STJ afasta adjudicação compulsória sem quitação integral do preço, mesmo com prescrição da dívida

O STJ recentemente analisou a interação entre dois temas relevantíssimos que gravitam em torno da aquisição de imóveis: a já consolidada e amplamente conhecida teoria do adimplemento substancial e a possibilidade de emprego de ação para adjudicação compulsória de imóvel.

Quando do julgamento do REsp 2.207.433/SP, a 3ª turma do STJ se deparou com a seguinte questão: poderiam os adquirentes de determinado imóvel deixar de pagar a integralidade do preço convencionado e, após a lapso prescricional, propor ação judicial em que buscassem, simultaneamente, (i) o reconhecimento da prescrição e (ii) a adjudicação compulsória do imóvel, já que parcela relevante do preço fora adimplida? Como funcionaria a interação entre as pretensões e a boa-fé, que deve permear as relações negociais?

No caso em questão, os autores narraram ter celebrado, em 2007, contrato de promessa de compra e venda de imóvel, com pagamento parcelado, do qual adimpliram aproximadamente 80% do total. A última parcela venceu em dezembro de 2011 e, desde então, a promitente vendedora não promoveu qualquer cobrança. Os autores, então, requereram judicialmente a declaração da prescrição das parcelas remanescentes e a expedição da carta de adjudicação para registro na matrícula do imóvel.

Embora o pedido tenha sido julgado procedente em Primeiro Grau de Jurisdição, a sentença foi parcialmente reformada. O TJ/SP, em resumo, conquanto tenha reconhecido a prescrição, chegou à conclusão de que não seria possível a adjudicação compulsória do imóvel, já que seus requisitos não tinham sido preenchidos1.

Contra o acórdão do TJ/SP, foi interposto o recurso especial recentemente apreciado pelo STJ.

Ao julgar o recurso especial interposto, a 3ª turma entendeu que, a despeito da prescrição das parcelas remanescentes, não seria possível o reconhecimento do direito à adjudicação compulsória. A seguir, serão comentadas as razões corretamente empregadas pelo STJ para fundamentar sua decisão.

Primeiro, assinalou-se que a adjudicação compulsória, prevista nos arts. 1.417 e 1.418 do CC2, é o instrumento por meio do qual, na hipótese de recusa injustificada de outorga de escritura definitiva pelo vendedor, o promitente comprador de imóvel pode solicitar a transferência do bem ao juízo competente3.

O STJ possui entendimento consolidado no sentido de que o pagamento integral do imóvel pelo promitente comprador é requisito indispensável para se pleitear a sua adjudicação compulsória4.

Com isso, a 3ª turma do STJ assim consolidou os requisitos para adjudicação compulsória: (i) “pagamento integral do preço acordado”; (ii) “o contrato preliminar deve conter todos os elementos necessários à conversão em contrato definitivo”; (iii) “recusa injustificada do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva do imóvel”; e (iv) “inexistência de direito de arrependimento”.

Segundo, após sopesar os requisitos acima, a 3ª turma do STJ concluiu que, em qualquer hipótese, “[o] exercício do direito à adjudicação compulsória pelo promitente comprador, seja ele titular de direito real ou de direito obrigacional, condiciona-se à quitação do preço”. Ou seja, independentemente da ocorrência de prescrição das parcelas remanescentes, a jurisprudência do STJ se consolidou no sentido de que é impositivo o pagamento integral da contraprestação financeira5.

Terceiro, deixou-se claro que a prescrição de parte da dívida objeto do contrato preliminar não afeta o direito subjetivo subjacente, de forma que, em qualquer hipótese, ainda seria possível o adimplemento para valer-se do instrumento previsto nos arts. 1.417 e 1.418 do CC. Embora a prescrição afete a pretensão (de direito material), permanece vivo o direito subjetivo subjacente6.

A relevância dessa constatação, para o caso em comento é inquestionável. Se a prescrição extintiva afetasse o direito subjetivo, não haveria alternativa, já que não mais existente a obrigação, devendo-se reconhecer o direito à adjudicação compulsória. Como o direito permanece vivo, apenas deixando de existir a Anspruch (ou pretensão), evidencia-se a possibilidade de que seja tido como requisito para reconhecimento do direito à adjudicação compulsória.

