(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: o bem de família – parte 4)
 
Des. Ricardo Dip
 
No tocante com a solvência de seu instituidor ao tempo da constituição do bem de família, disse Carvalho Santos, à época ainda do Código civil brasileiro de 1916, que essa solvência era um requisito essencial para o exercício do direito de instituir a imunidade executória.
                    
Mas uma coisa é exigir esse suposto, outra, reclamar-lhe a prova: não há, na atual normativa de regência, preceito que imponha o controle registral dessa solvência do instituidor, e observa Ademar Fioranelli que basta a mostrar a desnecessidade desta aferição positiva a circunstância de a impenhorabilidade correspondente não incidir quanto a dívidas prévias à constituição. O bem de família é só relativamente impenhorável, porque pode constranger-se em execução de créditos anteriores à sua instituição.
 
Vai um tanto além Carvalho Santos, porquanto, admitindo que o bem de família possa penhorar-se em via executória relativa a dívidas precedentes à sua constituição, acrescenta: “se não houver outros bens sobre os quais recaia a penhora, com proveito, para tanto sendo necessário provar que a instituição tornou o devedor insolvente”.
 
Assim, para Carvalho Santos, não é só que “o Código Civil não exige em absoluto que o instituidor faça prova preliminar do seu estado de solvência, para conseguir instituir o bem de família”, mas também que cabe ao credor, provar que a instituição do bem de família se fez em prejuízo de seu crédito. Não parece, todavia, que se imponha essa confirmação aos credores de dívida anterior: o fato mesmo de o crédito ser antecedente à instituição do bem de família já os isenta da eficácia da correspondente impenhorabilidade. Caberá, ao revés, isto sim, que o instituidor ou os terceiros beneficiários provem a existência de bens suficientes para a satisfação das dívidas anteriores à instituição, para manter a imunidade executória do bem familiar.
 
Lê-se, com efeito, no caput do art. 1.715 do vigente Código civil nacional que “o bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio ou de despesas de condomínio”. E já no Código civil de Beviláqua se previam duas hipóteses exceptivas da regra de isenção da penhora incidente sobre bem de família: uma, em favor dos impostos relativos ao prédio (art. 70; note-se que a norma atual fala mais amplamente em tributos), e outra, a que diz respeito às dívidas anteriores à instituição (par.ún. do art. 71: “A isenção se refere a dívidas posteriores ao ato, e não às anteriores, se se verificar que a solução destas se tornou inexequível, em virtude do ato da instituição”). Assinale-se que havia, no Código de 1916, preceito no sentido de ser necessário que os instituidores, no ato de instituição, não terem dívidas, cujo pagamento possa por prejudicar-se pela constituição do bem de família (caput do art. 71).
 
Disse Clovis Beviláqua, comentando esse artigo do Código, que seus dispositivos (os do caput e do par.ún.) estavam a exigir “desenvolvimentos regulamentares” para estabelecer “o modo de tornar clara a situação do instituidor e ressalvar o direito dos credores”. Acenando ao direito comparado (pontualmente, ao direito civil da Suíça e da França), Beviláqua referiu-lhes, de maneira respectiva, prescrições de intimação dos credores para eventual oposição e “um processo para apurar se o prédio se acha em condições de ser declarado bem de família”. Apontou o autor, em seguida, haver então entre nós, com o Código de processo civil de 1939, as regras propícias à regulamentação reclamada, tanto se lia em seus arts. 649 a 651 (no mesmo sentido, Pontes de Miranda observou, à altura, que, para instituir o bem de família, não bastava a escritura, senão que se exigiam, além dela, um procedimento publicitário, a transcrição e, eventualmente, a cognição judicial prevista no art. 651):
 
“Art. 649. Da publicação, feita em forma de edital, constarão:
 
I – o resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e característicos do prédio;
 
II – o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta (30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito e perante o oficial.
 
Art. 650. Findo o prazo do artigo anterior, sem que tenha havido reclamação, o oficial transcreverá a escritura, verbo ad verbum, em livro próprio, lançará as respectivas indicações nos indicadores real e pessoal, e arquivará um exemplar do jornal em que a publicação houver sido feita, restituindo o instrumento à parte, com a nota da transcrição.
 
Art. 651. Da reclamação, que será arquivada, o oficial fornecerá ao instituidor cópia autêntica, devolvendo-lhe a escritura, com a declaração escrita de ter sido suspenso o registro.
 
§ 1º O instituidor poderá requerer ao juiz de direito da comarca que ordene o registro sem embargo da reclamação.
 
§ 2º Se o juiz determinar que se proceda ao registro, ressalvará ao reclamante o direito de recorrer à ação competente para anular a instituição, ou de fazer execução sobre o prédio instituído, na hipótese de tratar-se de dívida anterior e cuja solução se tornou inexequível em virtude do ato da instituição.
 
§ 3º A transcrição compreenderá também o despacho do juiz” (os itálicos não são do original).
 
