Introdução

 

O tema do presente texto tem provocado muitas divergências no cenário social e jurídico, ocupando os espaços nas revistas e jornais, assim como nos tribunais do país. Envolve questão econômica e situação proprietária de grande relevo, dialogando com a busca por uma ambiência condominial que seja mais segura e harmoniosa. Os interesses em conflito a serem tutelados já demonstram o quão importante se mostra o enfrentamento democrático e responsável dessa questão.

 

É factual que direito e economia são ciências distintas, contando com regras, funções, estruturas e princípios igualmente diferenciados, mas há muito já se identificou repercussões recíprocas e conexões inegáveis.

 

Malgrado o respeito do Poder Judiciário brasileiro às milenares categorias jurídicas do direito privado, não raro o magistrado é desafiado para solucionar questão jurídica com importantes reflexos econômicos, assim como verificamos na Lei de Liberdade Econômica (lei 13874/19) ou na previsão da doutrina do consequencialismo na atual redação da LINDB (lei 13.655/18) que, conquanto se refira ao direito público em essência, pode ser trazida para outras questões como a que se coloca no presente dilema aqui delineado. Registre-se, por exemplo os artigos 20 e 21, o primeiro preconizando que qualquer decisão administrativa ou judicial não pode se fundar em “valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.”. No mesmo diapasão, o segundo dos dispositivos referidos obriga o órgão decisório a indicar expressamente as consequências jurídicas e administrativos do ato. Da mesma forma é o delineamento jurídico da fundamentação da decisão judicial no artigo 489 do CPC mirando na obrigatoriedade de o juiz atentar para o caso concreto e as consequências advindas da decisão.

 

São inúmeros os exemplos de interseção entre economia e direito, sendo digno de nota na construção do presente texto a contemporânea economia de compartilhamento que trouxe para a humanidade tecnologia e arranjo contratual apto a melhorar a circulação das pessoas nas cidades (Uber), multipropriedade imobiliária (lei 13.777/18), hospedagem diversificada e com preço mais em conta (Airbnb e plataformas afins). Outras práticas podem ser lembradas e em todas se verifica intensa possibilidade de circulação de riquezas e geração de serviços que podem, por exemplo, complementar a remuneração do trabalhador, assegurar rendimentos para pessoa aposentada ou sem rendas formais, assim como proporcionar uma vida mais feliz por meio da oferta de lazer e turismo.

 

Para uma saudável e harmônica atividade negocial, a economia de compartilhamento necessita, sobretudo, de respeito à autonomia privada, ao direito de propriedade, previsibilidade e segurança jurídica. Nessa toada, a atividade de hospedagem intermediada pelo airbnb e outras plataformas digitais unem “locadores” e “locatários”, denominados pela plataforma como “anfitrião” e “hóspede”, contados aos milhões em diversos espaços do planeta reclama de há muito uma regulamentação jurídica na qual os personagens (condôminos, anfitrião e hóspede) conheçam de antemão as regras do jogo.

 

À título de exemplificação da relevância desse negócio jurídico, estima-se que na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no período do Rock in Rio, mais de oitenta por cento das habitações disponibilizadas pelo airbnb foram ocupadas, sem embargo de uma ocupação completa nas vagas de hotelaria no mesmo período e na mesma região.

 

Não raro, o destinatário de tais serviços, na qualidade de anfitrião, depara com uma delicada situação de insegurança jurídica, posto que o imóvel que pretende disponibilizar para o hóspede, mediante retribuição, constitui-se em uma unidade autônoma em condomínio edilício residencial e, por vezes, o condomínio proíbe essa modalidade de utilização da propriedade privada.

 

Daí, surge um dilema jurídico de difícil solução sob a ótica da legalidade constitucional: o condomínio edilício pode proibir os condôminos de se valerem dessa hospedagem atípica por intermédio da utilização de plataformas digitais ou mesmo outras modalidades de oferta?

 

Inexiste norma jurídica federal específica que resolva esse conflito. A propósito, se existisse e independentemente da opção adotada, dificilmente não seria posta à prova diante de um exame de sua constitucionalidade. Uma corrente de pensamento defenderia os valores, por exemplo, da autonomia privada, da livre iniciativa, na economia de compartilhamento com as suas vantagens para a sociedade e, sobretudo, no direito de propriedade com os seus poderes inerentes, enquanto outra orientação jurídica poderia buscar na função social da propriedade condominial com os seus valores solidaristas um outro resultado hermenêutico.

