(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Quinta parte)
 
709. A segunda parte da estruturação formal da escritura pública diz respeito ao comparecimento ou comparência dos clientes (também ditos sujeitos ou partes) perante o notário.
 
Sem embargo de aqui tratar-se, ainda, da esfera dos títulos em sentido formal, seus requisitos ostentam um status de condição sine qua para a vitalidade dos títulos em acepção material, e a qualificação desses requisitos não se exaure com o término da atividade notarial correspondente, senão que sobrevive –ainda que não inteiramente (pois deve pôr-se a salvo o campo de incidência da fé pública do notário)– na tarefa de sobrequalificação registrária do título notarial, suposta, à evidência, a solicitação de seu registro.
 
710. O vocábulo “cliente” é mais apropriado à atividade notarial do que a palavra “parte”.
 
Já por um primeiro aspecto, a ideia de “parte” mais se molda à de litígio, de conflito, de lide, do que à de concórdia. Embora não seja, de início, estranha ao notário –notário que possui, pela natureza mesma de suas funções, o atributo de ser mediador e conciliador– alguma sorte de atuação em âmbito conflitivo, certo é que sua função tipológica é a própria de um magistrado da paz jurídica. Com efeito, diversamente do que ocorre com um advogado –que há de ser parcial, pela natureza de suas atividades– e também diferentemente do que acontece com o juiz, que atua com uma imparcialidade supra partes, o notário é um profissional do direito dotado de imparcialidade extra partes –menos impropriamente, cum partibus; ou, aqui sim exatamente, cum clientibus: o juiz substitui as partes, determina o direito, com potestade, sobre elas; já o notário, que não detém essa mesma potestade (de caráter jurisdicional), determina o direito non supra, sed cum partibus –rectius: cum clientibus, porque não impõe o notário sobre partes submetidas, senão que trata com sujeitos de uma codeterminação consensual do direito; o notário está com os clientes, com sua vontade, não sobre ela –cum voluntate clientium, non supra eam.
 
Neste sentido, é interessante considerar o valor dos pactos e da paz à raiz do Notariado latino, em cujos tempos formativos forte consciência havia de que as discórdias ou bem se resolviam pelo direito e o julgamento, ou pelo acordo e o amor, isto é, em palavras do historiador britânico Michael Clanchy, por “um compromisso de amizade, estabelecido por negociações públicas”, tal que “os homens sensatos” sabiam evitar “a sorte extremamente incerta da alegação judicial”. Um acordo extra curiam (ou seja, fora da corte) era, pois, o resultado que beneficiava essa amizade; lia-se, a propósito, nas Leges Henrici Primi (documento do séx. XII): “O acordo (pactum) ou a paz (pax) são bons, mas ainda melhor é proceder por amor (per amorem), se os litigantes desejam ter perfeita liberdade de movimento, como entre amigos” (apud Clanchy). Daí a expressão de que o acordo vence a lei, e o amor, o julgamento (na corte): pactum legem vincit, et amor, iudicium.
 
Ora, o cliens –em vernáculo, cliente– é o que tem um patrono, um patrono a que se liga por um vínculo fiduciário, por algo que é, quodammodo, uma amizade, a fidúcia no amigo, este alguém a quem se pode escolher (o patronus há de ser sempre um protetor do cliens). Não é sem motivo que a expressão “fazer amor”, em meados do século XIII, pôde significar fazerem os servos uma parte de trabalho extra para seus patronos, como sinal de amizade. E, de fato, a relação de clientela supõe um trato amical que não existe na relatio iudicis cum partibus (relacionamento do juiz com as partes).
 
O cliente notarial é, pois, o sujeito da escritura pública, vale dizer, alguém que dela participa com o estabelecimento, modificação ou extinção de relações jurídicas que o afetam (cf. Fernández Casado). O uso da palavra “cliente notarial” parece preferir à de “sujeito”, exatamente porque aquela, “cliente”, inclui, por si só, as ideias de fidúcia e codeterminação negocial, o que não se avista com o termo “sujeito”.
 