Carvalho Santos, ao comentar a regra do inciso II do art. 649 do Código processual civil de 1939, advertiu que o fato de um prejudicado com a instituição do bem de família não apresentar sua reclamação no trintídio previsto em lei não acarretava a perda do “direito de fazer penhorar o bem de família, se a sua dívida era anterior à instituição”, não só porque, exatamente, a solvência do instituidor era (e ainda o é) um suposto da constituição do bem de família, mas também porque a instituição não repercutiria (nem agora reflete) sobre dívidas antecedentes: “é lícito ao credor de dívidas anteriores (prossegue Carvalho Santos) penhorar o bem de família independentemente de qualquer ação de anulação da instituição (…), por isso que a isenção só se refere a dívidas posteriores ao ato”.
 
A Lei brasileira n. 6.015/1973, na linha das regras estabelecidas com o Código processual de 1939 (regras que se mantiveram em vigor com o Código de processo civil de 1973: vidē o inc. VI do art. 1.218 do Cód.pr.civ. de 73), preservou o processo de instituição do bem de família, propiciando a oportunidade de reclamação de eventuais credores (arts. 262 et sqq. da Lei n. 6.015), com que se deve, ainda agora, entender-se satisfeito o reclamo de Clóvis Beviláqua, no sentido de que se impusessem “desenvolvimentos regulamentares” acerca da matéria.
 
Desta maneira, ao registrador não incumbe exigir a avistavelmente dispendiosa prova do status de solvência (com a apresentação de certidões civis, incluindo trabalhistas, e penais, das Justiças estadual, ou distrital, e federal, além de certidões relativas a protestos); repete-se: não cabe ao registrador exigir a confirmação do estado de solvência do instituidor do bem de família, até porque fortuitos credores por dívidas precedentes a sua constituição não se molestam pela inscrição correspondente e sequer necessitam de uma demanda pauliana para propiciar a penhora do imóvel objeto, pois é cediço que “a instituição não produzirá efeito com relação aos credores anteriores” (Carvalho Santos).
 
No mesmo sentido, Pontes de Miranda, aludindo embora ao cabimento de uma ação direta de nulidade do registro do bem de família, admite ainda a trilha de demandas executivas ou de execução de sentença, de sorte que os credores tenham à disposição “as vias ordinárias para as suas pretensões contra a instituição, direta ou indiretamente” (indiretamente, vale dizer: procedendo-se de logo à penhora, com reflexo na instituição; neste quadro, dar-se-á ensejo à defesa do instituidor ou acaso de terceiros beneficiários, por meio de embargos, fazendo-se, então, prova da suficiência de outros bens para responder à dívida cobrada).
 
Já ficou sobredito que não compete ao registrador verificar se o bem afetado pela pretendida instituição do bem de família corresponde ao máximo de um terço do patrimônio líquido ao tempo da constituição (art. 1.711 do Cód.civ.bras.).
 
Se bem isto não seja tampouco da competência do notário até porque o kairós desta proporção do bem de família no conjunto patrimonial é o do registro constitutivo, não o da elaboração do título, a declaração do limite proporcional pelo instituidor deve constar da escritura tabelioa, de par com a declaração de destinar-se o imóvel à moradia ou sustento familiar, imunizando-se de execução por dívidas, salvo as já existentes.
 
Pode, entretanto, dar-se o caso de que essa declaração não conste do título notarial. E até mesmo de que se trate de omissão propositada: p.ex., pensemos na hipótese de que, à altura da elaboração da escritura, pendam de aquisição outros imóveis com os quais o instituidor observará (e só então) a aqui versada exigência do art. 1.711 do Código civil; por um dever de veracidade não é possível constar da escritura, antecipadamente, a observância da proporção do terço patrimonial.
 
A questão que se põe aqui em exame é a da forma da complementação do título notarial. Pergunta-se: seria de exigir que o complemento fosse ele também de origem notarial? Uma escritura complementar? Ou bastaria uma declaração, ao molde de título acessório de caráter particular?
 
São muitos os títulos acessórios que se exigem ou podem exigir-se para a inscrição do título relativo ao bem de família: a Registradora Isabel Sangalli alistou, a propósito e exaustivamente, uma série de documentos acessórios que vão desde certidões até declarações, p.ex., a relativa a débitos condominiais, a de aceitação por terceiros beneficiários, a de ciência de débitos trabalhistas, e um requerimento relativo a eventuais averbações. Parte desses títulos é de natureza particular. Desta maneira, a escritura notarial, embora seja a forma de titulação imposta em lei para o bem de família (art. 1.711 do Cód.civ.bras.), não inibe, em princípio, o concurso de complementação por títulos acessórios não notariais (públicos e privados). Não parece, pois, deva exigir-se nova escritura tabelioa apenas para o fim de colmatar uma lacuna relativa à indicação de o imóvel objeto do bem de família não ultrapassar a terça parte do patrimônio coevo do instituidor; diversamente, aparenta atender à economicidade, sem quebra da segurança jurídica e da prescrição legal (pois o título principal é ainda uma escritura pública), permitir que, de maneira acessória, um título de caráter particular possa socorrer o instrumento notarial, tanto mais que não se ensejará o controle registrário da declaração complementar.