(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca -parte 25)
 
828. Tal já ficou dito, designa-se hipoteca de tráfico (ou hipoteca de tráfego) a hipoteca ordinária, vale dizer, a que garante obrigações existentes em ato e definidas em todos os seus elementos (posto a salvo o tema das variações monetárias).
 
A expressão hipoteca de tráfico justifica-se pelo discrimen com a hipoteca de segurança. Nussbaum observou que o termo hipoteca de seguridade não é “muito feliz”, porque todas as hipotecas visam a conferir alguma segurança, mas admitiu algum sentido na designação, porque a hipoteca de seguridade tem por fim exclusivo a garantia (ou segurança) dos direitos do credor, ou seja, não se destina à circulação, ao passo em que próprio da hipoteca de tráfico é lançar-se ao comércio.
 
Sem embargo de a hipoteca de seguridade, pois, não se destinar mais que à garantia do credor, ambas essas modalidades hipotecárias compartilham dos problemas da desvalorização monetária, motivo pelo qual se tem admitido uma relativa indeterminação valorativa também nas hipotecas de tráfico (tal já o tínhamos dito).
 
Hedemann, a propósito, referiu o fato de que, na Alemanha, de fins de 1923 até 1925, extinguiram-se três quartas partes das hipotecas existentes, em vista da intensidade da depreciação monetária, porque, “de mês em mês, de semana a semana, o Reichsmark (moeda então vigente) foi caindo velozmente até um valor zero”, levando a que os devedores tratassem de reembolsar os credores com marcos muito desvalorizados. Foi necessário que a lei cuidasse da revalorização legal das hipotecas. Também no Brasil repercutiu a intensíssima depreciação do Reichsmark: o Decreto brasileiro n. 21.316/1932 (de 25-4) proibiu “a abertura de contas correntes em moeda estrangeira, em bancos e casas bancárias estabelecidas no País” (art. 1º), impondo, em seu art. 2º, que “as contas dessa natureza existentes nos referidos estabelecimentos deverão ser liquidadas imediatamente pelo equivalente em moeda nacional, ao câmbio do dia da data da publicação deste decreto”, e, solidando neste dispositivo, o STF decidiu que a conversão dos depósitos feitos em marcos (Marks) deveria fazer-se, primeiro, para o Reichsmark, moeda vigente na Alemanha em abril de 1932, e, depois, no correspondente à moeda brasileira com observância do câmbio do dia da publicação do referido Decreto n. 21.316 –cf. RE 74.388, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro; RE 69.030, Rel. Min. Thompson Flores; RE 88.085 -Min. Cordeiro Guerra; RE 82.145 , Rel. Min. Moreira Alves.
 
Ainda que não houvesse lei previsora da influência da depreciação monetária (ou de seu fenômeno inverso), o influxo da variação nominal da moeda poderia enfrentar-se na via jurisdicional, no plexo do exercício da jurisdição determinativa (ou de equidade), seja, pois, por meio de um processo indexatório –na sequela de uma diminuição do valor monetário nominal–, seja mediante um processo desindexatório, correspondente a um quadro de valorização nominal da moeda (vidē, por todos, José Zafra Valverde, Sentencia constitutiva y sentencia dispositiva, e Jorge Walter Peyrano, El proceso desindexatorio).
 
[Deixemos apontada, de modo muitíssimo breve, a circunstância de que, em acepção mais própria, a inflação não se confunde com a alta dos preços dos bens e serviços, alta essa que é apenas um dos vários efeitos da inflação. Podendo admitir-se, embora, a metonímia – substituindo-se a causa pelo efeito–, não se perca, porém, de vista que a inflação não é, em rigor, o incremento de preços, mas “o aumento acidental da corrente de dinheiro em um ritmo mais rápido do que a corrente das coisas –bens e serviços de toda classe– em que se gasta essa corrente de dinheiro” (Graham Hutton, Inflation and society) ou, na expressão de Jörg Guido Hülsmann, “o aumento da quantidade nominal de um meio de troca acima da quantidade que teria sido produzida num mercado livre” (in L’éthique de la production de monnaie, trad. francesa), denominando-se “mercado livre”, segundo este autor, “a cooperação social condicionada pelo respeito aos direitos de propriedade privada”].
 
