Todos os seres de boa vontade pensam em como colaborar para a melhoria das condições gerais de vida, a erradicação da miséria, redução da pobreza, inclusão de semelhantes no espaço de fruição dos bens da vida essenciais à configuração do mínimo existencial. Multiplicam-se as sugestões, de acordo com a concepção de vida, a ideologia ou até mesmo a idiossincrasia de quem as elabora. Nada obstante, nem todas as propostas recentemente formuladas podem ser acolhidas. Principalmente aquelas que se apropriam de experiência acumulada por um setor respeitável como o das serventias extrajudiciais. Tais iniciativas são  consideradas incompatíveis com a preservação de um nível civilizatório consolidado por uma trajetória mais do que secular e evidentemente exitosa.
 
Falo da tentativa de utilização do verbete “cartório”, para a oferta de um pretenso “cartório do futuro”, que está apostando na tecnologia batizada de “Blockchain”, para realizar, de forma empresarial e aparentemente mais simples, aquilo que as delegações extrajudiciais oferecem com exclusiva segurança jurídica e notória eficiência.
 
O “Blockchain” é por alguns considerada a maior inovação desta geração. É uma verdadeira revolução descrita no livro que leva exatamente esse nome – “Blockchain Revolution”, do escritor canadense Don Tapscott, recentemente publicado pela Editora Senai-SP. Após o surgimento da internet, abriu-se a oportunidade para a instantaneidade das comunicações, mas não se cuidou de eliminar a necessidade de conservação das informações por parte de ambos os partícipes da relação informacional. Nas transações negociais, a novidade da “blockchain” é eliminar o intermediário. Torna desnecessária a confiança avalizada, por exemplo, pelo sistema bancário e a substitui por uma confiança resultante da autonomia dos que vão transacionar valores. Confia em que a credibilidade advirá da criptografia, dos softwares e da colaboração. Por isso é que o autor do livro chama a “Blockchain” de “protocolo de confiança”.
 
A proposta de Don Tapscott é que todos os intermediários se reinventem. E se isso vale para o bem estruturado sistema financeiro, para os taxistas, para os corretores e para os que trabalham com hospedagem, o raciocínio não serve para os préstimos hoje a cargo das delegações extrajudiciais. É que estas já oferecem serviços seguros e instantâneos, pois se anteciparam na corrida digital e há muitos anos se aparelharam para que seus serviços constituíssem modelo de resposta adequada, pronta e confiável para os deles necessitados.
 
Muito antes de que o próprio Judiciário, encarregado de controlar, fiscalizar e orientar suas prestações, pensasse em digitalização, os delegados de serviços de notas e de registros públicos se atualizaram e informatizaram aquele universo cartorial, hoje irreconhecível até para seus detratores.
 
O chamado “cartório do futuro”, que teria sido criado pela startup OriginalMy, esbarra na solução que o constituinte ofereceu para a prática de atos que precisam da segurança da fé pública, monopólio exclusivo de atividades delegadas pelo Estado, à luz do artigo 236 da Constituição da República. Assim, o “registro” de contratos e criações originais na blockchain, assim como de “eventos” como nascimento e casamento, já se inserem nas atribuições dos notários e registradores, insubstituíveis por iniciativas empresariais despidas do vínculo estatal da delegação. Chamar de “cartório do futuro” um serviço de armazenamento de dados despido do caráter de autenticidade, desprovido de fé pública, a latere da estrutura prevista pelo constituinte é um ato írrito à vontade fundante. Evidentemente inconstitucional.
 
Não é verdade se possa admitir que “em vez de ir a um cartório para legitimar um acordo entre as partes, podemos usar a tecnologia como intermediária para criar um contrato inviolável”[1].
 
Não se admite desestruturar dessa maneira um sistema provido de fé pública, exclusiva daquele concursado ao qual o Estado delegou uma atividade sua, exclusivamente sua, porque insitamente estatal. Inviável prodigalizar informalmente a coexistência de inúmeros registros particulares, resultantes de iniciativas empresariais e desvinculados da ação orientadora, fiscalizadora e corretiva de um dos Poderes do Estado.
 
Todas as funções exercidas pelas atividades delegadas extrajudiciais são estratégicas e guardam estrita pertinência com os pressupostos de existência do Estado, único detentor do poder soberano. Permitir que se multipliquem sistemas de controle dos nascimentos e casamentos, produção de contratos à margem da lei, sob argumento de que se obterá uma prestação direta, barata e democrática, afastará para o infinito a possibilidade de obtenção da segurança jurídica possível, anseio de toda a nacionalidade.
 
Por isso é que os precursores de tais práticas temem a regulação, “o que – segundo eles – poderia frear a inovação”. O temor é consistente e compreensível. Nem tudo o que se afigura mais prático é suscetível de imediata absorção pela iniciativa privada. Ainda não se atingiu o nível de civilidade compatível com a extinção do Estado. Este continua a ser imprescindível à coordenação do convívio em sociedade, principalmente em fases como aquela que hoje vivenciamos, em que raros os consensos e crescente a turbulência derivada de plúrimas visões do que seja a aventura existencial.
 
Enquanto o Estado existir, legítima a delegação de funções que deveria exercer diretamente, para profissionais selecionados por mérito, em concurso público de provas e títulos, credenciados pela soberania estatal e imunes a uma concorrência inconstitucional e ilegal, além de ser deletéria e desnecessária, diante da excelência dos serviços prestados.
 
[1] Afirmação atribuída a ALBERTO LUIZ ALBERTIN, Professor da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas-SP, na reportagem de Claudia Tozetto, O Protocolo da Confiança, in OESP, 23.4.17, p.B8/B9.