensar a usabilidade de tecnologias de realidade virtual para a mitigação de riscos em grandes cidades e conglomerados urbanos, inclusive para a prevenção de grandes desastres ambientais. E, como é de conhecimento público, em 2024, no Brasil, o Estado do Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores catástrofes climáticas de sua história devido a grandes enchentes que ocorreram entre abril e maio.5 Essas enchentes foram causadas por uma combinação de fatores climáticos extremos, incluindo chuvas intensas e prolongadas, agravadas pelo fenômeno El Niño e pela falta de infraestrutura adequada para lidar com grandes volumes de água em várias cidades do estado.6
As enchentes causaram danos extensivos em todo o território gaúcho, afetando mais de 2 milhões de pessoas em 446 municípios. Porto Alegre foi uma das cidades mais afetadas, com bairros inteiros submersos, enquanto outras cidades como Caxias do Sul e Santa Maria também sofreram grandes prejuízos.7 As chuvas resultaram no deslocamento de centenas de milhares de pessoas, destruição de infraestrutura crítica8, e perdas econômicas significativas, especialmente no setor agrícola, além de diversas indagações sobre seguros e seus efeitos em relação aos limites dos sinistros cobertos ou não para tais casos.9
Além disso, houve um impacto grave na saúde pública, com o aumento de casos de doenças transmitidas pela água, como leptospirose e dengue. A resposta às enchentes envolveu esforços de emergência por parte do governo, de organizações não governamentais e da sociedade civil, mas a recuperação completa é vista como um processo que demandará tempo e recursos consideráveis.
Essas enchentes de 2024 foram comparadas a outros eventos históricos no estado, como as enchentes de 1941 e 2023, mas foram notáveis pela sua intensidade e pelos desafios que apresentaram à infraestrutura e à gestão de desastres na região.10
Sem dúvidas, a utilização de Digital Twins para mapear riscos e prevenir desastres naturais, como as enchentes que ocorreram no Rio Grande do Sul em 2024, pode ser uma estratégia altamente eficaz, considerando a capacidade desses modelos virtuais de simular e prever cenários complexos.
Algumas formas específicas de como essa tecnologia pode ser aplicada envolveriam a criação de modelos virtuais das regiões propensas a enchentes, integrando dados meteorológicos em tempo real e o histórico de enchentes já registradas. Esses modelos podem simular diferentes cenários de chuva intensa e prever como os sistemas de drenagem, rios e outras infraestruturas urbanas responderiam a tais eventos, o que permitiria às autoridades identificar áreas de risco elevado e tomar medidas preventivas, como reforço de barragens ou construção de canais de escoamento.
No mais, ao integrar sensores em áreas críticas, os Digital Twins podem fornecer um monitoramento contínuo das condições locais, como o nível dos rios, a saturação do solo e o desempenho das infraestruturas de drenagem. Isso possibilita a detecção precoce de anomalias que possam indicar o risco de enchentes, permitindo uma resposta rápida e coordenada, como a evacuação preventiva de áreas vulneráveis.
Tais estruturas de realidade virtual ainda podem ser utilizados para avaliar os impactos de novas construções ou mudanças na infraestrutura urbana sobre a capacidade de uma região de lidar com eventos extremos. Por exemplo, antes de aprovar um novo projeto de construção no âmbito municipal, os modelos podem simular como esse desenvolvimento afetaria o escoamento da água e se aumentaria o risco de enchentes, contribuindo para melhor planejar cidades mais resilientes e a evitar erros que possam agravar desastres naturais.
Além disso, após um desastre, os Digital Twins podem ser usados para coordenar as operações de recuperação, ajudando a identificar quais áreas precisam de atenção imediata, simular o impacto de diferentes estratégias de recuperação, e otimizar a alocação de recursos humanos e materiais. Também podem ser utilizados para planejar e simular exercícios de resposta a desastres, melhorando a prontidão das equipes de emergência.
Noutro contexto, podem ser usados para criar representações visuais que ajudem a comunicar riscos e estratégias de mitigação para a população. Isso inclui a criação de mapas interativos que mostram áreas de risco em tempo real ou simulações que demonstram o impacto potencial de diferentes tipos de desastres, ajudando a conscientizar e preparar as comunidades para interagir melhor – com o suporte tecnológico – às matrizes de risco previamente aferidas e analisadas em um contexto específico. Quanto a isso, vale lembrar o mérito que tal estratégia teria, no Brasil, no sentido de cumprir o Quarto Eixo da Política Nacional de Educação Digital (lei 14.533/23), definido em seu art. 1º, § 2º, IV, qual seja, o da P&D – Pesquisa e Desenvolvimento em TICs – Tecnologias da Informação e Comunicação.
