(Princípio da especialidade – Sétima parte)
 
281. Tratemos, pois, agora, da especialidade do fato inscritível.
 
Peço licença para uma observação prévia e de caráter geral, que parece oportuna em ordem a prevenir um lapso na apreciação do papel da observância da forma no direito registrário. É que, com o louvável propósito de evadir excessos formalistas, convive uma consideração menos feliz acerca do que se aguarda com a segurança jurídica, esta que, sendo uma das faces do bem comum, é a finalidade específica do registro.
 
De fato, quando se pensa na dimensão positiva da segurança ex toto genere suō, ela se aproxima do conceito de expectativa ou esperança de obtenção de um dado bem (em nosso caso, um bem jurídico). E, na medida em que esse bem a que tende o registro possa, por hipótese, obter-se doutro modo que o assinado pela estrita observância do rigor formal, pareceria a alguns adequado suplantar a rigidez da forma (por exemplo, mediante o recurso à autonomia de vontades; e aqui não faltaria a corrente invocação do tópico da economia de tempo, de custos e de esforços; ou ainda a não de todo rara alusão ao papel meramente instrumental do registro público).
 
Todavia, o sentido mais próprio da segurança (ainda in suo genere) é o que a ela se atribui por uma dimensão negativa: a segurança, e esta lição é mesmo clássica e vem exprimida ao menos desde a Baixa Idade média, a segurança tende a evitar o mal −securitas respicit malum vitandum. Daí que a segurança seja mais uma oposição ao temor do que algo vinculado à esperança (assim, brevitatis studio, lê-se em admirável passagem de S.Tomás de Aquino). E, à conta de que o déficit de bem pode assumir inúmeros modos, é com o respeito hígido à forma assecuratória que se trata de prudentemente evadir, o mais possível, todos os riscos do mal que corresponda a este quadro.
 
282. Ora, ao registro público não se assina a competência de determinar directe a res iusta concreta, mas a de determinar a res certa que, indirecte et in abstractō, está afeiçoada a um dado “justo paramétrico”, a um paradigma de justo (como alguma vez se diz: um “justo estatístico”).
 
Daí que não se concedam ao registrador poderes próprios de equidade integrativa e corretiva (sobre isto voltaremos adiante).
 
283.O tema da “especialidade do fato inscritível” entronca-se decisivamente no plano deste rigor formal exigido do registro imobiliário.
 
Num primeiro momento, sua aplicação empolga separar o que pode ou não inscrever-se no registro predial. Este é o fundamento inaugural deste princípio, inibindo o acesso registral de causas não inscritíveis, de sorte que, com isto, possa evitar-se a desordem da vida jurídica que se haveria de produzir com uma política de inscrição plenária de títulos.   Dada exatamente a dimensão política do registro, com sua eficácia ordinária erga omnes, parece de evidência não convir um sistema de tal modo aberto que permita a inscrição imobiliária de não importa qual fato, ato ou negócio jurídico.
 
Tem-se à vista, por agora, a propósito, o exemplo indiscreto do registro civil brasileiro das pessoas naturais, com o fenômeno sociológico do que se vem designando de “a imaginação ao registro” −numa referência de todo paralela ao slogan da revolução francesa de maio de 1968, “l’imagination au pouvoir”. O efeito deste aperturismo é a desordem e, de logo, a inutilidade do mesmo registro: se tudo e não importa o quê (se real, ou imaginário) caiba registrar-se, nada já precisa registrar-se. O registro faz-se inútil.
 
A ideia de admitir no registro predial títulos com conteúdo arbitrário (é “a imaginação na tábula”) −a pretexto de favorecer a autonomia individual− é um modo de socialização do egotismo, e produz o resultado de apartar do registro sua vocação fundamental que é a de assegurar formalmente por ser e exatamente por ser um espelho da realidade. O fato de o hiperindividualismo expandir-se por meios jurídicos de documentação pública não impede, pelas sós difusão e acolhida social, que se esteja diante de um simples hiperindividualismo, de um egotismo que se coletiviza (o que corresponde à ideia da “sociedade de solidões”).
 
Em resumo, a “imaginação ao registro” é apenas uma espécie do gênero “insegurança jurídica”, e isto é um oposto do registro público.
 
284. Embora possam concorrer ao registro imobiliário fatos, atos e negócios jurídicos com mero status obrigacional (p.ex., quando a legislação o permita, o comodato), é de admitir que esse registro é mais adequadamente destinado à atração dos títulos referíveis a direitos reais imobiliários privados. A razão central desta (chamemo-la assim) conaturalidade entre registro predial e direitos reais sobre imóveis está no caráter absoluto destes direitos, é dizer, em sua oposição erga omnes, nota que se afeiçoa à missão publicitária do registro.
 