829. Há mais de uma acepção doutrinária para referir a hipoteca cedular (ou hipoteca de cédula).
 
Num primeiro modo, essa forma de hipoteca equivale à ordinária ou convencional; é a forma rotineira da hipoteca, em que a garantia se incorpora em um documento, que se designa cédula da hipoteca e distingue-se da hipoteca de registro, na qual última se exclui a emissão do documento para circulação. Os termos, equivalentes entre si, hipoteca de registro e hipoteca registral não significam que a hipoteca de cédula esteja imunizada de inscrever-se: uma e outra devem registrar-se. Quando se tem a prognose de que a hipoteca vá, de fato, ser objeto de transmissão, tem-se a preferência da hipoteca de cédula, ao passo em que, nas relações em círculos mais estreitos, entre pessoas que se conhecem mais –sobretudo as de mesma família–, prefere-se a menos custosa hipoteca de registro, exatamente porque não se prognostica a transmissão da garantia (cf. Nussbaum e Hedemann).
 
Num segundo modo, pode nomear-se hipoteca cedular o título simplificado –contrato hipotecário– que se expede, “mediante preenchimento de modelos previstos em lei especial, sem necessidade de escritura pública” (Francisco Loureiro).
 
Num terceiro modo, impróprio embora, é de algum uso a equivalência das expressões hipoteca cedular e cédula hipotecária, cédula esta cujo objetivo, entretanto, não é o de constituir hipotecas, mas o de reunir o capital necessário ao bom funcionamento das instituições responsáveis pelo tráfico das hipotecas:
 
“A todas estas empresas é comum um meio singular de procurar dinheiro. Todas elas devem emprestar dinheiro com a garantia da hipoteca a um grande número de proprietários, cuja cifra exata não se pode de antemão determinar. Compreende-se bem que não tenham este dinheiro em caixa, inicialmente. Devem buscá-lo no mercado financeiro, vale dizer, de capitalistas que estejam dispostos a dá-lo. Para consegui-lo, valem-se de um título próprio para o investimento, muito seguro e ao mesmo tempo com juros mão desprezáveis como contravalor do dinheiro que deles recebem. A este título chama-se cédula hipotecária” (Hedemann).
 
No Brasil, o Código civil de 2002 previu, em seu art. 1.486: “Podem o credor e o devedor, no ato constitutivo da hipoteca, autorizar a emissão da correspondente cédula hipotecária, na forma e para os fins previstos em lei especial”. O Código anterior, de 1916, não continha dispositivo símile.
 
A referência explícita do Código civil, no art. 1.486, à figura da lei especial inibe concluir que esse Código haja universalizado a possibilidade da expedição das cédulas por não importa quais emitentes. Devem estes indicar-se em lei especial. Assim, p.ex., prevê o Decreto-lei brasileiro n. 167/1967 (de 14-2) que, nas hipóteses de “financiamento rural concedido pelos órgãos integrantes do sistema nacional de crédito rural e pessoa física ou jurídica” (art. 1º), pode emitir-se cédula rural hipotecária, que o mesmo Decreto-lei designa hipoteca cedular (vidē arts. 23 e 24), garantia que, exigindo registro (art. 30), pode incidir sobre imóveis tanto rurais, quanto urbanos. (cf. ainda o Decreto-lei nacional n. 413, de 9-1-1969, que diz respeito à cédula de crédito industrial, suscetível também de garantir-se por hipoteca cedular –inc. III do art. 19–, cujo registro é necessário para valer contra terceiros, tal se prevê em seu art. 29).
 
Diversamente, o Decreto-lei brasileiro n. 70/1966 (de 21-11) –destacadamente vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação– não prevê a hipoteca cedular (stricto sensu), mas que se institua cédula hipotecária para hipotecas já constituídas, regularmente inscritas no registro de imóveis, “como instrumento hábil para a representação dos (…) créditos hipotecários” (art. 10).
 
Tal o sumariou Afrânio de Carvalho, aí há duas modalidades de cédulas hipotecárias, ambas suscetíveis de circulação, mas uma –a que se denomina, propriamente, hipoteca cedular– é originária; a outra, derivada. Bem por isto é que, hipotecas cedulares, as cédulas de crédito rural e industrial, nos termos da Lei brasileira n. 6.015/1973, registram-se (ns. 13 e 14 do inc. I do art. 167), ao passo em que as cédulas hipotecárias, averbam-se (n. 7 do inc. II do mesmo art. 167).