(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Terceira parte)
 
702. Dentre outras, duas questões parecem mais atrair a atenção neste capítulo geral dos títulos inscritíveis.
 
Uma, a da relação entre o título formal (dictum) e o título material (actum), relacionamento este que importa muito salientar –embora à primeira vista seu exame pareça de todo trivial–, porque o assunto põe à mostra a circunstância de que as dicta –mormente documenta scripta– correspondem a uma realidade antropológica, tanto recolhida na esfera humana interna (a dos apetites intelectivo e sensitivo), quanto no da convivência política: a clássica afirmação aristotélica de que o homem é naturalmente social pode especializar-se, numa perspectiva singular, em que seja o homem naturalmente documentante.
 
Vem prontamente à lembrança, a propósito, a célebre passagem com que Rafael Núñez Lagos rematou o primeiro parágrafo de seu valioso Hechos y derechos en el documento público:
 
“En el principio fué el documento. No hay que olvidarlo. El documento creó al Notario, aunque hoy el Notario haga el documento.”
 
A outra questão a considerar (e que se apreciará lá adiante nesta nossa série) é a da adequada compreensão do que propriamente se inscreve no registro imobiliário, ou seja, tomando por exemplo o caso brasileiro, se se pode falar sempre ou alguma vez em registro de direitos?
 
703. Tratemos do primeiro tema.
 
Poderia objetar-se, à partida, que os povos pré-alfabeto não produziram documentos (nota bene:  não se está cogitando de povos analfabetos, mas sim de gente que teve por traço cultural a falta da linguagem escrita, e que, pois, não praticou a arte da textualização exatamente pela carência de alfabeto e não por privação de conhecimento de alfabeto existente).
 
É preciso considerar, no entanto, que a continuidade cultural, nesses povos pré-alfabeto, exigiu alguma sorte de conservação, e por mais se deva reconhecer que o isolamento vicinal dessa gente mitigou a necessidade da memória da cultura transmissível, cabe admitir, por todos com as lições de Harry Barnes e Howard Becker (cf. Social Thought From Lore to Science), que, nesses povos, a inércia cultural e a correspondente imobilidade intelectiva de seus integrantes não foram fatores próprios da natureza humana, mas um simples efeito per accidens do isolamento circunstancial dessas coletividades humanas: assim, o caráter estacionário de sua cultura e a imobilidade mental dos povos pré-alfabeto não significam que eles tenham sido por natureza povos retrógrados, senão que “[seu] largo isolamento permitiu o desenvolvimento de hábitos fixos que provocam uma grande resistência à mudança” (Barnes e Becker; a ênfase não é do original).
 
Ora, tendo em linha de conta que, nesses povos, o isolamento vicinal acarretou uma frequente sua organização com base no parentesco, o fato é que a tradição –é dizer, a transmissão– do patrimônio cultural dessa gente se fez mediante a memória dos anciãos, que, de não haver escrita, eram os portadores da lembrança experiencial (ou seja, a experinciada pessoalmente) e dócil (a ensinada pelos seus maiores e deles aprendida) quanto às proibições, as religiões, os cultos, os ritos, os tabus, os métodos de labor, cēt.:
 
“Um homem que passou pelas diversas crises da vida; que foi solteiro, casado, pai e sogro; que tomou parte –com a qualidade de ancião– em deliberações que decidiram o destino do grupo; que sofreu as experiências trágicas da derrota e da fuga; e, sobretudo, que teve possibilidade e tempo de falar com seus maiores e absorver toda espécie de conhecimento por eles possuído–, esse homem vem a ser uma personificação da cultura anterior ao alfabeto” (Barnes e Becker; o itálico não é do original).
 
Pode mesmo dizer-se que esse homem ancião é, ainda que usemos o vocábulo de maneira bastante lata, o documentum do povo pré-alfabeto: esse homem, assim o concluem Barnes e Becker,  “é um dicionário, um almanaque, uma história, um artesão que conhece todos os ofícios, um general, um estadista e um presbítero…”. A bem dizer, o conceito contemporâneo de “documento” é que repugna a não corporeidade na documentação (em sentido próprio), mas, na verdade, se a nota de permanência cultural emergiu, como de fato ocorreu, no quadro dos povos pré-alfabeto –com sua reconhecida fixidez de cultura–, isto foi resultante de uma transmissão oral apta à função paideica das gerações sucessivas –função do docet–, e parece que se incorreria no vício do anacronismo se se admitisse o retrocesso semântico com o uso restritivo do sentido atual da palavra “documento”.
 
