(Princípio da unitariedade da matrícula – Quarta parte)
 
650. O fólio real, pois, exerce função substituinte das antigas defensas materiais −paredes, umbrais, muralhas− que guardavam, de logo, as propriedades privadas e, em seguida, as próprias cidades. Mas, indo além disso, o fólio real é ainda a fonte de recolha e expressão da consciência individual e política de territoriedade, não só um símbolo, mas também um meio de efetivação progressiva das demarcações possessórias e dominiais, com que se propicia, dentro do âmbito patrimonial (portanto, sem aqui recusar a muita relevância da esfera metapatrimonial), a paz comunitária, que, naquele âmbito −o patrimonial−, é fruto da segurança jurídica das posses e dominações (em suma, saber o que é de um e o que é de outro).
 
Nem sempre se tem dado a atenção que cabe tributar à importante função não apenas social, mas também política que o fólio real desempenha. Tomemos à conta de exemplo o caso da Suíça, por ser um dos certamente mais emblemáticos da história humana, pondo à mostra que seu território, com as agruras de sua condição em meio à hostilidade entre os povos germânicos e românicos, foi também a causa fundamental −ao lado do reconhecimento da autonomia dos grupos nele situados− da construção histórica da Confederação suíça. Foi mesmo a progressiva demarcação desse território o que permitiu a afirmação dos direitos de seus possuidores e a formação da consciência de territoriedade que, aliada aos interesses comuns de proteção, permitiram o surgimento da grande nação suíça.
 
[Seguiremos aqui, sobretudo, as passadas seguras de Gonzague de Reynold (in La démocratie et la Suisse e Conscience de la Suisse)].
 
Diz de Reynold que, para a realidade suíça, “la terre se présente la première dans l’ordre de l’existence”, porque, em palavras do historiador francês Ferdinand Lot, “la géographie c’est la nature des choses”.
 
Na verdade, a Suíça origina-se de um mosaico de posses e dominações cujos limites eram de todo imprecisos: é de Eugenio Vegas Latapie a observação de que, ao lado dos grandes feudos dos Habsbourg, dos territórios do Sacro Império Romano, das propriedades de vários outros senhores feudais, de bens eclesiásticos sob o senhorio dos bispados (assim, na Basileia, em Lausanne, em Genebra) e de bens abadais (p.ex., Reicheneau), havia no espaço medieval do que viria a ser a Confederação suíça muitas cidades e vilas livres (Zurich, Lucerna, Berna), e que foi desta diversidade de possessões mal definidas e domínios mal demarcados −a merecer de de Reynold o dístico Helvetia gratia Dei regitur et confusionum hominum (que se pode traduzir livremente: “Suíça, regida pela graça de Deus e as confusões dos homens”)−, mas se dizia que foi desta variedade de posses de início mal delimitadas, progressivamente definidas, e de domínios diversificados, cujos direitos se foram garantindo em acordos sociais, que nasceu, com os pactos sobre os limites das posses e a afirmação da autonomia das regiões, a pujante Confédération suisse, consequente do “federalismo da terra” (fédéralisme de la terre), fruto das vicissitudes, é verdade, de um território que, dando albergue a pequenos diferentes grupos −diferentes pela raça, diferentes pela origem, diferentes pelo idioma, diferentes pelo estado social−, pôde enraizar um povo e por ele defender-se.
 
Assim, foi a aliança dos vizinhos −l’alliance des voisins− que permitiu à Suíça, solidada num território em que se deram limites certos às possessões, unificar uma rede de autonomias, de tal sorte que a terra helvética foi o lugar de enraizamento de grupos familiares, com seus direitos, com seus privilégios, que −de baixo para cima (de bas en haut)− gestaram um estado não centralizado, nem centralizador, um estado respeitoso da justiça das posses e dos domínios particulares.
 
De modo que, tal o disse Gonzague de Reynold, a Suíça é um tecido de células naturais, uma rede de autonomias locais −“la Suisse est un tissu de cellules naturelles, un réseau d’autonomies locales”−, e tudo isto se deve a que seu “mosaico de lugares” (mosaïque de sites), tanto premido de necessidades comuns, quanto alimentado de comuns sentimentos, edificou, ao largo do tempo, uma consciência nacional. “Telle est la leçon de la terre”, matriz das autonomias locais da Suíça, exemplo histórico da função política emanante das demarcações territoriais quer corpóreas (marcos, valas, paredes, umbrais, muralhas), quer incorpóreas (o fólio real), com que se asseguram e protegem, distinguindo-os, os domínios e as possessões que são de uns e as possessões e os domínios que são de outros.
 
