Mestre em Economia e atual Auditor Fiscal da Receita Estadual de São Paulo, Jefferson Valentin é um dos principais nomes na regulamentação da Reforma Tributária. Valentin se destaca pela grande trajetória na Receita Estadual, focando na fiscalização e inspeção do ITCMD. Em entrevista exclusiva ao Jornal do Notário, o docente comenta sua participação no Regionais em Ação – Ribeirão Preto no painel “ITCMD na Prática”, destacando a necessidade de unir teoria e aplicação, como um alinhamento geral de todos os órgãos atuantes, criando uma melhora para a tributação do ITCMD. Além disso, apresentou sua contribuição e visão técnica sobre o sistema tributário; e demostrou com sua experiência alguns quívocos que são cometidos recorrentemente. “Receita Estadual e CNB/SP partilham do mesmo objetivo: segurança jurídica com eficiência operacional”, afirmou. “Reconheço que o Fisco tem sido tímido na interlocução com tabeliães e registradores. É necessário maior proximidade institucional para mapear dores operacionais”. Leia ao lado a entrevista na íntegra:
Jornal do Notário: O senhor tem uma trajetória marcada pela atuação técnica na Receita Estadual, pela pesquisa acadêmica e pela docência. Como essa combinação de experiências influenciou sua visão sobre o sistema tributário e sobre a importância do ITCMD no contexto do planejamento sucessório?
Jefferson Valentin: Minha vivência combina três lentes que se retroalimentam. Na Receita, especialmente na fiscalização e como Inspetor do ITCMD, aprendi a ver a sucessão “por dentro”: onde surgem os riscos, como se forma a prova, que documentos realmente dissipam dúvida e como a falta de padronização eleva custo de transação e litígio. Na pesquisa, trago métricas: elasticidade de comportamento, desenho de incentivos e avaliação de impacto — o que funciona para aumentar conformidade sem punir o contribuinte bem-intencionado. Na docência, transformo tudo isso em linguagem operacional: checklists, fluxos e cláusulas que reduzem ambiguidades. O resultado é uma visão do ITCMD como instrumento de segurança jurídica no planejamento sucessório: quando o desenho notarial é claro (valor, causa, regime de bens, reserva de usufruto, condição resolutiva), a arrecadação flui, o contribuinte antecipa riscos e o Estado fiscaliza melhor. Com a EC 132/2023 e a LC 214/2025, essa coordenação entre cartórios e Fisco torna-se ainda mais estratégica para dar previsibilidade às famílias e às empresas.
Jornal do Notário: Durante o painel “ITCMD na Prática”, o senhor destacou a necessidade de alinhar teoria e aplicação do imposto nos atos notariais. Quais são, na sua visão, os principais desafios enfrentados hoje por tabeliães e registradores ao lidar com o ITCMD?
Jefferson Valentin: Inegavelmente há falhas normativas. A aprovação do PLP 108 com a tão esperada norma geral em matéria tributária para o ITCMD deve ajudar e, depois, esperamos que os estados façam sua parte, melhorando e alinhando suas leis à norma geral o que, certamente, ajudará no trabalho dos tabeliães e registradores. Mas os desafios, hoje, são menos “de lei” e mais “de aplicação” (o que demandaria a produção de uma legislação infralegal mais clara). Primeiro, qualificação do fato gerador: distinguir doação, adiantamento de legítima, cessão de direitos hereditários, partilha desigual e doação indireta (subavaliação/assunção de dívida) ainda gera insegurança. Segundo, base de cálculo: falta de padrão entre “valor venal de referência”, mercado e laudos, em quotas de holding, o dilema patrimônio líquido × valor econômico. Terceiro, documentação fiscal: checagem de isenção/limite por donatário, soma de doações no ano, comprovação de pagamento/parcelamento e comunicação eletrônica ao Fisco. Quarto, competência e territorialidade (bens em outros estados, domicílio do doador/de cujus). Quinto, temporalidade: quando nasce a exigência (assinatura, tradição, registro). Sexto, integração sistêmica: DOI, e-Notariado e SREI ainda não conversam o suficiente. Por fim, cláusulas sensíveis (usufruto, reversão, inalienabilidade) pedem roteiros e checklists para reduzir retrabalho e glosas.
Jornal do Notário: O ITCMD é um dos tributos que mais suscita dúvidas na atividade notarial e registral. Que equívocos o senhor ainda observa na prática e como o Fisco tem trabalhado para reduzir a insegurança interpretativa?
Jefferson Valentin: Minha experiência mostra três equívocos recorrentes.
