Ao longo dos últimos meses, temos acompanhado, nesta coluna, diversas reflexões sobre algumas das sugestões propostas pela Comissão de Juristas formada para revisar o CC, da qual honradamente fui membro. Nesta oportunidade, gostaria de contribuir com a coluna e com as discussões que têm sido, felizmente, travadas – o que é esperado em um ambiente democrático, analisando a proposta para o art. 1.829, I, talvez a mais desafiante do Livro V – Do Direito das Sucessões.

Pela redação atual, tal inciso, que estabelece os herdeiros que serão vocacionados à herança em primeiro lugar, prevê que a sucessão legítima se defere “aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares”. Bem se vê, portanto, que, pelo direito vigente, uma vez aberta a sucessão são chamados, em primeiro lugar, eventuais descendentes do morto em concorrência com eventual cônjuge ou, conforme construção jurisprudencial, eventual companheiro, se o regime de bens o permitir.

À época da propositura deste inciso, em meados da década de 1970, a iniciativa de instituir uma concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente com os descendentes do morto era uma importante inovação. Não há como negar que a mudança proposta no então anteprojeto acerca do regime legal de bens, que preconizava passar do regime da comunhão universal para o da comunhão parcial, somada ao contexto social daquele momento e ao arcabouço jurídico vigente, justificava a cautela de se proteger o cônjuge sobrevivente, em especial, se mulher.

Em que pese, porém, o instituto da concorrência sucessória tenha sido incorporado em nosso ordenamento com a promulgação do CC/02 desde logo, a doutrina começou a questionar o anacronismo e a imprecisão do texto do inciso I do art. 1.829, chegando-se, nos dias atuais, a contestar sua manutenção que, em boa medida, contrasta com a realidade hodierna das famílias, dos relacionamentos e das expectativas sociais.

Tratemos desses dois grupos de dilemas – anacronismo do texto e inconveniência da manutenção do instituto – antes de prosseguirmos para a análise da proposta no anteprojeto de 2024.

1. Dilemas do atual art. 1.829, I do CC: Texto e contexto

O primeiro dilema, relativo ao texto do inciso I, pode ser expresso (a) na reprochada redação do mesmo, marcada pela falta de clareza e pela técnica questionável de explicar pela negativa, afinal, ao invés de indicar quando o regime de bens admitiria a concorrência, preferindo dizer quando ela seria afastada; (b) na injustificada desatenção do legislador que, ao se referir ao regime da separação obrigatória de bens, remeteu ao “art. 1.640, parágrafo único”, quando o correto – ainda que desnecessária a remissão – seria o art. 1.641 do CC; (c) na omissão, reconhecida no enunciado 270 do CJF,1 a respeito do tratamento do caso em que o autor da herança, casado sob o regime da comunhão parcial, tenha deixado bens particulares e comuns, hipótese em que a concorrência incidiria somente sobre os primeiros, dada a conhecida premissa de que quem meia, não herda; (d) na falta de referência ao regime da participação final dos aquestos – outra novidade do CC/02 -, cuja disciplina, ao menos quanto aos efeitos da dissolução da sociedade conjugal, se aproxima do regime da comunhão parcial; (e) no olvido às hipóteses em que o casal optou por um regime de bens atípico; e, por fim, (f) no descaso com os direitos sucessórios do companheiro, pois não bastasse a disciplina positiva desigual à do cônjuge, em flagrante violação à isonomia constitucional das entidades familiares (só reconhecida, recentemente, quando do julgamento do RE 646.721 e do RE 878.694), ainda desconsiderou as conquistas que lhe tinham sido atribuídas, especialmente, pelas leis 8.971/94 e n. 9.278/96.

Diante desse primeiro dilema, poder-se-ia aventar a ideia simplista de, meramente, corrigir os equívocos redacionais do inciso I do art. 1.829 e fazer-lhe as adaptações necessárias, mantendo-se, contudo, seu espírito e essência. Não obstante, ao intervir nas relações sociais, o legislador deve se atentar ao contexto que busca regular. Nesse sentido, já se defendeu que:2

Um Código não é excelente simplesmente por ser o mais moderno; um Código é excelente simplesmente por ser aquele que atende melhor às tradições de um país em determinado estágio de seu desenvolvimento. Os juristas formados na escola de Kelsen, ou num positivismo exacerbado, pensam que o Código mais moderno é aquele que tem as instituições mais amplas ou mais perfeitas, e se esquecem de que o melhor Código é aquele que reflete a realidade social à qual se dirige, porque, senão ou se rejeita a norma ou há disfunção da norma.