 

Estado da arte

 

A falta de um norte legislativo especial tem feito muito mal à função social e econômica desse modelo contratual atípico, pois a despeito de o Superior Tribunal de Justiça já ter mostrado a sua orientação para a matéria, a questão é cercada de aspectos fáticos que podem alterar a convicção do julgador em primeiro grau ou do colegiado em segunda instância, merecendo destaque que tal questão, salvo melhor juízo, não está a merecer uma orientação obrigatório pela via dos recursos repetitivos, exatamente pelas suas nuances fáticas.

 

À guisa de exemplificação, vamos encontrar no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decisão de junho de que reputou como válida cláusula que impõe obrigação de não fazer aos condôminos no sentido de proibir que o proprietário de unidade autônoma alugue imóvel para turistas pelo AIRBNB (TJRJ, 19º CC, AI 0064628-03.2017.8.19.0000, Rel. Des. Valeria Dacheux Nascimento).

 

Em outro giro, o Tribunal de Justiça de São Paulo já se orientou em sentido diametralmente oposto:

 

“Apelação Cível – Condomínio Edilício – Declaratória de nulidade de ato jurídico – Alteração da Convenção do Condômino – Proibição de locação por temporada inferior a 90 dias – Sentença de improcedência – Locação por temporada não desvirtua a destinação para residência prevista na Convenção – Inteligência do art. 45 da Lei nº 8245/91 – Não configuração de contrato de hospedagem – Inteligência do art. 23, “caput”, da Lei nº 11.771/08 – Eventuais danos, perturbações ou infrações à Convenção ou Regulamento interno devem ser sancionadas nos termos daquelas, não sendo permitida a proibição de locação do bem como sanção – Inteligência do art. 1.337 do CC – Indevida limitação ao direito de propriedade, constitucionalmente garantido. Recurso provido. (TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, Proc. nº 1008757-15.2018.8.26.2008, Rel. Des. Francisco Carlos Inouye Shintate, julg. em 01/02/2021).

 

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça tem prevalecido orientação mais restritiva ao direito de propriedade do condômino de disponibilizar a sua unidade autônoma para essa hospedagem atípica, típica do período da pós-modernidade em que vivemos. Nesse sentido:

 