1) Data do fato gerador
Ainda há confusão entre forma e substância. Em causa mortis, a data é a abertura da sucessão (óbito). Em doação, prevalece a data da efetiva transmissão do bem ou direito — isto é, quando há tradição/registro/cessão eficaz, conforme a orientação consolidada do STJ. Fixar corretamente essa data e preencher corretamente as declarações a partir dela evita juros indevidos, decadência/prescrição mal contadas e autuações desnecessárias.
2) Base de cálculo
O parâmetro é o valor de mercado, não rótulos genéricos. Isso exige critérios objetivos por tipo de ativo: imóvel urbano (amostra comparativa/laudo), rural (aptidão agrícola/GEOR), quotas de holding (ajuste a PL contábil), créditos/direitos (valor presente/recuperabilidade). Padrões mínimos reduzem contencioso.
3) Identificação de doações indiretas, mistas ou disfarçadas Devemos ver a essência além do nomem iuris: subavaliação, assunção de dívida gratuita, partilhas desiguais sem causa, “venda” a ascendente com preço simbólico. Identificar os elementos caracterizadores do contrato é o antídoto. Como o Fisco deve evoluir. Reconheço que o Fisco tem sido tímido na interlocução com tabeliães e registradores. É necessário maior proximidade institucional para mapear dores operacionais, treinamento contínuo, atos normativos claros (manuais com exemplos), malha de obrigações acessórias bem definida, métodos públicos de valoração por tipo de bem, com checklists e modelos de laudo. Resultado: mais segurança e previsibilidade para contribuintes e serventias — e menos retrabalho para a fiscalização.
Jornal do Notário: O senhor ressaltou no evento o papel preventivo do tabelião e do registrador. De que forma a cooperação entre o Fisco e o notariado contribui para aumentar a segurança jurídica e reduzir riscos fiscais para o cidadão?
Jefferson Valentin: A cooperação Fisco–notariado é uma política de prevenção. Quando tabeliães e registradores trabalham com linguagem comum ao Fisco (conceitos, datas do fato gerador, base de cálculo), o ato já nasce “bem qualificado” e reduz o contencioso. O caminho prático tem cinco pilares:
1) Protocolos operacionais: checklists padronizados por tipo de ato (doação, cessão, partilha desigual), com campos estruturados para causa jurídica, data relevante, base de cálculo e enquadramento de isenção.
2) Valoração objetiva: métodos públicos por classe de bem (imóvel urbano/rural, quotas, créditos), com modelo de laudo mínimo ou planta de valores e janela de contestação técnica antes da lavratura.
3) Integração de sistemas: APIs entre e-Notariado/SREI e SEFAZ para automatização de consultas e tarefas.
4) Roteiros de prova: templates de declarações e documentos de interesse fiscal e trilha de auditoria das declarações disponível para Fisco e Tabeliães (com documentos e fundamentos).
5) Capacitação contínua: oficinas conjuntas Fisco–Cartórios e atos infralegais claros (manuais/FAQs com exemplos), para alinhar interpretação e reduzir retrabalho. Na prática, isso entrega segurança jurídica (ato previsível, base defensável) e risco fiscal menor para o cidadão.
Jornal do Notário: A Emenda Constitucional nº 132 trouxe mudanças significativas à estrutura do ITCMD. Quais pontos o senhor considera mais sensíveis para o planejamento patrimonial e sucessório nos próximos anos?
Jefferson Valentin: Vejo quatro frentes sensíveis — e um efeito transversal — para o planejamento patrimonial e sucessório após a EC 132/2023:
1) Competência e exterior
A EC 132 incluiu o artigo 16 nas disposições constitucionais transitórias, regulamentando o disposto no art. 155, § 1º, III, da CF, ou seja, incluiu regra expressa de titularidade ativa para hipóteses com elemento de exterior (bens/direitos no exterior, doador
ou donatário residente no exterior). Isso destrava a instituição e cobrança do ITCMD nesses casos, superando o vácuo criado pelo julgamento do STF (Tema 825 e ADO 67), que vedava a exigência sem lei complementar.
2) Elemento de conexão na causa mortis (bens móveis)
A troca de “onde se processar o inventário” por “último domicílio do de cujus” elimina o incentivo a escolha estratégica de foro e a guerra fiscal do ITCMD na transmissão causa mortis de bens móveis. Para o notariado, o foco passa a ser comprovar o domicílio do falecido, padronizando checklists e reduzindo conflitos de competência entre UFs.
3) Progressividade obrigatória
A progressividade deixa de ser facultada e passa a ser exigência constitucional. Na prática, estados precisarão calibrar faixas e alíquotas, o que impacta doações em etapas e cronogramas de partilha. O desenho notarial deve evidenciar fracionamento, periodicidade, doador, donatário e somatório anual, para enquadrar corretamente a alíquota marginal.
