(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 30)
 
843. Assim o dispõe o caput do art. 1.497 do vigente Código civil brasileiro, “as hipotecas legais, de qualquer natureza, deverão ser registradas e especializadas”.
 
Serpa Lopes, tratando de acercar, quanto à hipoteca, as ideias de título, registro e especialização, disse que, sendo a inscrição, o sopro de vida, e o título inscritivo, a matéria, “a especialização é o elemento que dá a forma devida à hipoteca”.
 
Pode conceituar-se a especialização da hipoteca a determinação da quantidade de crédito objeto da garantia e dos imóveis por ela abarcados.
 
Previu-se essa especialização hipotecária, no Brasil, com a Lei n. 1.237/1864 (de 24-9), que, em seu art. 4º, referindo-se à proibição das hipotecas gerais e sobre bens futuros (§ 1º), desdobrou no caput e no § 2º o objeto da especialização. Naquele, no caput do art. 4º, prescrevendo que a hipoteca (por então mencionou apenas a convencional) “deve ser especial, com quantia determinada e sobre bens presentes”, e no § 2º, preceituando que “a hipoteca convencional deve indicar nomeadamente o imóvel ou imóveis nos quais ela consiste, assim com a sua situação e característicos”.
 
Este dispositivo acercava-se do que previa já o art. 2.129 do Código civil francês (artigo cujo texto se alterou em 1955) e do art. 178 da Lei hipotecária belga de 16 de dezembro de 1851. Tanto a lei da Bélgica, quanto o Código de Napoleão referiram, expressamente, a que os dados de especialização para a hipoteca convencional pudessem suprir-se fora e depois do título constitutivo; quer num, quer noutro, fala-se em que a especialização possa estar “soit dans le titre authentique constitutif de la créance, soit dans un acte authentique postérieur” –quer no título autêntico constitutivo do crédito, quer em ato autêntico posterior. No direito brasileiro, ausente menção legal explícita de possível supressão de lacuna do título institutivo, a doutrina não se inclinou a admitir que a deficiência pudesse superar-se com a só inscrição: assim, a especialização da hipoteca convencional “deve constar da escritura (…), sob pena de nulidade, e a sua falta não se reputa suprida pelas declarações feitas na inscrição da hipoteca” –isto o disse Dídimo da Veiga, para quem:
 
“A inscrição sendo o meio de publicidade da hipoteca para assegurar os efeitos da mesma quanto aos terceiros (…) não pode suprir qualquer omissão da escritura da qual a inscrição não é senão a reprodução concisa e analítica (…)”.
 
No mesmo sentido, Serpa Lopes sustentou que o processo de especialização se compõe de duas fases, uma, institutiva, que é a do título, outra, constitutiva, que é a fase da inscrição: “essa dupla especialização –diz ele– deve coexistir”, rematando: “A existência de uma não supre a da outra, de modo que a falta de qualquer delas acarreta a nulidade da hipoteca”.
 
No mesmo sentido, Carvalho Santos entendeu que, requisito essencial da hipoteca, a especialização “deve existir desde seu nascimento, ou ser feita em ato autêntico posterior” (p.ex., uma escritura de retificação), porque, disse ele, “a inscrição não é senão um ato que visa conservar um direito que existe legalmente, de tal sorte que, se a hipoteca é nula, não pode a inscrição conservá-la”.
 
O Decreto brasileiro n. 370/1890 (de 2-5), que versou a execução do Decreto n. 169-A (de 19-1-1890), previu (art. 196), com efeito, que as inscrições hipotecárias satisfizessem, entre outros, os seguintes requisitos: (i) nome, profissão e domicílio do credor; (ii) nome, profissão e domicílio do devedor; (iii) o título, sua data e o nome do tabelião que o fez; (iv) o valor do crédito, ou sua estimação ajustada pelas partes; (v) época do vencimento; (vi) juros estipulados; (vii) determinação do imóvel e suas características.
 
Semelhante necessidade de especialização prévia ao registro estende-se às hipotecas legais (em que se contam as judiciárias –cf. Lafayette), e Carvalho Santos observou que a estimativa do crédito por acordo entre as partes “só tem aplicação nos casos de hipoteca legal, ou quando as partes ajustaram, no contrato, um valor para a coisa hipotecada, de modo a servir de base à hasta pública, arrematações, adjudicações, etc.”.
 