Ademais, a integração de Digital Twins na teoria do risco administrativo pode fortalecer significativamente o debate sobre a responsabilidade civil do Estado no século XXI, alinhando o instituto à multifuncionalidade da responsabilidade civil.11
Essas tecnologias, por permitirem a simulação detalhada de cenários em tempo real, contribuem para otimizar a atuação do Estado ao identificar, monitorar e mitigar riscos de forma proativa. Essa capacidade de prever e prevenir danos através da simulação de diferentes cenários pode reforçar a qualidade do serviço público, incrementando sua eficiência ao impedir ou mitigar eventos de elevada gradação de risco. Ato contínuo, ainda se pode contar com registros que, em processos judiciais, servem como evidências aptas a melhor elucidar se o Estado agiu com a devida diligência ou se houve ato ilícito, especialmente por omissão.
Em suma, os Digital Twins permitem a avaliação contínua das políticas públicas em caráter prospectivo, incrementando sua eficácia, sua acurácia e sua confiabilidade na gestão de riscos. Tudo isso se alinha a uma leitura da responsabilidade civil do Estado que não se limita à singela reparação de danos, pois também abrange as funções preventiva e precaucional, como bem definem Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto:
“Para enfrentar riscos e ameaças iminentes, de forma a antecipar certa carga de segurança social, o direito se acautela lançando mão dos princípios da prevenção e da precaução. Ambos se manifestam na atitude ou na conduta de antecipação de riscos graves e irreversíveis. O princípio da prevenção será aplicado quando o risco de dano for atual, concreto e real. Trata-se do perigo, que é o risco conhecido, como por exemplo, o limite de velocidade nas estradas ou os exames médicos que antecedem uma intervenção cirúrgica. Já o princípio da precaução deve ser aplicado no caso de riscos potenciais ou hipotéticos, abstratos e que possam levar aos chamados danos graves e irreversíveis. É o ‘risco do risco'”.12
Em conclusão, a utilização de Digital Twins, especialmente em regiões propensas a desastres naturais, ilustrativamente indicadas no texto a partir da catástrofe ocorrida no Rio Grande do Sul, destaca-se como uma ferramenta crucial para a modernização da gestão de riscos e a prevenção de danos catastróficos. Ao integrar dados em tempo real e permitir simulações detalhadas, essas tecnologias não apenas aprimoram a capacidade do Estado de responder de maneira proativa e eficiente, mas também fortalecem o debate sobre a responsabilidade civil em sua multifuncionalidade, ampliando seu alcance para incluir aspectos preventivos e precaucionais. Assim, os Digital Twins representam um avanço significativo na aliança entre tecnologia e governança, promovendo uma gestão pública mais ágil, precisa e orientada à mitigação de riscos em um cenário de crescente complexidade urbana e ambiental.
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1 IHDE, Don. Technics and praxis. Boston: D. Reidel Publishing Co., 1979. p. 22. Comenta: “‘Physical reality’ may implicitly be taken to be that reality which is both instrument mediated and micro-macro structured. It is that which apparently ‘lies beyond’ our ordinary senses; it is that which is probed through instruments (even at the minimal level of applying simple measurements); and it is often constituted by what I shall call adding mono-dimensions together”.
2 Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
3 OBI, Toshio; IWASAKI, Naoko. Smart Government using Digital Twin in Japan. In: 2021 International Conference on ICT for Smart Society (ICISS), Bandung Indonesia, 2-4 ago. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
4 SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba/Porto: Juruá, 2018, p. 166.
5 WIKIPÉDIA. Cronologia das enchentes no Rio Grande do Sul em 2024. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
6 ECOA BRASIL. Enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul: Causas, Impactos e Resposta. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
7 MEU RIO GRANDE DO SUL. Enchente no Rio Grande do Sul em 2024: Impactos, Cidades Afetadas e Comparações Históricas. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
8 WIKIPÉDIA. Enchentes no Rio Grande do Sul em 2024. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
9 PIZA, Paulo. Reflexões sobre o contrato de seguro e o desastre climático no RS. Migalhas de Responsabilidade Civil, 22 ago. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
10 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Fronteiras da Ciência: Enchentes catastróficas no RS: causas e mitigação. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
11 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Responsabilidade civil do Estado e tecnologia: uma releitura da teoria do risco administrativo. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 249-255.
12 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil: teoria geral. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 164.
Fonte: Migalhas
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