(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca -parte 23)
 
819. Vamos agora considerar brevemente uma curiosa dissociação entre termos verbais e realidade das coisas. A hipoteca ordinária que é tida por ser o modo comum ou corriqueiro das hipotecas convencionais aparenta, no mundo contemporâneo, por força do fenômeno da desvalorização frequente das moedas, um divórcio com seu conceito tradicional, tendendo a, em muitos aspectos, incursionar no terreno vizinho da noção de hipoteca de segurança ou hipoteca de seguridade.
 
Com efeito, diz-se hipoteca ordinária (ou de tráfico, de tráfego) a destinada à garantia de um crédito existente e líquido, vale por afirmar: a garantia referente a obrigações plenamente constituídas “y perfectamente determinadas en todos sus extremos, de manera que quedan también perfectamente determinadas en la inscripción registral” (Contreras, Aguirre Aldaz e Pérez Álvarez).
 
Pareceria que este conceito pudesse abrigar-se à letra no que dispõe o art. 1.419 do Código civil brasileiro vigente: ”Nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação”. Trata-se aí, expressamente, de dívidas garantidas, o que, portanto, induziria à ideia de dívidas perfeitamente constituídas.
 
Já de há muito, entretanto, ainda na legislação brasileira anterior a nosso Código civil de 1916, isto quer na Lei n. 1.237/1864 (de 24-9), quer em seu regulamento –Decreto n. 3.453/1865 (de 26-4)–, previu-se, segundo o texto da primeira: “Quando o crédito for indeterminado, a inscrição só poderá ter lugar com o valor estimado que o credor e o devedor ajustarem expressamente” (§ 5º do art. 4º), e nos termos do regulamento (art. 119): “A hipoteca convencional é sempre especial sob pena de nulidade. Assim que, a quantia, que ela garante, deve ser determinada ou estimada” (os itálicos destas citações não estão no original).
 
Daí que não se possa recusar, simpliciter, que aquilo a que chamamos, entre nós, habitualmente, de hipoteca ordinária sequer fosse, àquela altura do século XIX no Brasil, exatamente o mesmo que a hipoteca de tráfego, porque desta não se exigia necessariamente que a dívida estivesse nascida com determinação de todos os seus elementos, vale dizer: com seu valor especializado inclusive.
 
820. Ao admitir a hipoteca de uma obrigação parcialmente ilíquida –porque, embora certa quanto à existência, fosse indeterminada quanto ao objeto, objeto que, neste passo, deve entender-se, aqui com propositado simplismo, o referente apenas ao valor da dívida–, a normativa decimonônica brasileira albergava já um modo de hipoteca distinto da hipoteca de tráfego, acercando-se da nota de alguma incerteza própria da sobredita hipoteca de segurança ou de seguridade.
 
A simplificação, neste capítulo, parece justificar-se por interesse da brevidade, mas o vário das obrigações leva a que a noção de seu objeto seja análoga, refletindo no campo de sua correspondente individualização: p.ex., pode haver contratos não só de dar uma coisa a outrem, mas também de fazer, e ainda ajustes que, embora compreendam obrigações de dare, digam respeito a adimplementos com coisas incertas ou de quantidade variáveis que só possam ou queiram conhecer-se em dado tempo futuro (cf., a propósito, brevitatis causa, o Tratado de Hector Lafaille, muito nutrido, nesta questão, pelas doutrinas francesa e italiana).
 
Ainda que, em nossa advertidamente estreita consideração, seja somente o valor monetário do débito (valor quantitatis), e este quantum não necessite exprimir-se ao tempo da formação do ajuste, podendo, pois, a hipoteca garantir uma dívida parcialmente ilíquida, a exigência de publicidade impõe-lhe o registro, e a exigência do registro, a individualização faltante. Desta maneira, a despeito de a indeterminação do valor do crédito não interditar a formação do título da hipoteca, não será admissível o registro da garantia contratada –e, pois, sua constituição como relação jurídico-real– sem que se determine, quer por meio de um acordo superveniente dos contratantes, quer mediante um procedimento liquidatório, a individualização do valor monetário deficiente na origem.
 
