(Princípio da unitariedade da matrícula – Sexta parte)
 
657. Façamos agora um excurso com o fim de apreciar, brevemente, a amplitude do campo jurídico da ideia de união, desunião e reunião de coisas, porque é isto que constitui o pano de fundo do conceito da unitariedade registral, ou seja, uma unidade corpórea, material, quase sempre entre imóveis (mas que também pode empolgar coisas móveis), que é a base objetiva da unitariedade tabular.
 
Própria e primeiramente, a ideia de unitariedade do imóvel no fólio real indica, efetivamente, o imóvel registral (o imóvel tabular) que, ordinariamente, é certo, corresponde a uma unitariedade substantiva ou material, que, entretanto, já o vimos, pode faltar, na eventual desconformidade entre, de um lado, a unidade registrária do imóvel e, de outra, sua não unicidade substantiva: sirvam aqui de exemplo os casos tanto das unidades autônomas nos condomínios edilícios, em que os fólios correspondentes concernem a frações ideais do terreno, quanto das separações físicas de glebas ou lotes por aberturas de vias, enquanto preservada, embora, sua unidade familiar, econômica, social cēt..
 
O relacionamento rotineiro entre a unitariedade formal (ou tabular) e a unitariedade substantiva dos imóveis, ainda que comumente estável, não se imuniza de vicissitudes materiais e jurídicas que podem afetá-los: assim, as segregações (ou separações, divisões, reduções: parcelamentos, loteamentos, desmembramentos, desdobros, perdimentos por avulsão, aluvião, etc.). e as agregações (de glebas, de lotes, ou ainda, v.g., pelos fenômenos aluviais ou avulsivos). Usam-se também entre nós, ainda que com menor frequência, os vocábulos “anexação”, “aumento”, “acréscimo” (comumente complementados pela expressão “de área”), e, em contrapartida, desanexação, redução, diminuição, para apontar os conceitos de agregação e de segregação imobiliárias.
 
Fala-se ainda, tal o uso corriqueiro na praxe registral brasileira, em “unificação” de imóveis −ou em sua “fusão”−, à maneira de um gênero idôneo para abrigar várias espécies de união real: (i) de um prédio, já individualizado e autônomo, com outro imóvel, também singularizado e dotado de autonomia; (ii) de um imóvel, por igual individuado e autônomo, com parcela de outro imóvel, também individualizado e autônomo; (iii)de parcelas de prédios singularizados e autônomos; (iv) de um imóvel, individuado e autônomo, com partes transitoriamente mobilizadas que, repentina ou paulatinamente, se desprendam de um ou mais prédios, ainda os de cuja origem se desconheça.
 
658. Proveniente do latim agregatio, agregationis (junção, acumulação) e do verbo agrego (juntar, associar), o vocábulo “agregação” remonta ao indo-europeu ger-, com a acepção de reunir. Daí também derivam as palavras “grêmio” (corporação em que se associam pessoas), “grei” (propriamente, rebanho de gado miúdo; em acepção figurada: partido, nação, povo), “egrégio” (o notável, o que se destaca da grei), “gregário” (o que vive em bando). No âmbito cosmológico, agregação é (i) a reunião de substâncias ou de suas partes, mas pode ser ainda (ii) uma junção de forma a matéria prima (a forma reúne-se com a matéria, para determiná-la) e até, fora a hipótese anterior, (iii) a cumulação, desde que não a título de forma substancial, de um espírito a certa matéria (p.ex., é o caso da infestação, matéria própria da teologia).
 
659. Não é de todo incomum, sobretudo na esfera do direito internacional público, que se prefira ao termo “agregação” o vocábulo anexação, que também pode usar-se −e alguma vez se emprega− no domínio do direito registral.
 
A anexação no direito internacional público abrange diferentes hipóteses de ocupação de territórios (i) não-submetidos à soberania de outro poder político (inventio), (ii) de nova formação (assim, p.ex., ilhas emergentes), (iii) alienados e (iv) abandonados (controvérsia histórica à parte, há quem diga ter a Espanha abandonado as ilhas de Palmas, Malvinas e Carolinas, e estas, res derelictae, ocuparam-nas de maneira respectiva os Países Baixos, a Inglaterra e a Alemanha).
 
