Embora os cuidados dispensados ao cônjuge não sejam passíveis de remuneração ou indenização, o marido pode reservar bens para ajudá-la na sobrevivência, mesmo quando o regime for de separação total dos bens, desde que os herdeiros fiquem com 50%.
Com esse fundamento, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu parcialmente um termo de ‘‘doação remuneratória’’ a uma viúva, a título de gratificação, assinado pelo marido antes de morrer. Os bens se resumem à cessão de valores de precatórios que o homem havia ganhado em ações contra o estado e a Previdência gaúcha (Ipergs).
A controvérsia reside no fato de que o homem só poderia dispor de 50% dos seus bens, já que deixou uma filha, considerada sua única e legítima herdeira diante do casamento sob o regime de separação total de bens. Conforme o artigo 1.846 do Código Civil, pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança.
O juiz Dalmir Fraklin de Oliveira Júnior, da 1ª Vara Cível da Comarca de Passo Fundo, no entanto, não viu erros na formatação do documento, que atende a redação do artigo 288 do Código Civil. O dispositivo diz que a cessão de crédito por instrumento particular é eficaz com relação a terceiros se estiver em conformidade com o parágrafo 1º do artigo 654 do mesmo Código. Além disso, no corpo do documento, consta que se trata de uma ‘‘doação remuneratória’’, o que também seria válido, na medida em que a doação admite instrumento particular, conforme o artigo 541.
Apesar de não observar a meação de 50%, o documento não foi declarado nulo. O julgador disse que poderia ser aproveitada a parte que garante o ‘‘máximo de realização da vontade do falecido’’, destinando 50% dos bens – como autoriza a lei – à viúva, para garantir-lhe segurança financeira. E a outra metade seria destinada à filha, que é herdeira legítima.
‘‘Dito isso, se torna desnecessária a análise da existência de patrimônio comum decorrente do regime de bens do casamento (separação obrigatória de bens, artigo 258, § único, II, CC/1916, vigente ao tempo da celebração do matrimônio) a ser objeto de meação, já que o valor é de direito da viúva pela cessão de crédito realizada’’, determinou no despacho.
A decisão não agradou à viúva, que interpôs recurso no TJ-RS. Ela alegou, entre outros argumentos, que os valores fixados em ‘‘doação remuneratória’’, para compensar os serviços prestados ao longo da vida do casal, não poderiam ser incorporados como ‘‘colação de bens’’ ao inventário.
Lado a lado
O relator no TJ-RS, desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, manteve o entendimento. Ele destacou que, independentemente de qual seja o regime de bens a vigorar no casamento, o artigo 1.566 do Código Civil estabelece deveres de ambos os cônjuges, entre os quais a mútua assistência e a consideração mútua.
Santos afirmou que a doação remuneratória visa a pagar algo que alguém prestou ao doador graciosamente, sem que houvesse regra legal impositiva. No entanto, cuidados eventualmente prestados ao cônjuge derivam do dever matrimonial. Daí, não se possível falar em remuneração ou mesmo indenização. ‘‘A circunstância de a agravante estar ao lado do marido, prestando-lhe amparo quando já debilitado, constitui dever inerente ao casamento’’, concluiu o relator.
‘‘Muito mais, ao que parece, pretendeu o falecido contemplar a agravante [viúva] com algum valor, porquanto o casamento se deu pelo regime da separação de bens. Há que se preservar os direitos da filha herdeira em 50% daqueles valores, que representam a totalidade do patrimônio deixado pelo de cujus’’, definiu o desembargador, em voto seguido por unanimidade.