Não nos deve surpreender essa precedência dos documenta orais: embora a palavra latina titulus, i, possua várias acepções −muito possivelmente analógicas, com sua clave no conceito de “escrito” (vidē, p.ex., Ernout-Meillet e Torrinha), e entre elas a de signo ou sinal (signum, signi), acepção a que se junta sucessivamente o sentido de significatio, calha ainda uma vez estarmos à frente da sábia realista lição de Aristóteles, no Perihermeneias −e convém aqui novamente repeti-la, quia iteratio mater studiorum est−, de que as palavras escritas são signos das orais, que, por sua vez, são signos dos conceitos, os quais representam as coisas; assim, tem-se esta sequência na ordem que vai da expressão à captação e percepção: palavras escritas → palavras orais → conceitos (paixões da alma) → coisas (ou seja, com a linguagem da lógica tradicional: termos, proposições ou argumentações literais → termos, proposições ou argumentações orais → ideias, juízos ou raciocínios → coisas), e tem-se, inversamente, na ordem que vai do conhecimento sensível até a expressão externa, a sequência coisas → conceitos (paixões da alma) → palavras orais → palavras escritas.
 
704.  Antes de prosseguir a trajetória deste capítulo, convém um breve excursus, para extrair de nossa afirmação acerca da natureza documentante dos homens –“o homem é naturalmente documentante”– o consequente de que, quodammodo, as instituições políticas que textualizam, conservam e publicam os acontecimentos vitais na convivência dos homens são elas próprias, sem embargo de suas manifestações acidentalmente variadas, instituições também humanamente naturais, isto é, instituições –corpos intermédios, grupos sociais menores– que, por natureza, devem existir na comunidade humana.
 
Vale dizer que, postas estas instituições documentantes (conservadoras e publicitárias) em situação de déficit extremo, reclama a convivência humana práticas substituintes: p.ex., por todos, a maneira como se tratou de publicar a aquisição da cova de Macpela por Abraão; ou o rito barbárico de alapa.
 
705. Continuando o tema do capítulo: o vocábulo titulus, na acepção que ora consideramos, é, assim, primeira e propriamente, uma referência a um signo, a um documento, e só de modo figurado estende-se ao conceito e às coisas de que o documento é sinal, conceito e coisas que o título (em sentido próprio) representa, ensina, docet, documenta.
 
Assim é que o titulus formalis –que detém, pois, uma primazia relativa de significação diante do titulus materialis– está para este último do mesmo modo como a linguagem está para as ideias (os juízos e os raciocínios): dictum/actum = linguagem/ideias etc. (ou ainda, assim como o ato está para a potência). Por isto, não está de todo mal – ainda que não seja uma enunciação rigorosa– o usus loquendi de que, no registro de imóvel, inscreva-se o titulus formalis, porque não seria possível a inscrição do título em sentido material sem que, de algum modo, ele se ensinasse (docet) por meio de um dictum ou titulus formalis.
 
O direito registral brasileiro posto, em nossos dias (Lei n. 6.015/1973, art. 167), é um exemplo do trânsito de um sentido a outro, porque ora a lei prevê o registro de tituli materiales (hipotecas legais, judiciais e convencionais; penhor de máquinas; penhoras; arrestos; sequestros; servidões), ora prescreve o registro de tituli formales (cédulas de crédito, contratos de penhor rural, contratos de promessa de venda, sentenças declaratórias de usucapião).
 
Nossa atenção agora deve dirigir-se à identificação do actum dentro do dictum, ou seja, do titulus materialis (é dizer: factum, actum, negotium) na estrutura do titulus formalis, integrada por elementos de ordem pessoal, real, formal e adjetiva, como trataremos de ver.