Durante a vigência da Lei 8.666/93, uma questão que sempre vinha à tona e gerava controvérsias nos Tribunais de Contas e no Judiciário era a possibilidade de alteração de documentação ou de execução do contrato entre matriz e filial nos processos licitatórios.

A Lei 8.666/93 não dispunha de dispositivo expresso sobre a questão e, ao longo do tempo, tanto na esfera controladora, quanto na judicial, bem como nos pareceres normativos, especificamente nos pareceres da Advocacia-Geral da União, foi se firmando entendimento favorável à possibilidade de alteração, embora com uma série de ressalvas que serão apresentadas a seguir.

Para elucidar o tema, é fundamental compreender as diferenças entre matriz e filial e analisar se essas distinções impediriam ou não a substituição de uma pela outra durante o processo licitatório ou a vigência do contrato administrativo.

Pois bem.

Nas lições de direito empresarial, os conceitos de matriz e filial se enquadram na natureza jurídica de estabelecimento comercial. Assim, não alteram ou criam personalidade jurídica distinta da sociedade a quem pertencem, apesar de possuírem Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) com numeração diferenciadas.

Nesse sentido, Fabio Ulhoa Coelho ensina que a pessoa jurídica pode ter um ou mais estabelecimentos comerciais, escolhendo qual seria o principal, ou seja, qual seria a matriz e elegendo outros, secundários, como filiais. Entretanto, mesmo com essa divisão, a pessoa jurídica é una e exerce os mesmos direitos em cada um dos seus estabelecimentos, sendo, portanto, irrelevante a distinção entre matriz e filiais para o direito comercial.

STJ vê mesma pessoa jurídica em matriz e filial

O STJ, por sua vez, ao analisar o assunto também entendeu que os estabelecimentos matriz e filial integram a mesma pessoa jurídica, são partes dela e, obviamente, não possuem personalidade jurídica própria, uma vez que matriz e filial de uma pessoa jurídica são consideradas estabelecimentos comerciais da mesma pessoa jurídica.

Dessa forma, pelo já exposto, não há distinção entre matriz e filial, pois ambas seriam integrantes da mesma pessoa jurídica. Mas então resta a seguinte questão: Qual seria o porquê da diferenciação do CNPJ entre matriz e filial que causa tanto tormento na troca de uma pela outra nos processos licitatórios? A resposta também é bem simples: matriz e filial possuem números distintos de CNPJ apenas por razões fiscais e tributárias.

No Brasil, há uma confusão indevida de que CNPJ teria vinculação à personalidade jurídica de quem lhe pertence. Além do caso em comento, podemos citar a mesma confusão em relação às serventias extrajudiciais, popularmente conhecidas como cartórios. Cada unidade extrajudicial possui um CNPJ para recolhimentos tributários. Contudo, essas unidades não possuem personalidade jurídica, uma vez que a atividade notarial e registral é exercida em caráter privado por delegação do poder público a um delegatário pessoa física. Assim, cartórios não possuem personalidade jurídica em que pese possuírem CNPJ.

Com efeito, já se estabelecem algumas premissas até então: a primeira é a de que matriz e filial são estabelecimentos comerciais da mesma pessoa jurídica e a segunda de que CNPJ distintos destes estabelecimentos servem apenas para fins de recolhimentos tributários, não atribuindo personalidade jurídica distinta da sociedade a qual pertencem.

Logo, em sendo matriz e filial partes integrantes de uma única pessoa jurídica, não haveria impedimento para a troca de um estabelecimento pelo outro em processos licitatórios, apesar de possuírem CNPJ distintos. Esse também é o entendimento do STJ, que possui jurisprudência pacificada de que é possível a execução do contrato administrativo por filial de pessoa jurídica que participou de licitação pública com os dados do estabelecimento matriz, exigindo-se, no entanto, comprovação da regularidade fiscal de ambos os estabelecimentos.

Troca entre matriz e filial em procedimentos licitatórios

Superadas as questões relativas à natureza da matriz e da filial e a possibilidade de troca entre ambas nos procedimentos licitatórios, passamos então às condições em que essa troca pode ser realizada, sem macular os certames correspondentes.

Os requisitos para a troca de estabelecimentos comerciais em procedimentos licitatórios, como já mencionado, não foram fixados pela legislação, mas em julgados dos Tribunais de Contas pareceres da AGU e instruções normativas desses mesmos órgãos.

Assim, transcrevo trechos elucidativos do Parecer 14/2017/DECOR/CGU/AGU, citado no Parecer 00092/2019/DECOR/CGU/AGU, ambos da Advocacia-Geral da União:

30. Dessa forma, quem participa de uma licitação pública, subscreve um contrato administrativo e executa o objeto do contrato é uma pessoa jurídica, não seus estabelecimentos. Isso é inegável. O fato de o número de inscrição no CNPJ de determinado estabelecimento da pessoa jurídica constar da proposta vencedora e do contrato administrativo não faz de tal estabelecimento o licitante vencedor ou o contratado. Repita-se: a pessoa jurídica é quem possui personalidade jurídica e, por isso, pode figurar como licitante e contratada.