711. O comparecimento de que ora se trata é um fato notarial e é uma parte da escritura documentada pelo notário, na qual se indicam não apenas as pessoas que intervêm no ato (as que comparecem perante o notário), mas alguns outros elementos nos quais se firmam ou dos quais se extraem consequentes de direito. Assim, a comparência notarial é (i) um fato, (ii) uma parte formal da escritura pública (narrativa de uma compresença em ato) e (iii) um juízo de qualificação jurídica (vidē Gomá Salcedo).
 
Embora seja mais comum dizer que os comparecentes sejam apenas os sujeitos codeterminantes do negócio (ou seja, os clientes), deve contar-se entre aqueles o notário ou um seu substituinte –sujeitos autorizantes (na dicção de Emérito González), e podem ainda contar-se os que sejam de presença eventual, chamados de concorrentes ou, com um tanto de impropriedade, intervenientes –testemunhas e outorgantes que não sejam sujeitos (p.ex., mandatários)–, impropriedade de expressão que se verifica da circunstância de que os demais comparecentes não deixam de ser, à letra, intervenientes.
 
“La comparecencia –consta de célebre passagem de Rafael Núñez Lagos– es la veste de compareciente”, e mediante ela, “el sujeto de derecho, desde fuera, desde el exterior, atraviesa la frontera e ingresa en el territorio del instrumento público”. É dizer que, acedendo os clientes à audiência ou audição notarial, uma tratativa privada se vai efetivamente gestando de modo público. Neste primeiro aspecto, pois, a comparência é um fato, um fato material, que exige a presença simultânea do notário e dos clientes (Enrique Gimenez Arnau), um fato “in rerum natura, percibido de visu por el notario” (Núñez Lagos), concomitância de presença física, presença real (e não meramente virtual!) dos clientes e do notário, como expressão maior que é do princípio da imediatidade notarial, “por el que las personas que en cualquier concepto participan en el otorgamiento de una escritura pública tienen que estar en presencia del notario que la autoriza” (Antonio Rodríguez Adrados). Esta audiência já era doutrina notarial certa entre os glosadores: “En la confección del documento, el notario debe actuar prudentemente, con personal audiencia de los contratantes…” (José Bono; lê-se no original “doc.” que acima se escreveu extensamente “documento”).
 
Por esta primeira perspectiva, a imediação clientes-notário significa não só “simultaneidad de presencia” (Núñez Lagos), mas uma compresença real, imediata, é dizer: um fato captado sem médio pelo notário. E isto porque a imediatidade é um instrumento do princípio da veracidade (Rodríguez Adrados) e inclui a fé público-notarial de conhecimento. Daí que não se admita a extensão da compresença clientes-notário a audiências cum mediis –em que o notário não capta direta e sensivelmente o fato (equivale a dizer, não o capta directe por meio de seus sentidos externos de visão e audição), senão que capta a só transmissão do fato por um meio (medium; p.ex., transmissões de imagens captadas por vídeos).
 
A fé notarial exige a captação em ato das formas dos entes sensíveis por meio da visão e, quando o caso, da audição (de visu et de auditione suis sensibus). Está dito na De anima, de Aristóteles, que o sensível em ato é o próprio sentido em ato, da mesma sorte que o inteligível em ato é a inteligência em ato. A intermediação do fato sensível destrói sua captação em ato; o mais que se pode é afirmar que se capta uma tela em que há uma dada imagem, não aí que se capta o próprio fato mediatizado.
 