“Direito civil. Recurso especial. Condomínio edilício residencial. Ação de obrigação de não fazer. Locação fracionada de imóvel para pessoas sem vínculo entre si, por curtos períodos. Contratações concomitantes, independentes e informais, por prazos variados. Oferta por meio de plataformas digitais especializadas diversas. Hospedagem atípica. Uso não residencial da unidade condominial. Alta rotatividade, com potencial ameaça à segurança, ao sossego e à saúde dos condôminos. Contrariedade à convenção de condomínio que prevê destinação residencial. Recurso improvido. 1. Os conceitos de domicílio e residência (CC/2002, arts. 70 a 78), centrados na ideia de permanência e habitualidade, não se coadunam com as características de transitoriedade, eventualidade e temporariedade efêmera, presentes na hospedagem, particularmente naqueles moldes anunciados por meio de plataformas digitais de hospedagem. 2. Na hipótese, tem-se um contrato atípico de hospedagem, que se equipara à nova modalidade surgida nos dias atuais, marcados pelos influxos da avançada tecnologia e pelas facilidades de comunicação e acesso proporcionadas pela rede mundial da internet, e que se vem tornando bastante popular, de um lado, como forma de incremento ou complementação de renda de senhorios, e, de outro, de obtenção, por viajantes e outros interessados, de acolhida e abrigo de reduzido custo. 3. Trata-se de modalidade singela e inovadora de hospedagem de pessoas, sem vínculo entre si, em ambientes físicos de estrutura típica residencial familiar, exercida sem inerente profissionalismo por aquele que atua na produção desse serviço para os interessados, sendo a atividade comumente anunciada por meio de plataformas digitais variadas. As ofertas são feitas por proprietários ou possuidores de imóveis de padrão residencial, dotados de espaços ociosos, aptos ou adaptados para acomodar, com certa privacidade e limitado conforto, o interessado, atendendo, geralmente, à demanda de pessoas menos exigentes, como jovens estudantes ou viajantes, estes por motivação turística ou laboral, atraídos pelos baixos preços cobrados. 4. Embora aparentemente lícita, essa peculiar recente forma de hospedagem não encontra, ainda, clara definição doutrinária, nem tem legislação reguladora no Brasil, e, registre-se, não se confunde com aquelas espécies tradicionais de locação, regidas pela Lei 8.245/91, nem mesmo com aquela menos antiga, genericamente denominada de aluguel por temporada (art. 48 da Lei de Locações). 5. Diferentemente do caso sob exame, a locação por temporada não prevê aluguel informal e fracionado de quartos existentes num imóvel para hospedagem de distintas pessoas estranhas entre si, mas sim a locação plena e formalizada de imóvel adequado a servir de residência temporária para determinado locatário e, por óbvio, seus familiares ou amigos, por prazo não superior a noventa dias. 6. Tampouco a nova modalidade de hospedagem se enquadra dentre os usuais tipos de hospedagem ofertados, de modo formal e profissionalizado, por hotéis, pousadas, hospedarias, motéis e outros estabelecimentos da rede tradicional provisora de alojamento, conforto e variados serviços à clientela, regida pela Lei 11.771/2008. 7. O direito de o proprietário condômino usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel, nos termos dos arts. 1.228 e 1.335 do Código Civil de 2002 e 19 da Lei 4.591/64, deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no Condomínio, de acordo com as razoáveis limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações concernentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício. 8. O Código Civil, em seus arts. 1.333 e 1.334, concede autonomia e força normativa à convenção de condomínio regularmente aprovada e registrada no Cartório de Registro de Imóveis competente. Portanto, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso de unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV). 9. Não obstante, ressalva-se a possibilidade de os próprios condôminos de um condomínio edilício de fim residencial deliberarem em assembleia, por maioria qualificada (de dois terços das frações ideais), permitir a utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem atípica, por intermédio de plataformas digitais ou outra modalidade de oferta, ampliando o uso para além do estritamente residencial e, posteriormente, querendo, incorporarem essa modificação à Convenção do Condomínio. 10. Recurso especial desprovido” (REsp 1819075/RS, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Min. Raul Araújo, j. 20.04.2021, DJe 27.05.2021).

 

Em brilhante voto vencido, Sua excelência, o Ministro Luis Felipe Salomão afastou a conotação de hospedagem prevista na Lei 11.771/2008 que incluiria a prestação de diversos serviços, os quais não se verificam no Airbnb. Destacou que a economia de compartilhamento com a utilização de uma plataforma digital como são exemplos o Uber e o Airbnb, é uma realidade importante para os interesses do País, com grande soma de investimentos, não sendo razoável a sua proibição, nada obstante possa o condomínio adotar medidas para regular o seu funcionamento, como o cadastramento dos anfitriões na portaria, dentre outras. Ressaltou ainda, dentre outras questões, o artigo 1335, I, do Código Civil que confere ao condômino o direito de usar, fruir livremente e dispor das suas unidades.

 

A Terceira Turma, por unanimidade, igualmente palmilhou o mesmo caminho no julgamento do Recurso Especial 1.884.483/PR, tendo como relator o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (j. 23.11.2021), firmando entendimento no sentido de que o condomínio que possui destinação exclusivamente residencial pode proibir a locação de unidade autônoma por curto período de tempo. Digno de registro, outrossim, o acórdão unânime em 2023, explicitando que “nos termos da jurisprudência desta Corte, a exploração econômica de unidades autônomas mediante locação por curto ou curtíssimo prazo, caracterizadas pela eventualidade e pela transitoriedade, não se compatibiliza com a destinação exclusivamente residencial atribuída ao condomínio réu.” (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.933.270/RJ, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 6/3/2023, DJe de 10/3/2023).