40. A rigor, a substituição da matriz pela filial parece uma questão interna da pessoa jurídica vencedora da licitação. Ocorre que tal questão deve ser submetida à contratante para aferição dos impactos tributários no contrato vigente, eis que não pode gerar prejuízo à Administração contratante. Afinal, não se pode olvidar que a sociedade vencedora da licitação tem de manter as condições da proposta.

No mesmo sentido, para uniformização de procedimentos no âmbito federal, foi expedida, pela AGU, a Orientação Normativa 66 de 29 de maio de 2020, confirmando haver respaldo jurídico para execução de contrato administrativo por filial de pessoa jurídica, cuja matriz participou da licitação pública correspondente ou vice-versa, desde que observadas as seguintes premissas:

a) seja certificada a regularidade fiscal e trabalhista da empresa matriz e da filial da pessoa jurídica;

b) haja motivada avaliação técnica a respeito da repercussão tributária da medida no âmbito do contrato administrativo, de maneira que:

b.1) não seja admitido que a administração pública suporte prejuízo nem qualquer ônus financeiro adicional;

b.2) seja assegurada a redução equitativa do valor do contrato administrativo caso certificado que a alteração importa diminuição dos custos dispostos na proposta da empresa contratada; e

c) a alteração no contrato se formalize mediante termo aditivo, cujo extrato deve ser publicado no Diário Oficial da União.

Ao que parece, segundo entendimento da AGU no Parecer n. 00825/2023/NLC/ETRLIC/PGF/AGU, as ressalvas da Orientação Normativa nº 66-2020 se justificam, na medida em que um estabelecimento filial pode estar submetido a regime tributário mais ou menos favorável que o da matriz, em função de sua localização geográfica. Dessa forma, a depender do tipo de relação contratual, os encargos tributários podem ter repercussão sobre o valor da contratação, resultando na mudança de premissas de valoração dos encargos incidentes sobre a atividade empresarial, inicialmente postas.

Vale ressaltar que, além das vedações da referida orientação normativa, haveria também a vedação de troca, se o edital expressamente proibisse tal prática por violação ao instrumento convocatório. É importante destacar também que não haveria a possibilidade de matriz e filiais participarem do mesmo certame com propostas diversas para não haver burla ao procedimento.

Jurisprudência de Tribunais de Contas e STJ

Observe-se que a jurisprudência tanto dos Tribunais de Contas quanto do STJ só atestavam a legalidade do certame, quando, no procedimento licitatório, a totalidade da documentação para participação era da matriz ou da filial, não podendo a pessoa jurídica ora apresentar documento de um estabelecimento, ora de outro, exceto em relação àquelas certidões que são emitidas somente em nome da matriz, caso a participante seja a filial.

Outro ponto importante é o relativo ao faturamento das respectivas notas fiscais para pagamento do objeto do certame. A pessoa jurídica pode possuir vários estabelecimentos comerciais que são partes integrantes de uma mesma empresa. Contudo, a emissão das notas fiscais deve sempre considerar o estabelecimento que efetivamente executou o contrato, não sendo lícito adotar conduta distinta a esta.

Esse, portanto, era o regramento do tema sob a égide da Lei 8.666/93. Mas e a nova lei? Consolidou o entendimento jurisprudencial do STJ, do TCU e o normativo da AGU sobre a matéria?

A Lei 14.133/21, em seu texto, consolidou uma série de entendimentos jurisprudenciais e instruções normativas e regramentos federais, positivando-os e dirimindo várias controvérsias existentes em matérias controvertidas. É possível que tenha resolvido também, definitivamente, a controvérsia entre matriz e filial?

Definitivamente, não.

Infelizmente, a Lei 14.133/21 não dispôs expressamente sobre o tema, de modo que todo o exposto até então para a Lei 8.666/93 continua a nortear a solução da referida controvérsia, contudo, apenas de forma consuetudinária.

O legislador optou por continuar silente a respeito do assunto, e seguimos com a controvérsia resolvida por entendimentos doutrinários e jurisprudenciais.

Assim, definitivamente, a lei perdeu a oportunidade de regulamentar esse impasse e de positivar todo esse regramento para trazer maior segurança jurídica em relação à matéria.

 

Brasil. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Brasília (DF): Presidência da República; 1993 [citado em 2024 out. 29]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm

Brasil. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Brasília (DF): Presidência da República; 2021 [citado em 2024 out. 29]. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm

Coelho F. U. Manual de direito empresarial. 27. ed. São Paulo: Editora Saraiva; 2022.

Advocacia-Geral da União (BR). Parecer nº 00092/2019/DECOR/CGU/AGU. Brasília (DF): Advocacia-Geral da União; 2019.

Advocacia-Geral da União (BR). Parecer nº 00825/2023/NLC/ETRLIC/PGF/AGU. Brasília (DF): Advocacia-Geral da União; 2023.

Advocacia-Geral da União (BR). Orientação Normativa nº 66/2020. Orientações sobre procedimentos administrativos federais. Brasília (DF): Advocacia-Geral da União; 2020.

Fonte: Conjur

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