4) Ampliação da imunidade para OSCIPs
A EC amplia o guarda-chuva de imunidades para as organizações do terceiro setor, reduzindo a carga em transmissões vinculadas a finalidades sociais. O ponto prático é comprovar a qualificação e a afetação do bem ao objeto institucional,
com documentação padrão (conforme lei complementar.
Efeito transversal: integração de Fiscos e dados
Embora gatilhada pelo IBS/CBS, a EC 132 acelera a integração entre Fiscos federal, estaduais e municipais e o compartilhamento de cadastros e bases. Isso não vale só para consumo: eleva a capacidade de fiscalização do ITCMD (cruzamento das bases disponíveis dos 3 fiscos, inclusive o Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB) criado para operacionalização da tributação do consumo). Aumenta a necessidade de zelo com as informações prestadas, visto que ações fiscais ficam mais fáceis e, consequentemente, mais frequentes.
Jornal do Notário: Em que medida a digitalização dos serviços — tanto do lado do Fisco quanto dos cartórios — tem contribuído para a transparência e padronização no recolhimento do ITCMD?
Jefferson Valentin: A digitalização vem mudando o jogo. Do lado do Fisco, servidores estão sendo capacitados em análise de dados e data lakes que integram fontes diversas estão sendo estruturados. Esses cruzamentos tornam a fiscalização mais assertiva, mais ágil e com ganhos de escala: o sistema identifica inconsistências e sinaliza possíveis inconsistências — poupando o contribuinte bem-intencionado e focando no desvio relevante. Os cartórios são um hub e repositório de informações decisivo. A integração futura via CIB tende a viabilizar mensageria estável Cartórios Administração Tributária. O resultado é transparência (regras claras, status rastreável), padronização (mesmos campos e critérios para todos) e previsibilidade para cidadãos, tabeliães e registradores — sem descuidar de LGPD e auditoria de acessos.
Jornal do Notário: Como o senhor avalia o diálogo entre a Receita Estadual e entidades representativas como o CNB/SP? Há perspectivas de ampliar essa integração técnica e institucional?
Jefferson Valentin: Hoje, o diálogo é ainda tímido — e perde-se valor dos dois lados. Receita Estadual e CNB/SP partilham o mesmo objetivo: segurança jurídica com eficiência operacional. Amplificar essa integração técnica e institucional é ganharganhar. O caminho prático passa por (i) comitê permanente Receita–CNB/SP com reuniões regulares e atas públicas; (ii) grupos de trabalho por tema, produzindo manuais e FAQs conjuntos; (iii) capacitação cruzada: fiscais treinando tabeliães em pontos sensíveis para tributação e cartórios apresentando seus fluxos e dores; (iv) métricas (redução de exigências, tempo médio de conferência, taxa de retrabalho). Com isso, ganhamos previsibilidade para o cidadão, padronização para as serventias e foco inteligente da fiscalização.
Jornal do Notário: A partir de sua experiência como auditor e pesquisador, como o senhor enxerga o futuro da tributação sobre heranças e doações no Brasil? Há espaço para simplificação, justiça fiscal e maior integração com o sistema notarial?
Jefferson Valentin: Vejo um futuro mais simples, justo e integrado para heranças e doações. A EC 132 abriu a porta para harmonização nacional e integração de dados, cabe a nós transformá-la em prática. A simplificação virá de regras claras e nacionais de conexão e de métodos públicos de valoração por tipo de bem (com safe harbors e padrão mínimo), além de guias inteligentes com campos estruturados e validação por API no ato. Justiça fiscal exige progressividade bem calibrada (protegendo pequenos patrimônios, coibindo abusos) e foco na essência das doações indiretas, mistas ou disfarçadas. E a integração com o sistema notarial é o vetor de escala: cartórios como hub de informações, CIB conectando Cartórios à Administração Tributária, e manuais conjuntos Cartórios–Fisco que convertam teoria em checklists operacionais. Sou otimista: a melhora da qualidade normativa já começou com a Reforma Tributária. Para entregar uma tributação do ITCMD previsível, célere e menos litigiosa, precisamos intensificar a atuação do Estado (atos infralegais claros, capacitação e dados) e promover uma aproximação estrutural entre Fisco, Tabeliães e Registradores. Todos ganham: o cidadão, que planeja com segurança; as serventias, que operam com padronização; e o Estado, que fiscaliza com eficiência e proporcionalidade.
Fonte: Jornal do Notário


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