821. Acrescente-se que não se pode, além disto, ignorar algumas situações peculiares, quando as normativas de regência, v.g., permitam ajuste cujo montante se expresse em moeda estrangeira (obrigação valutária), preceituando-se a conversão desse valor para a pecúnia local antes da inscrição da hipoteca.
 
822. De grande, mais que isto, hoje, possivelmente, em virtude da contemporânea rotina de volatilidade do valor das moedas, matéria de supremo interesse, neste ponto, é a de aferir se as inesões indexatórias devem considerar-se na individualização exigível pelo registro da hipoteca e, pois, na limitação do valor da dívida.
 
De rigorosamente assim o exigir a realidade da indexação pecuniária, tem-se de concluir que a ideia de débito plenamente determinado já praticamente nunca poderia corresponder em nossos dias ao figurino estrito da hipoteca de tráfego, rematando-se numa disjuntiva que tenderia a destruir a importância prática da garantia hipotecária: porque ou se nega a asseguração da dívida que deveria ser justamente exigível, uma vez que o valor facial não equivaleria ao débito real, ou se estorvaria, em contrário, o registro da hipoteca, por falta do valor realista da dívida. Pense-se nisto: registra-se, hoje, uma hipoteca que garanta uma dívida de um milhão de reais; daqui a dez anos, este valor nominal da dívida não corresponderá muito provavelmente a seu valor de troca ou valor aquisitivo. Não se quer aqui ladear que o valor monetário nominal seja um valor impositus, um valor legal, mas a variação valorativa da moeda –ou seja, a da potência para adquirir, o que é seu valor de troca, seu valor aquisitivo– não pode desconhecer-se, sob pena de violar-se a equidade, a justiça em concreto. Por isto, entende-se rotineiramente que os débitos garantidos pela hipoteca, estando sujeitos à correção monetária, possam este acréscimo (ou, quando o caso, muitíssimo raro, decréscimo) para o equivalente âmbito da dívida garantida.
 
Nada obstante, pergunta-se, então: deve necessariamente prever-se no ajuste obrigacional garantido a inerência da correção (indexatória ou desindexatória) no valor objeto? Mais ainda: deve isto inscrever-se para opor-se a terceiros?
 
Ademar Fioranelli, depois de referir o argumento de que o Código civil brasileiro de 1916 não previra a correção pecuniária (vidē arts. 761, 846 e 848), aduziu um contraponto correspondente, rememorando que, em 1916, não se teve em consideração a ideia do instrumento de emenda da valoração ou desvaloração monetária –porque não parecia haver necessidade de um meio corretivo do fenômeno da oscilação dinerária. E o autor apontou, na sequência, o entendimento que, diante de um novo quadro econômico, adotou-se pela jurisprudência administrativa paulista, no sentido de que, no registro de hipoteca, os oficiais fizessem “constar a incidência de correção monetária, quando houver” (Narciso Orlandi Neto). Concluiu Fioranelli: “…nada mais justo que os oficiais, ao lavrarem os registros das hipotecas, façam constar com clareza e precisão não só o valor da dívida, prazo etc., mas também, detalhadamente, a forma de pagamento, juros, multa, correção monetária, se existente (…)”. Ainda que não se fale deva prever-se a correção no contrato a que se reporte a hipoteca, é de entender que a indexação deva mencionar-se no título, sem que seja elemento criado ex nihilo pelo registrador.
 
823. Sem precedente explícito no Código de 1916, a hipoteca de segurança anuncia-se com o Código civil de 2002, no art. 1.487.
 
Desenha-se ela como um contraponto à ideia de “dívida garantida” –ou seja, de dívida perfeitamente definida, quando menos ao tempo da inscrição–, esta que, como retro já se apontou, é indicada no art. 1.419 do Código civil e é o nosso modelo que apresenta mais afinidade com uma estrita hipoteca de tráfego.
 
Lê-se no caput do referido art. 1.487 do Código: “A hipoteca pode ser constituída para garantia de dívida futura ou condicionada, desde que determinado o valor máximo do crédito a ser garantido.”
 
Assim, enquanto a hipoteca de tráfego (suposto seu modo ortodoxo) exige a determinação completa de seus sujeitos, imóvel e dívida certa (com existência e valor individualizado), já a hipoteca de segurança dispensa a existência coeva da dívida ou que se subponha ela a condição suspensiva.
 
Prosseguiremos neste assunto particular.