Essa distinção foi muito bem considerada pelo STJ e sopesada para prolação da decisão em comento.

Quarto, ponderou-se que a teoria do adimplemento substancial “tem por objetivo precípuo impedir que o credor resolva a relação contratual em razão de inadimplemento de ínfima parcela da obrigação. A via judicial para esse fim é a ação de resolução contratual”7. Trata-se de decorrência direta da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações negociais.

Nas palavras do ministro Luis Felipe Salomão, “a teoria do substancial adimplemento visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato”8.

A consequência do adimplemento substancial sobre a qual o STJ se debruçou é sobretudo negativa: impedir que o credor busque a resolução do negócio jurídico celebrado em razão do inadimplemento de parcela ínfima do preço. O caso julgado, por outro lado, seguia lógica inversa: o credor não buscou a resolução do negócio, mas o devedor aguardou a prescrição das parcelas remanescentes para, sem o pagamento integral do preço, pretender a transferência do imóvel.

Ao fim e ao cabo, o STJ traçou importantíssima distinção a respeito dos desdobramentos do inadimplemento prolongado sobre aspectos contratuais e do direito de propriedade. Entendeu-se que, embora o adimplemento substancial crie vedação à resolução do negócio jurídico em razão do não pagamento de parcela ínfima da contraprestação financeira, a prescrição dessa mesma parcela do débito não é suficiente para que se reconheça o direito à adjudicação compulsória, que depende de requisitos específicos, dentre os quais a quitação do preço avençado.

Sempre atenta à necessidade de efetividade do direito, a ministra Nancy Andrighi ainda sugeriu os dois caminhos disponíveis: “a celebração de acordo com a recorrida, de tal modo que essa última se proponha à outorga da escritura definitiva, ou o ajuizamento de ação de usucapião, se estiverem presentes os requisitos legalmente exigidos para o reconhecimento da prescrição aquisitiva”.

_______

1 “APELAÇÃO AÇÃO DECLARATÓRIA DE PRESCRIÇÃO CUMULADA COM ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA PROCEDÊNCIA INCONFORMISMO ACOLHIMENTO PARCIAL. Cerceamento de defesa. Inocorrência. Prescrição. Ocorrência. Fluência do prazo decenal para exercício da pretensão de cobrança das prestações inadimplidas, sem a ocorrência de fatos impeditivos, interruptivos ou suspensivos. Obrigação natural de pagar que, contudo, subsiste ao reconhecimento da prescrição. A quitação do preço do contrato de compromisso de venda e compra é requisito para a ação de adjudicação compulsória, e não se supre com a prescrição da pretensão de cobrança Precedentes do STJ e da Câmara Sentença reformada em parte DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO.”

2 “Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.”

“Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.”

3 CHALHUB, Melhim Namen. Direitos reais, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, versão eletrônica, cap. XI.

4 STJ, AREsp 1.694.360/GO, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em 30/10/2023.

5 STJ, Ag. Int. no AREsp 2.499.259/SE, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 15.04.2024; REsp 1.602.245/RJ, Relator Ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, j. em 09.08.2016; e REsp 1.601.575/PR, Relator Ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, j. em 2/8/2016.

6 “Para conceituar a prescrição, o Código partiu da ideia de pretensão. Foi a dogmática alemã que lhe deu origem. O titular de um direito subjetivo recebe da ordem jurídica o poder de exercê-lo, e normalmente o exerce, sem obstáculo ou oposição de quem quer. Se, entretanto, num dado momento, ocorre a sua violação por outrem, nasce para o titular uma pretensão exigível judicialmente – Anspruch. O sujeito não conserva indefinidamente a faculdade de intentar um procedimento judicial defensivo de seu direito. A lei, ao mesmo tempo em que o reconhece, estabelece que a pretensão deve ser exigida em determinado prazo, sob pena de perecer. Pela prescrição, extingue se a pretensão, nos prazos que a lei estabelece (art. 189 do Código de 2002).” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I, 30ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 121).

7 STJ, REsp 1.622.555/MG, Relator Ministro Marco Buzzi, 2ª Seção, j. em 22/2/2017.

8 STJ, REsp 1.051.270/RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 4/8/2011.

Fonte: Migalhas

Deixe um comentário