A primeira destas espécies concerne ao título de empossamento por invenção −ainda que possa demandar o concurso de uma autoridade confirmadora (p.ex., de uma bula papal; assim se deu com o Tratado das Tordesilhas, expedido pelo Papa Alexandre VI, que está na origem da anexação do território brasileiro à Coroa portuguesa, por direito de invenção ou descoberta). Isto não se confunde com a ocupação pela força de armas (debellatio), a que o direito internacional não reconhece validez (ad exemplum, a anexação de inúmeros territórios à antiga Rússia soviética).
 
A alienação de territórios é, de comum, onerosa (v.g., a aquisição brasileira do hoje Estado do Acre, pagando-se à Bolívia dois milhões de libras esterlinas; ou o caso dos Estados agora norte-americanos da Louisiana e do Alasca, adquiridos, respectivamente, da França e da Rússia). A cessão gratuita de território constitui, muitas vezes, de fato, uma capitulação política que frequenta os acordos pós-guerra (ex., a coacta cessão francesa da Alsácia-Lorena à Alemanha, em 1871, e sua restituição também forçada à França, nos termos do Tratado de Versalhes, em 1919). Um outro exemplo de alienação de territórios deu-se, entre nós, com a permuta de Amarração, no Ceará, pela região piauiense de Príncipe Imperial.
 
Averbe-se, ainda a título ilustrativo, não ser caso de anexação territorial a união real de Estados −p.ex., Dinamarca-Islândia (1918), Polônia-Lituânia (1569 até os fins do séc. XVIII), Suécia-Noruega (1814-1905), Áustria-Hungria (1867-1919), República Árabe Unida (Egito-Síria: 1958-1961)−, ainda que, de fato, em algumas situações, caiba reconhecer essa anexação, submetendo-se um Estado a outro (v.g., a Albânia relativamente à Itália, em 1939), sob a etiqueta imprópria de união real ou até mesmo de federação de Estados (caso típico é o da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, desde 1923 até 1991).
 
Na perspectiva que mais interessa ao registro imobiliário, a anexação corpórea corresponde, com o aumento (e correlata redução) de quantidade e eventual alteração de qualidades dos prédios, a uma transformação da substância do imóvel (ou, como é comum, dos imóveis).
 
Equivale a dizer que com a anexação ou agregação física sempre se forma, substancialmente, um novo imóvel, resultante do acréscimo. Pode formar-se, ainda substancialmente, um outro novo imóvel, resultado do remanescente, se o caso, após o destaque de uma sua parte.
 
660. Tratando-se do uso da palavra “acréscimo”, é comum referir o direito de acréscimo ou direito de acrescer à teoria das sucessões mortis causa. Corresponde aí ao aumento da parte do benefício sucessório cabível a herdeiros ou a legatários com o quinhão que outros favorecidos (co-herdeiros ou colegatários) não venham a receber. Essa matéria, no atual direito civil brasileiro, tem assento positivo nas normas dos arts. 1.941 a 1.946 do Código civil de 2002.
 
Há, entretanto, um direito de acrescer apropositado ao plano dos direitos reais, como se lê no art. 1.411 do mesmo Código civil: “Constituído o usufruto em favor de duas ou mais pessoas, extinguir-se-á a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão desses couber ao sobrevivente”.
 
Vejamos brevemente um pouco desta matéria, porque ela tem reflexos para o registro imobiliário.
 
Tal bem se sabe, diversamente do, entre nós, atualmente vedado usufruto sucessivo, a norma do referido art. 1.411 permite o usufruto simultâneo com excepcional direito de acrescer. Se, com o usufruto sucessivo, a situação hipoteticamente inaugural é a da fruição individual da res, que, com a morte do usufrutuário, se transmitiria para o desfrute de um sucessor, já no usufruto simultâneo, há, de início, pluralidade de usufrutuários, de maneira que aos supérstites se concede −tanto que isso, exceptivamente, se haja convencionado ao instituir-se o usufruto−, o direito de aumentar seu quinhão usufruível com a parte que tocava ao pré-morto.
 