Mas, ao passo em que basta uma norma geral inclusiva da inscrição de todos os títulos com reflexo real de direito privado (sem, pois, necessidade alguma de elencá-los in numerō clausō e, sequer, a título exemplificativo), já, quanto aos títulos de que resultante situação meramente obrigacional, seu registro deve estar estritamente previsto em lei. Isto deriva, por manifesto, da falta de conaturalidade desses títulos de efeito obrigacional com o registro dotado de eficácia erga omnes.
 
285. A “especialidade do fato inscritível” corresponde a uma individualização ou singularização expressiva e significante desse fato.
 
Compreende, à partida, que se pontualizem o título em sentido material e o título em sentido formal: ou seja, para especializar o “fato inscritível” não apenas se considera o conteúdo jurídico (ou matéria), mas seu continente ou documento (a forma, o instrumento).
 
Nesta expressão “especialidade do fato inscritível”, usa-se, ao lado de uma acepção própria, um tropo −metonímia−, porque “fato inscritível”, stricto sensu, é um conteúdo, e não o continente ou documento que o exprime (esta é a mesma figura de quem diz “beber um bom copo” −referindo-se a um vinho de boa qualidade− ou “comer um bom prato”).
 
286. Um segundo fundamento para a especialidade do fato inscritível está em que se individualize precisamente qual direito em concreto (em favor de quem −e sob a carga de quem− recai sobre um dado imóvel singular) frui da publicidade registral.  Ora, a especialização do imóvel já se obtém com a especialização objetiva; a dos sujeitos (ativo e passivo) da relação jurídica em pauta, por igual se satisfaz pela especialização subjetiva; falta ainda, contudo, individualizar −com suas circunstâncias− o “fato inscritível” ou, se preferir, o “direito em concreto” a que a situação corresponda.
 
287. Por fim, terceiro fundamento, cabe indicar −ainda que com sujeição a variantes no tempo ulterior− a quantidade pecuniária que pode servir de base a diferentes pretensões jurídicas (p.ex., o valor da hipoteca, valor cujo pagamento integral é a condição expurgadora do gravame).
 
Aqui mais de perto se vê a ideia de determinação do fato inscritível: na Espanha, p.ex., Sanchez-Román adotou este termo −determinación− para demarcar, em caso de uma só hipoteca recair sobre vários imóveis, a quantidade do gravame incidente sobre cada prédio (a isto atribuiu-se também o nome “especialização passiva”: distribuição do crédito hipotecário por vários imóveis que lhe dêem garantia −cf. Jerónimo González; já por “especialização ativa” trata-se da determinação fracionária das contitularidades de um imóvel ou de direitos sobre ele).
 
288. Tem-se, pois, em síntese, que a inscrição deva especializar o imóvel, os sujeitos que a ele se relacionem e o fato inscritível, com todo seu conteúdo (e a menção de seu continente), desde que se trate de elementos dotados de eficácia jurídico-real ou com relevo para a individualização do título causal e do direito correspondente.
 
Não se pode, com efeito, converter o registrador em um amanuense que, sob a escusa de ser fiel à literalidade do título, inscreva no registro cláusulas convencionais destituídas de efeito jurídico-real. Não nos olvidemos, neste importante capítulo, que a inscrição no registro imobiliário goza da eficácia da legitimação registral −ou, quando seu caso, o da presunção da fé pública registrária. Admitir, sem eventual apoio exceptivo em norma da lei, a inscrição de cláusulas carentes de eficácia real é desordenar o registro de sua finalidade assecuratória.
 
289. Para o direito positivo brasileiro atual, o tema vem tratado, em caráter matriz, nos números 3 a 5 do inciso III do art. 176 da Lei n. 6.015/1973, prescrevendo-se a menção, no Livro n. 2, do “título da transmissão ou do ônus”, “a forma do título, sua procedência e caracterização” e “o valor do contrato, da coisa ou da dívida, prazo desta, condições e mais especificações, inclusive os juros, se houver”.
 
Todavia, uma excursão pela normativa extravagante dessa Lei ou mesmo por ela própria, convencerá de que muitas outras indicações possam atrair-se ao registro por força do princípio da especialidade (vidē, p.ex., arts. 1.497 e 1.498 do Código civil em vigor).
 
Prosseguiremos, versando no próximo o “princípio da legalidade”.