A impenhorabilidade de valores inferiores a 40 salários mínimos, depositados em conta corrente ou poupança do devedor, é tema amplamente discutido no processo civil brasileiro. Tal discussão ganhou novos contornos com a edição do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), que reformulou o tratamento jurídico da matéria.
Inicialmente, cabe destacar uma análise que ainda é timidamente enfrentada pelos tribunais: a mudança no teor literal da norma que regulamenta a matéria com o advento do CPC/2015.
O Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973) previa, no caput do artigo 649, que determinados bens eram “absolutamente impenhoráveis”. Entre eles, o inciso X estabelecia: “até o limite de 40 salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança”. Já o CPC/2015, no caput do artigo 833, adotou uma redação mais simples, retirando a expressão “absolutamente” e limitando-se a afirmar que os bens enumerados são “impenhoráveis”. Essa alteração conferiu à impenhorabilidade caráter relativo, flexibilizando sua aplicação.
Mesmo sob a vigência do CPC/1973, a jurisprudência já caminhava para uma interpretação mitigada do dispositivo, como demonstram os seguintes precedentes:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. IMPENHORABILIDADE. ARTIGO 649, IV e X, DO CPC. FUNDO DE INVESTIMENTO. POUPANÇA. LIMITAÇÃO. QUARENTA SALÁRIOS MÍNIMOS. PARCIAL PROVIMENTO.
(…)
2. O valor obtido a título de indenização trabalhista, após longo período depositado em fundo de investimento, perde a característica de verba salarial impenhorável (inciso IV do art. 649). Reveste-se, todavia, de impenhorabilidade a quantia de até quarenta salários mínimos poupada, seja ela mantida em papel-moeda; em conta-corrente; aplicada em caderneta de poupança propriamente dita ou em fundo de investimentos, e ressalvado eventual abuso, má-fé, ou fraude, a ser verificado caso a caso, de acordo com as circunstâncias da situação concreta em julgamento (inciso X do art. 649).
3. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp n. 1.230.060/PR, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 13/8/2014, DJe de 29/8/2014.)
DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL. FAMÍLIA. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PENHORA DE SALDO EM CADERNETA DE POUPANÇA. ART. 649, X, DO CPC. SUBSISTÊNCIA DO EXECUTADO-ALIMENTANTE.
(…)
2. A mitigação da regra estatuída no art. 659, X, do CPC cede aos princípios constitucionais que asseguram a subsistência da pessoa humana na concepção de “vida digna”.
3. Recurso especial desprovido.
(REsp n. 1.218.118/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 12/8/2014, DJe de 25/8/2014.)
Com base em precedentes que já indicavam a mitigação da regra, a Corte Especial do STJ consolidou, em decisão de 2019, o entendimento de que a impenhorabilidade em questão possui caráter relativo: “A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (artigo 649, IV, do CPC/73; artigo 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família” (EREsp 1.582.475/MG, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Corte Especial, julgado em 03/10/2018, DJe 16/10/2018).
Impenhorabilidade poderia atingir outros investimentos
Mais recentemente, em 2024, o STJ, no julgamento do REsp nº 1.660.671/RS, aprofundou a análise do inciso X do artigo 833, reconhecendo que a impenhorabilidade pode abranger, além da poupança tradicional, investimentos com características e finalidades similares, desde que destinados a assegurar o mínimo existencial.
Apesar da força persuasiva dessa decisão, ela foi tomada em recurso especial avulso, sem força vinculante ampla.
Reconhecendo a relevância do tema, o STJ determinou, em 7 de outubro de 2024, a afetação dos recursos especiais ao rito dos repetitivos — previsto nos artigos 1.036 e 1.037 do CPC/2015 e nos artigos 256 ao 256-X do RISTJ —, para “definir se é ou não impenhorável a quantia de até quarenta salários mínimos poupada, seja ela mantida em papel-moeda; em conta corrente; aplicada em caderneta de poupança propriamente dita ou em fundo de investimentos” (Tema nº 1.285).
Enquanto o julgamento do repetitivo não é concluído, já é possível afirmar que a proteção prevista no artigo 833 é relativa, logo, a impenhorabilidade elencada no inciso X do mesmo dispositivo legal, até o limite de 40 salários mínimos, e que literalmente faz referência à quantia depositada em caderneta de poupança, consequentemente não é absoluta. Assim, a discussão se concentra em definir se essa proteção se limita à poupança ou se pode ser estendida a outros investimentos, desde que voltados à garantia de condições básicas de subsistência.
Executado deveria comprovar impenhorabilidade
Outro ponto relevante é a possibilidade de reconhecimento ex officio da impenhorabilidade.
Sob a égide do CPC/1973, a Corte Especial do STJ, ao julgar os EAREsp 223.196/RS, consolidou entendimento acerca da controvérsia interpretativa envolvendo o artigo 649, fixando que a impenhorabilidade prevista nesse dispositivo legal deveria ser invocada pelo executado, sob pena de preclusão. Nessa toada, afastou-se, assim, a tese de que se trataria de norma de ordem pública passível de reconhecimento de ofício pelo magistrado.
O CPC/2015 reforçou essa interpretação ao exigir, no artigo 854, §§ 3º e 5º, que o executado, após a decretação de indisponibilidade de valores, comprove sua impenhorabilidade no prazo de cinco dias, sob pena de conversão da indisponibilidade em penhora.
Quando o legislador optou por autorizar a atuação judicial de ofício, o fez de forma expressa, como na hipótese em que permitiu ao magistrado o cancelamento de indisponibilidade que excedesse o valor executado (artigo 854, §1º, CPC).
Não houve previsão semelhante no tocante ao reconhecimento da impenhorabilidade.
A regra do artigo 833, inciso X, do CPC, ao dispor sobre a impenhorabilidade, reveste-se da natureza de direito disponível, já que o devedor possui a faculdade de dispor livremente dos valores depositados em suas contas bancárias, inclusive para destiná-los ao pagamento do débito objeto da execução, renunciando, assim, à proteção conferida pela norma.
Modernização ao abordar impenhorabilidade
Nesse contexto, a Corte Especial do STJ, ao enfrentar o tema repetitivo nº 1235, quando do julgamento do REsp 2061973/PR e do REsp 2066882/RS, em 2 de outubro de 2024, fixou a seguinte tese: “A impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários mínimos (artigo 833, X, do CPC) não é matéria de ordem pública e não pode ser reconhecida de ofício pelo juiz, devendo ser arguida pelo executado no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos ou em sede de embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, sob pena de preclusão”.
Portanto, à luz do CPC/2015, não se vislumbra autorização legal para que o magistrado reconheça ex officio a impenhorabilidade prevista no artigo 833, inciso X. Ao contrário, a sistemática processual vigente atribui ao executado o ônus de alegar oportunamente a impenhorabilidade do bem constrito, evidenciando o caráter disponível dessa prerrogativa, conforme se extrai de interpretação sistemática dos artigos 833, 854, §§ 1º, 3º, inciso I, e § 5º, 525, inciso IV, e 917, inciso II, do CPC.
Assim, o CPC/2015 modernizou a abordagem da impenhorabilidade ao flexibilizar sua aplicação e reforçar a necessidade de atuação proativa do devedor. Essa relativização, alinhada aos princípios constitucionais, equilibra a necessidade de preservação do mínimo existencial com o interesse do credor na satisfação do crédito, conferindo ao instituto um caráter dinâmico. Evidencia, destarte, o papel do Judiciário em harmonizar direitos aparentemente contrapostos, criando um sistema de justiça capaz de atender as particularidades de cada caso concreto.
Fonte: Conjur
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