(Princípio da legalidade -Décima-terceira parte)
 
386. A prudência, já ficou dito, é um dos cinco hábitos intelectuais (ao lado da sabedoria, da ciência, do intelecto dos primeiros princípios e da arte). É hábito −mais exatamente, uma virtude− da razão prática que considera tanto o universal (primeiros princípios da ordem prática, normas de razão superior e de razão inferior), quanto, de modo particular, a situação concreta do caso.  Ou seja, a prudência é a reta razão do agir em concreto, e sua função −no plano formalmente cognoscitivo− é a de indicar a verdade prática (o medium) das virtudes morais (entre elas a justiça) virtudes morais que não são cognoscitivas.
 
387. O discurso prudencial remata sua fase cognoscente com um juízo de conclusão, que é a consciência moral.
 
Já antes se deixou assentado, a consciência (moral) é o último juízo da argumentação prática, e consiste no liame entre um dado conhecimento e uma coisa (ou caso), visando a uma ação (actio) concreta. Situa-se a consciência (moral) em um estádio vizinho à reta eleição de meios e à fase preceptiva ou de imperium, de modo que é a aplicação de dados princípios (especulativos e normativos), bem como de razões superiores e inferiores, que já foram objeto de conselho ou deliberação. Trata-se, pois, de uma aplicação a ações concretas e singulares, que a prudência impera executar (imperium prudentiæ).
 
388. O que se pode nomear “prudência registral” (na medida em que seja uma das espécies da prudência jurídica) atrai uma complexa congregação cognoscitiva, desde um conhecimento de caráter universal, que diz respeito aos princípios e às leis da conduta (entre elas, as regras humanas positivadas determinativas, que são condicionamentos externos e variáveis para a ação) até um conhecimento de natureza particular, que concerne às circunstâncias do caso objeto (é dizer, da ação a que se visa). Este último conhecimento, o do singular, é próprio da cogitativa humana ou ratio particularis (trata-se de um sentido interno que, sob o influxo do entendimento, capta os entes e os valores particulares).
 
Importa de logo observar a evidente possibilidade de, por meio do saber prudencial, atingir-se a verdade, mas, por igual, a possibilidade de, a propósito dessa verdade, obter-se somente uma certeza que, no tocante com o caso singular, seja a própria de uma argumentação sobre matéria contingente: é dizer, uma conclusão apenas provável.
 
388. É que, de um lado, o conhecimento humano sensível pode conhecer os entes particulares, mas deles não pode conhecer as essências individuais, e, de outro lado, o conhecimento intelectual, hábil a apreender as essências, não as apreende individualmente.
 
Daí que a retidão do saber prático se ache não em sua conformidade com uma obra transcendente (ou seja, que o ultrapasse), mas apenas com o princípio diretivo do ato racional.
 
Para mais, e não bastassem estas dificuldades, calha ainda que as normas de conduta não se apresentam como abstrações com suficiente plenitude de sentido, mas como enunciações de um dever ser cuja exata compreensão não pode prescindir da experiência vital.
 
Assim, a prudência, ex toto genere suo, é uma virtude essencialmente prática, equivale a dizer, em palavras de um autor  contemporâneo, a arte de viver retamente e tal como se deve: e, já agora especificamente, a jurisprudência (nela incluída a prudência registral), dela pode dizer-se ser a arte de decidir juridicamente de modo reto.
 
389. A prudência registral −ou, em outros termos, o exercício do saber prudencial próprio do registrador (saber que não afasta o concurso de outros tipos de saber jurídico, entre eles o saber técnico)− remata, no plano cognoscitivo, no juízo da consciência. O imperium subsequente e o opus sucessivo (o registro e a averbação) constituem um posterius à conclusão do discurso prudencial: a prudência e a virtude da justiça são perfectivas do agente e não de uma obra que o transcenda.  Assim é que, tratando-se de um conhecimento prático (tal o é o direito), a consciência diz diretamente respeito à ação, embora se reflita no opus que possa acaso resultar dessa ação.
 
Ora, sendo a consciência, portanto, um conhecimento de princípios e leis (lei natural, leis positivas, circunstâncias reais de cada caso) aplicado (ele, conhecimento) a esse caso, tem-se o sujeito agente deve conhecer o fim da ação (finis actionis) e os meios para a consecução desse fim (media ad finem).
 
Versando-se ações contingentes (como é próprio do discurso prático-prudencial, por destinar-se a bens concretos, singulares), tem-se exatamente definida a circunstância de que essas ações, por serem contingentes, não são impostas inelutavelmente a quem julga. Sabe o julgador que tem a liberdade de decidir se deve ou não agir e de que modo fazê-lo.
 
390. O modelo da independência jurídica do registrador, como foi antecipado, ajusta-se, no Brasil, ao direito posto: notário e oficial de registro são “profissionais do direito”, “dotados de fé pública” (art. 3º da Lei n. 8.935, de 1994), fruindo “de independência no exercício de suas atribuições” (art. 28, Lei cit.).
 
Esse modelo está fundado em uma sólida teoria dos saberes jurídicos e corrobora-se pela tradição. Se, pois, ele se afeiçoa ao direito posto no Brasil, incluso o constitucional, não por isto a independência jurídica do registrador deixa de ser, sobretudo, resultante do status de uma qualificação definidamente pessoal (o da consciência), e, portanto, assentada em sua liberdade (que se espera bem formada).
 
A consciência é definidamente pessoal e tem um dado atributo de senhorio quanto às ações contingentes. Assim é que a supressão da independência pessoal importa no perdimento da possibilidade de formar consciência no agente. No plano da independência jurídica do registrador, suprimi-la implica alterar o caráter prudencial próprio da atividade, convertendo-a em mera função poiética ou técnica, sob o comando de terceiros.
 
Decidir, pois, que futuro haverá para as instituições do registro (e não menos para a das notas) é escolher, como faz quem se adverte responsável pelo tempo que passa, se essas instituições detêm liberdade jurídica para sua atuação dita jurídico-profissional ou liberal. Sem essa liberdade, para além de não termos já presentes essas instituições (mas outras…), correm risco de com a morte dessa independência morrerem também a autonomia de vontades e a propriedade particular. Há sempre um risco nas decisões, mas é esse risco exatamente o que mais valoriza a liberdade.