Assinalável é que essa norma, a do art. 1.411 do Código civil de 2002, somente se aplique ao usufruto constituído inter vivos, porque, no tocante com o usufruto mortis causa (que pode ser objeto de legado –art. 1.921), incide a norma do art. 1.946 do Código: tratando-se de legado conjunto, há direito de acrescer; diversamente, se não há conjunção dispositiva para o usufruto, o quinhão reagrega-se ao núcleo dominial (consolidação tendencial da propriedade ou regresso aos herdeiros), tanto quando se dá em caso de legação de certa parte do usufruto (par. ún. do art. 1.946).
 
Não faltam em nosso direito posto algumas outras referências ao direito de acrescer (cfr., p.ex., quanto à doação –par. ún., art. 551, Cód.Civ. de 2002: “Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual.  Parágrafo único. Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo”; e à constituição de renda –art. 812: “Quando a renda for constituída em benefício de duas ou mais pessoas, sem determinação da parte de cada uma, entende-se que os seus direitos são iguais; e, salvo estipulação diversa, não adquirirão os sobrevivos direito à parte dos que morrerem”).
 
661. Há algo mais porém: acrescer corresponde à idéia de aceder, tal que acréscimo é também acessão, abrangendo, com interesse registrário, os casos de avulsão, aluvião, abandono de álveo etc.
 
Do latim accessio, accessionis −com o significado de acréscimo, aumento− tem o vocábulo ”acessão” mais frequente uso jurídico com seu sentido de modo de aquisição da propriedade, tanto móvel, quanto imóvel, correspondente ao fato de uma coisa corpórea acrescentar-se ou aceder inseparavelmente a outra: aquela, a coisa que acede (coisa acedente), tem-se por acessória, é a que sobrevém a uma substância a que se acrescenta (coisa acedida) e que é a coisa principal; a coisa acedente, se existia em si, passa a existir na coisa acrescentada ou acedida, torna-se ens in alio, um ente em outro, que o recebe: são conhecidos, a propósito, os aforismos accessio cedit principali; res accessoria sequitur sortem rei principalis cēt.
 
Essa principalidade da coisa acedida, porém, nem sempre se concerta com a expressão econômica ou com a valorização social do fenômeno: assim é que, nos condomínios em edifício, a coisa acedente (a unidade condominial construída) é ordinariamente mais expressiva, no plano econômico e social, do que a correspondente coisa acedida (na esfera jurídica, a relacionação dá-se com uma fração ideal do imóvel); fala-se aí em acessão invertida.
 
A acessão, no plano cosmológico, testemunha a contínua mobilidade −qualitativa, quantitativa e de lugar− das coisas corpóreas. O direito recolhe-a, seja ela fato natural (p.ex., a avulsão e a aluvião), humano (a edificação) ou mescla de ambas as causas (plantação), e tem-na como um modo aquisitivo de domínio. A inseparabilidade do que acede pode resultar de uma quase impossibilidade fática da separação ou de uma escolha normativa.
 
Frequentemente, é o proprietário da coisa acedida −coisa principal− quem adquire o que, de maneira inseparável, a ela se acrescenta, a coisa acedente.
 
Conheceram-se, no entanto, outras soluções jurídicas: (i) a compropriedade ou (ii) a preservação dos domínios anteriores, a despeito da nova integridade corpórea.
 
De comum, entretanto, a aquisição dominial, pelo dono da coisa acedida, quanto à nova parte integrante da res, implica o perdimento da (eventual) autonomia da coisa acedente como objeto de direito. Perda eventual de independência como objeto jurídico, porque bem pode dar-se o caso de que a coisa acedente fosse antes parte já integrante de outra substância.
 
O que se designa acessão imobiliária é não apenas a acessão de coisa acedente imóvel a coisa acedida imóvel (formação de ilhas, aluvião, avulsão e abandono de álveo ou acessão fluvial; cf. na legislação brasileira: art. 1.248 do Código civil de 2002, equivalente ao art. 536 de nosso Código civil de 1916, e o Código de Águas: Decreto n. 24.643, de 10-7- 1934), mas também a acessão de coisa móvel a imóvel: plantação (plantatio) e construção (edificatio), a que corresponde o aforismo superficies solo cedit. Não menos se ignorem as acessões espirituais (a de direitos sobre coisas).