Carlos Maximiliano, na mesma linha, escrevia que o Direito “[n]asce na sociedade e para a sociedade”, concluindo, ao final, que “o Direito prevê e provê; logo não é indiferente à realidade”.3

A realidade social que, hoje, se apresenta é a de relacionamentos efêmeros, famílias reconstituídas e protestos por maior liberdade, desde sexual à de disposição do patrimônio após a morte – pleitos que, parece-me, deverão se intensificar nos próximos anos. Esse é o segundo dilema que o art. 1.829, I do CC desperta, agora não mais relacionado ao seu texto, mas ao seu contexto circunstancial.

Pela norma ainda em vigor, tutela-se, indistintamente, o cônjuge ou o companheiro sobrevivente, desde que o regime de bens escolhido seja compatível com a concorrência sucessória e o casamento ou união estável persistam quando da morte do sucedido, sem que o sobrevivente, hoje considerado herdeiro necessário, incorra em causas que ensejam indignidade ou deserdação. Essas são as únicas balizas observáveis para atribuir-lhe legitimidade sucessória, o que levou certa doutrina a falar em um “‘super cônjuge’, ou seja, aquele a quem são atribuídos direitos hereditários em proteção excessiva diante da nova configuração das famílias”.4

Em outras palavras, atualmente, não se investiga o tempo de união entre falecido e supérstite – dada a irrelevância do fator tempo, o que gera as mais insustentáveis distorções; não se diferencia a origem dos bens que compõem o monte partível; nem se verifica a realidade fática dos demais sucessores, por exemplo, se em estado de vulnerabilidade, hipossuficiência e dignos de maior proteção. A indiferença a estes vetores, não raro, enseja abusos e incita a cobiça.

2. Proposta do anteprojeto de 2024: Exclusão da concorrência sucessória

Se a concorrência sucessória, da forma como prevista, já confronta, em nossos dias, a expectativa social5 e suscita debates e insatisfações pelo que sua previsão representou em termos de embaraços práticos, sua manutenção, no novo cenário fático que se abre,6 apenas ampliará os conflitos e a sensação de disfuncionalidade da norma.

Ciente das dificuldades do texto do art. 1.829, I e da mudança do contexto social, a Comissão instituída para revisar e atualizar o CC propôs, no anteprojeto apresentado à presidência do Senado Federal, em sessão solene realizada em 17/4/24, a exclusão da concorrência sucessória em propriedade plena, de modo que referido artigo passaria a ter a seguinte redação:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes;

II – aos ascendentes;

III – ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente;

IV – aos colaterais até o quarto grau.

Contra a proposta, aventou-se que a exclusão do instituto seria iníqua por subtrair direitos assegurados no Código, em vigor, e por vulnerabilizar a posição da mulher, posto que, normalmente, em razão de ainda estarmos inseridos em uma sociedade machista, o patrimônio do casal ser registrado em nome do homem.

Sobre o primeiro argumento, deve ser lembrado que o direito (objetivo) é vivo e deve ser sempre repensado à luz das demandas sociais, sob pena de tornar-se caduco e inefetivo. Por essa razão, pode o legislador, ao revisar a norma jurídica, deixar de albergar determinados interesses ou de tutelar certas posições jurídicas previstas em abstrato, o que não implica, de acordo com o regime constitucional vigente, violar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, que seguem protegidos (art. 5º, XXXVI da CF/88).

No mais, a mera previsão de concorrência sucessória não atribui direito subjetivo ao cônjuge ou companheiro, mas simples expectativa de direito. Não obstante, se a sucessão se abrir durante a vigência da atual disciplina sucessória, o direito do cônjuge ou do companheiro não será impactado pela mudança proposta.