Diz-se direta a captação de fatos por meio pessoal, sem médio entre o notário e o fato captado por seus sentidos externos e percebido pelos sentidos internos. Mediatizada, diversamente, é a captação que se dá quando o fato se veicula por um meio que o faz chegar ao conhecimento do notário. Assim, a captação mediata ou indireta de um fato −por meio de fotografias, filmes ou transmissões “ao vivo” de imagens− não equivale, portanto, à captação direta desse fato pela videntia do notário. A relevância de resguardo dos atributos essenciais da formação da fides publica notarii −que é uma delegação de potestade política– não pode esquivar-se do status de sua concessão: do fato sensível (i.e., o captável pelos órgãos dos sentidos externos) tem-se uma imagem natural (uma imagem que participa da realidade das coisas −é fato partícipe da natura rerum), ao passo em que se diz imagem preparada (na expressão de Maria Esther Perea de Martinez) a que se obtém mediante um instrumento ou ferramenta (desenhos, fotos, pinturas, imagens cinéticas ou eletrônicas, etc.). Ora bem, não é nada incomum que as imagens preparadas sejam também imagens manipuladas, de maneira que, ao contorno das limitações próprias do estatuto da fé pública dos notários, a captação notarial mediata de um fato acrescenta ainda o grave risco de um conhecimento distorcido da realidade das coisas. Certamente isto nada tem a ver com o uso subsidiário de meios que beneficiem o conhecimento sensório do notário sobre fatos, pessoal e imediatamente captados por seus sentidos externos (de visão e audição) e percepcionados, na sequência, por seus sentidos internos (memória, fantasia, senso comum e cogitativa) –pense-se, p.ex., no uso de óculos; mas tem a ver, certamente, v.g., com o abuso de atestações só supostamente exaradas cum fide publica relativas a fatos conhecidos a partir de suas imagens transmitidas por meios eletrônicos.
 
711. Embora o comparecimento notarial seja um fato e uma parte da escritura, calha que na comparência, entretanto, deve consignar-se uma série de indicativos nos quais se solidam e dos quais emanam consequentes jurídicos, como o sejam lugar e data do ato, nomes dos comparecentes, suas idades, estados civis, domicílios, se comparecem na condição de sujeitos (comparência em nome próprio) ou concorrentes (p.ex., comparecimento em nome e interesse alheio –representantes legais ou voluntários), a expressão do juízo de conhecimento, qualificação, etc. Tem-se na doutrina de Fernández Casado: “La comparecencia abarca siete extremos: la fecha, la designación del Notario, la de los otorgantes, el modo de expresar el conocimiento de éstos, el de expresar su capacidad, el de justificar la representación y la calificación del acto”. Ou na lição de José Enrique Gomá Salcedo: “…en la comparecencia distinguimos tres partes: reseña de los comparecientes y de sus circunstancias personales; intervención (determinación de las partes y de su relación con los comparecientes); y, en tercer lugar, fe de conocimiento, juicio de capacidad y calificación del acto o contrato”.
 
Tenha-se em consideração, pois, que esses indicativos, nada obstante serem, secundum quid, requisitos formais para o processo da escritura pública (a comparência como fato in rerum natura) e, a final, para sua expressão (a comparência como parte narrativa do documento), são também pilares de sua validade jurídica, elementos submetidos ao princípio da legalidade (Rodríguez Adrados), e que, por isso mesmo, são condições necessárias à vitalidade jurídica do ato ou negócio que se instrumentam pela escritura. Desta maneira, o título material está na dependência de superação de eventuais obstáculos de forma (os que haja no título em acepção formal), dependência que se preserva até no âmbito de eventualmente qualificação posterior no registro de imóveis.
 
Com efeito, as indicações da comparência não são, ao menos em todo seu espectro, isentas de sobrequalificação registral. O registrador, p.ex., extrairá das referências de lugar e data de uma escritura dados necessários ao controle da competência notarial (estava já ou ainda nas funções o notário que autorizou dada escritura?; tinha competência ratione loci para vistoriar dado imóvel?; os sujeitos eram maiores ou, diversamente, estavam representados?); apreciará, quanto à identidade dos sujeitos e sua especialidade subjetiva, a congruência ou correlação fiel entre o registro vigente e o documento notarial; examinará se houve expressa asserção do juízo de conhecimento, cēt.).