Muito embora se ponham em relevo os requisitos de indicação do valor do crédito garantido e da determinação do imóvel objeto da hipoteca, a especialização compreende também uma determinação subjetiva, quer do credor, quer do devedor ou, mais exatamente, do dono do imóvel hipotecado (pois que nada impede terceiro garantir dívida de outrem, hipótese em que parece convir a referência ao nome do terceiro devedor, o que tanto pode constar do lançamento registral da hipoteca, quanto de uma averbação –averbação que sugere Carvalho Santos, com apoio na doutrina francesa).
 
844. Preceitua o § 1º do art. 1.497 do Código civil brasileiro de 2002 que “o registro e a especialização das hipotecas legais incumbem a quem está obrigado a prestar a garantia, mas os interessados podem promover a inscrição delas, ou solicitar ao Ministério Público que o faça”.
 
A assinação dessa incumbência não inibe que qualquer pessoa possa diligenciar a especialização e o registro das hipotecas legais (cf. art. 217 da Lei n. 6.015/1973: “O registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa, incumbindo-lhe as despesas respectivas”), mas tem importante reflexo no âmbito da responsabilidade por eventuais perdas e danos, assim previstos no § 2º do art. 1.497 do Código civil: “As pessoas, às quais incumbir o registro e a especialização das hipotecais legais [incumbir na forma do § 1 do mesmo art. 1.497], estão sujeitas a perdas e danos pela omissão”.
 
Essa norma, que já se previa no Código civil de 1916 (art. 845), é especialmente gravosa, porque, já o advertira assim Carvalho Santos (à luz do Código Beviláqua), compreende todas as pessoas indicadas no § 1º do art. 1.497, “sem exceção alguma”:
 
“Responderão, portanto, por qualquer prejuízo que o credor venha a sofrer como consequência da omissão da pessoa incumbida de promover a inscrição e especialização da hipoteca legal.”
 
E tanto mais gravosa, quanto, prosseguia Carvalho Santos, alça-se ainda ao plano da responsabilidade penal:
 
“A indenização não isentará os funcionários culpados da responsabilidade criminal; incorrerão também nas penas do crime de estelionato os responsáveis que, antes da inscrição da hipoteca legal, alienarem ou onerarem imóveis sujeitos à responsabilidade.”
 
Realce-se que os promotores públicos não podem agir propter officium para a especialização e a inscrição hipotecárias, senão que somente podem atuar quando a tanto solicitada sua promoção –e é só nesta hipótese que, havendo sua eventual omissão, podem advir-lhe eventuais responsabilizações.
 
845. O Código de processo civil brasileiro de 1939 (arts. 698 et sqq.) e o Código de 1973 (arts. 1.205 et sqq.), que o sucedeu, previam da maneira expressa o procedimento de especialização da hipoteca, o que já não ocorre com o Código de 2015. Subsiste, entretanto, o art. 135 do Código de processo penal, versando sobre essa especialização.
 
De toda a sorte, ainda que mais não haja um rito civil que se tenha por especial, mantém-se o processo pelas regras comuns, que segue desde a (i) a petição inicial, (ii) com documentos confirmadores do domínio do bem e do título institutivo, (iii) dando-se a citação do devedor (e eventuais outros interessados), (iv) designando-se perito para a avaliação –com possível indicação de assistentes técnicos–, (v) elaborando-se laudo de avaliação, (vi) ensejando-se manifestação das partes, (vii) proferimento de sentença, (viii) sujeita a recursos.
 
Tanto o Código de 1939 (art. 702), quanto o de 1973 (art. 1.207) indicavam a expedição de mandado para a inscrição da hipoteca uma vez concluído o processo judicial de sua especialização. O Código de 1939 prescrevia que do “instrumento” dessa especialização (é dizer, o mandado) constassem a sentença e “a decisão do recurso”, de maneira que com isto se punha às claras a necessidade do trânsito em julgado.
 
Parece bem que, com invocação analógica da regra do art. 138 do Código do processo penal brasileiro (artigo com o texto que lhe deu o art. 2º da Lei n. 11.435, de 28-12-2006), corra o processo civil de especialização da hipoteca em autos apartados do feito principal correspondente.