Sobre o segundo argumento, devem-se fazer algumas precisões. Primeiramente, que a exclusão da concorrência sucessória não impacta o direito à meação, quando existente, que continua devido a quem participou da aquisição do bem comum, seja com recursos financeiros, seja com atos de serviço. Além disso, como já lembrado por Flávio Tartuce, preocupado com a posição do cônjuge ou companheiro sobrevivente, o anteprojeto de 2024, dentre outras previsões, (a) ampliou a comunicação de bens na comunhão parcial e instituiu a participação do viúvo ou viúva na separação convencional; (b) estabeleceu o usufruto legal e judicial sucessório em favor do viúvo ou viúva vulnerável ou hipossuficiente; e (c) estendeu o direito real de habitação para a união estável.8

O que se extrai desse relato é que a proposta dirigida ao Congresso Nacional para revisão e atualização do art. 1.829, I do CC, a despeito de excluir a concorrência sucessória, em propriedade plena, do cônjuge ou companheiro com descendentes, não retirou o status de herdeiro do viúvo ou viúva, como ainda lhes conferiu diversos direitos, em especial, aos que estiverem em situação de vulnerabilidade.

3. Notas conclusivas

Apesar da trivialidade da afirmação, não se pode ignorar que construção e aplicação do Direito devem ter como norte o contexto sobre o qual incidem suas regras. Foi considerando as novas expectativas sociais, bem como os conhecidos problemas decorrentes da concorrência sucessória, em propriedade plena, que a Comissão de Juristas entendeu, encorajada pela opinião pública que participou ativamente do debate, que tal instituto já não cumpria adequadamente a função que lhe cabia. Trata-se de uma conclusão técnica, assentada na verificação empírica, no debate e na consulta à sociedade.

Várias foram as audiências realizadas pelo país e vários os profissionais e entidades cujos pleitos foram apresentados e ponderados – a síntese dessa dialética democrática, ao final, foi oferecida ao Congresso Nacional para novos debates e reflexões.

À população em geral e, em especial, aos operadores do Direito será oportunizada, novamente, quando da tramitação do PL, a oportunidade de se manifestarem sobre os resultados obtidos de forma técnica, desinteressada e patriota pela Comissão.

Minha esperança é de que todas as judiciosas críticas que, hoje, vêm sendo dirigidas ao anteprojeto de 2024 possam ser formuladas como emendas, de modo a que alcancemos uma síntese construtiva, e não mero palavrório que pouco tende a acrescentar e muito enfastia, já que a crítica pela crítica, ao invés de representar uma discordância que contribui com a sociedade brasileira, expressa, não raro, simples arrogância, que divide e atrasa.

___________

1 Enunciado 270 do CJF: “O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”.

2 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. Ata da 5ª reunião. In: MENCK, José Theodoro Mascarenhas (org.). Código Civil brasileiro no debate parlamentar: elementos históricos da elaboração da Lei n. 10.406, de 2002. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012. p. 219.

3 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 137, 139.

4 NEVARES, Ana Luiza Maia. Do “super” cônjuge ao “mini” cônjuge: a sucessão do cônjuge e do companheiro no Anteprojeto do Código Civil. Migalhas, 25 de abril de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/4/5D98B3CAC88FD0_Dosuperconjugeaominiconjuge.pdf. Acesso em 7 dez. 2024.

5 “O confuso texto do Código Civil e essa última forma de julgar [a respeito do regime da separação convencional de bens] causam enorme perplexidade na sociedade brasileira, diante do argumento de que aquilo que foi convencionado pelas partes em vida deveria também gerar efeitos após a morte, preservando-se a autonomia privada e a vontade individual dos consortes, de nada se comunicar, seja na vida ou na morte” (TARTUCE, Flávio. A reforma do Código Civil e a sucessão legítima. Migalhas, 28 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/414057/a-reforma-do-codigo-civil-e-a-sucessao-legitima. Acesso em 14 dez. 2024).

6 “[O]s valores da sociedade [da década de 1970] eram outros, totalmente diversos da contemporaneidade. Eram valorizados sobremaneira o casamento tradicional, a família típica e a propriedade irretocável. Imaginavam as gerações anteriores, como premissa-regra, que o casamento era para toda a vida, até que a morte separasse os cônjuges. Por isso, era imperioso valorizar a figura do cônjuge, ao lado dos descendentes” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 6).

7 Art. 1.787 do Código Civil. “Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela”.

8 TARTUCE, Flávio. A reforma do Código Civil e a sucessão legítima. Migalhas, 28 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/414057/a-reforma-do-codigo-civil-e-a-sucessao-legitima. Acesso em 14 dez. 2024.

Fonte: Migalhas

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