 

Inegável que é fundamental a preservação da convivência harmônica entre os condôminos, equilibrando-se com justiça, para tanto, o direito da propriedade exclusiva do condômino com a propriedade condominial sobre as áreas comuns, os quais encontram no artigo 1336 do Código Civil importantes efeitos, além da própria convenção condominial e regimento interno, desde que tais restrições sejam razoáveis e não obstaculizem o exercício legitimo do direito de propriedade exercido com exclusividade na unidade autônoma. Por exemplo, o Tribunal da Cidadania, já tem uma orientação firme no sentido da nulidade de eventual cláusula que proíba a utilização de área comum por condômino inadimplente, assim como não vê correção em determinação cega de proibição de animais no interior das unidades autônomas, ou seja, estes somente serão proibidos se colocarem em risco o sossego, a segurança ou a saúde dos demais condôminos.

 

Caberá, a nosso sentir, aos condôminos reunidos em assembleia ou em alteração da própria convenção, o que é bem mais difícil, optar pela proibição, mediante democrática discussão que, de fato, aponte motivos razoáveis para tanto.

 

Em tempos de pós-modernidade, a dificuldade na identificação das categorias jurídicas – se locação por temporada ou contrato atípico de hospedagem – não pode ser óbice para uma prestação de serviços que tem atraído e felicitado os destinatários, conferindo à propriedade imóvel importante funcionalidade, além de estar movimentando fortemente a economia nacional.

 

Situações de abuso do direito por parte dos condôminos e possuidores eventuais podem e devem ser corrigidas pontualmente, no âmbito da dialética do caso concreto, não sendo razoável, contudo, que, de forma abstrata e apriorística, se possa proibir tal modalidade de utilização compartilhada da propriedade imobiliária.

 

Frise-se, por fim, que o anfitrião continua a ser condômino, tendo assim, que respeitar todas as regras de saúde, sossego e segurança que regem a vida condominial. O cumprimento desses preceitos é sua obrigação – devendo ser repassado aos hóspedes – sendo ele, condômino, o responsável por eventuais sanções previstas na convenção por mau exercício da posse por parte de hóspede.

 

Previsão na reforma do Código Civil

 

No trabalho de atualização do Código Civil vigente, a questão aqui tratada não passou despercebida pelos juristas que compuseram a comissão revisora, assim como por várias entidades que encaminharam as sugestões para o melhor enfrentamento dessa questão.

 

Em nosso modo de ver há três possibilidades a ser adotada:

 

  1. a) O condomínio não pode proibir o condômino de celebrar contrato de hospedagem atípica por meio de plataforma digital ou outra modalidade de oferta, sendo nula de pleno direito qualquer deliberação nesse sentido;

 

  1. b) na falta de alguma deliberação assemblear ou previsão na convenção de condomínio proibindo essa prática, o condômino está autorizado a disponibilizar a sua unidade autônoma para a hospedagem atípica por meio de plataforma digital ou outra modalidade de oferta;

 

  1. c) o silêncio da convenção de condomínio ou ausência de deliberação assemblear está a indicar a proibição, ou seja, apenas regra autorizativa específica da hospedagem atípica viabilizaria o ato negocial.

 

A comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil instituída por ato do presidente do Senado Federal Rodrigo Pacheco (Ato nº 11/2023) sob a presidência do Ministro Luis Felipe Salomão do Superior Tribunal de Justiça se inclinou pela hipótese “c”, ainda que este não seja o nosso posicionamento que se amolda à hipótese “b”, como se pode ver na redação do anteprojetado parágrafo primeiro do artigo 1336 do Código Civil:

 

Nos condomínios residenciais, o condômino ou aqueles que usem a unidade, salvo autorização expressa na convenção ou por deliberação assemblear, não poderão utilizá-la para fins de hospedagem atípica, seja por intermédio de plataformas digitais, seja por quaisquer outras modalidades de oferta. (grifos nossos)

 

Conclusão

 

Oxalá que o mais rápido possível o anteprojeto de reforma do Código Civil seja transformado em projeto de lei a fim de que questões como essa da mais absoluta relevância possam ser debatidas com a sociedade frente ao parlamento que há de dar a melhor solução para esse difícil dilema.

 

Estamos convencidos de que o pior cenário é o da omissão legislativa que tanta insegurança jurídica e falta de previsibilidade tem causado nesse segmento fundamental para os interesses da nação brasileira e de seus cidadãos.

 

Fonte: Migalhas

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