É assim muito fácil compreender que, embora vise o registro imobiliário sobremodo à organização da propriedade privada, seu fim não seja só, nem principalmente, particular, não seja só, nem principalmente individual, mas antes de tudo um fim coletivo, um fim político: o de, pela ordem das dominações, fomentar e preservar a paz das cidades; pela definição dos domínios, a tranquila segurança que só pode advir de uma reta ordenação das coisas.
 
Como é possível −vae nobis!− que em nosso tempo tantos haja que não pareçam compreender muito a importância política dos registros imobiliários, e que haja ainda quem lhes proponha a extinção −é dizer, a entrega de suas funções à instabilidade própria dos mercados− ou a absorção por um estado centralizador, quando exatamente a concreta, segura e bem ordenada autonomia das dominações privadas é o maior obstáculo à arbitrariedade das finanças e do poder estatal?
 
651. No Brasil, o fólio real −matrícula−, observada, em cabeçalho, a identificação do cartório em que o ato se realiza, o número da matrícula (cuja ordem seguirá de modo infinito −n. 1 do inc. II do § 1º do art. 176 da Lei n. 6.015, de 1973) e a data da escrituração, impõe-se a identificação do imóvel, mediante a indicação:
 
− “se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do Ccir [Certificado de Cadastro de Imóvel Rural expedido pelo Incra -Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], da denominação e de suas características, confrontações, localização e área” (letra a do n. 3 do inc. II do § 1º do art. 176 da Lei n. 6.015);
 
− “se urbano, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver” (letra b do n. 3 do inc. II do § 1º do mesmo art. 176).
 
Tal o deixamos versado (cf. itens 240 et sqq. no tomo II deste nosso Registros sobre Registros) enunciar a identidade (propriamente dita) de um imóvel corresponde só à sua determinação.
 
Mas parece melhor entender que, a despeito de a normativa brasileira de regência referir-se à “identidade” (ou determinação) do imóvel, ela propende a exigir (i) sua especialização e (ii) sua “demonstração”.
 
Pela especialização, distingue-se o imóvel objeto, estrema-se de outros entes singulares. E isto é o mesmo que descrever um imóvel, exprimir o que o torna algo indivíduo no campo de sua espécie; é o recorte de sua natureza concreta no campo de sua natureza propriamente específica (ou seja, de espécie; da mesma sorte, pode exprimir-se quem foi Alessandro Manzoni ou o quem foi Chesterton, distinguindo-os no conjunto de outros entes humanos).
 
Embora não se trate, com a identidade do imóvel a que se refere a Lei nacional n. 6.015, de uma definição em sentido próprio −por não ser mesmo viável definir indivíduo algum−, sua descrição, de algum modo (lato sensu), pode reputar-se uma quase definição. Mas se isto calha bem ao étimo de “definir” (de + finire: pôr limites, expressar termini), porque a descrição de imóveis comumente exprime lindes, termos, limites, apenas responde ao quod sit, ao que é um dado imóvel, mas não esclarece algo que também se reclama do registro imobiliário: a “demonstração” do imóvel, a confirmação de sua existência real.
 
Este discrimen entre definição e demonstração deve-se ao gênio de Aristóteles (vidē Analíticos posteriores, Bkk. 91 a et sqq.), e molda-se, com efeito, ao caso do registro de imóveis, porque não basta a um sistema formal de segurança imobiliária “definir” um prédio tabular (ou seja, enunciar-lhe a determinação e a especialidade), senão que deve o sistema, além disto, assentar a existência extrarregistrária atual desse prédio.
 
Com efeito, o imóvel, como toda coisa contingente, é uma potencialidade ou possibilidade finita, um ente não necessário, quer dizer: algo que pode realmente existir no mundo físico, mas pode realmente (já ou ainda) não existir nele. E, por dotar-se de uma virtualidade finita, cada imóvel, num registro que se justifica pela dação de segurança jurídica, deve ter sua existência real afirmada no tempo presente de uma inscrição com eficácia vigorante.
 
Não cabe ao registro inscrever imóveis que já ou ainda não tenham existência física real, ou, quando isto se admita de maneira exceptiva, sua futuridade (que sempre será condicional, nota bene, em razão da mesma contingência do finito) deverá ser manifesta na inscrição.
 
Desta maneira, a identidade do imóvel, na matrícula, é sua determinação, sua expressão indivídua e também a assertiva de sua existência corpórea no mundo real.