Os desafios para o equilíbrio do mercado digital e a importância da atuação do Poder Judiciário no contexto da nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) marcaram os debates que concluíram o seminário Comunicação e Novas Tecnologias – Proteção de dados e simetria regulatória, realizado na segunda-feira (26) no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
 
O seminário registrou número recorde de inscritos, com mais de duas mil pessoas acompanhando presencialmente as discussões. Outros interessados puderam acompanhar o evento pela internet, em transmissão ao vivo no canal do STJ no YouTube.
 
Autoridade efetiva
 
O primeiro painel da tarde teve como tema “Responsabilização e Simetria Regulatória: Desafios para o equilíbrio do mercado digital”. O ministro do STJ Villas Bôas Cueva iniciou o debate destacando a relevância da LGPD (Lei 13.709/2018) para que o Brasil esteja em sintonia com os marcos legais regulatórios existentes no mundo.
 
Ele lembrou que a recém-criada lei, inspirada nos modelos europeus de regulação, prevê a criação de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração pública responsável por implementar e fiscalizar o cumprimento LGPD em todo o território nacional.  “Talvez o primeiro desafio da Lei Geral de Proteção de Dados seja a criação de uma autoridade efetiva de proteção de dados, independente e reconhecida por outros países”, afirmou.
 
Limite e extensão
 
Em seguida, o ministro Nefi Cordeiro ressaltou que, com o rápido avanço das tecnologias e a criação do novo marco regulatório, tanto o Poder Judiciário quanto a sociedade e os meios de comunicação terão de enfrentar questões relacionadas ao limite e à extensão de atuação das nossas leis. “Até onde queremos regular? “, questionou o magistrado.
 
“Precisamos discutir até onde todos os que detêm, manipulam, divulgam ou fazem o uso de dados estarão sujeitos à integridade ou não dessas novas normas criadas, pelo custo, mas também pelo interesse da sociedade em que exista o controle desses dados, e até que exista uma concorrência leal no mercado.” 
 
Fronteiras do mercado
 
Por último, o professor da Universidade de Brasília (UnB) Márcio Aranha ressaltou que a construção e a agregação de mercados digitais exigem que se tenha, além de revisões legislativas e de uma produção normativa bem estruturada, uma produção infralegal regulatória efetiva e a identificação do mercado de atuação. “Qual é o efetivo mercado de que tratamos?”, indagou ele.
 
“Nós ainda mantemos um controle sobre o mercado de infraestrutura telecomunicacional, mas não mantemos o controle sobre a fonte das informações e a armazenagem delas. Nós podemos ter certo controle sobre a comercialização desses dados e a diversificação dos atores que possam fazer dessa riqueza uma riqueza que possa ser compartilhada por todos.”
 
Papel do Judiciário
 
Ao falar sobre os impactos da LGPD na economia digital, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino observou que, embora a lei brasileira só entre em vigor em agosto do ano que vem, as empresas que operam no mercado internacional já estão submetidas à legislação de proteção de dados europeia. Ele lembrou, inclusive, a recente multa imposta ao Google por falhas na obtenção do consentimento dos usuários.
 
O ministro destacou o aspecto das penalidades que serão impostas pela nova lei e os casos de responsabilidade civil dos controladores e operadores dos dados, que vão trazer novas demandas ao Judiciário. Segundo ele, a lei cria um sistema muito semelhante ao do Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo a responsabilidade objetiva, com danos morais, patrimoniais, individuais e coletivos.
 
A preocupação com o papel do Judiciário nesse novo cenário foi ressaltada pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro. Para ele, a lei traz conceitos muito abstratos, com princípios genéricos e exceções amplas. O ministro afirmou que o poder público não tem a capacidade de prever todas as situações para oferecer mecanismos legais e regulatórios. Assim, ele acredita que essa regulação de utilização de dados será feita também pelo próprio mercado.
 
Consentimento
 
Para o ministro Ribeiro Dantas, a grande questão da lei é o consentimento, uma vez que a tecnologia pode enfraquecer a capacidade das pessoas de controlar seus dados, colocando-as em uma situação de hipervulnerabilidade. O consentimento, ressaltou, deve ser pensado a partir das assimetrias de poder e informação.
 
“A estratégia regulatória deve focar não apenas no consentimento, mas no valor social da proteção de dados”, disse. Nesse sentido, apontou algumas formas de melhorar o sistema de consentimento, como as tecnologias de facilitação da privacidade.
 
A professora da UnB Laura Schertel Mendes destacou que a principal semelhança entre a lei de proteção de dados brasileira e a europeia é o que ela chamou de modelo ex ante, ou seja, o controle por meio de uma base legal de tratamento de dados. Além disso, afirmou que a semelhança entre os modelos também se deve ao fato de a natureza do dado ser fluida, não fazendo sentido o Brasil adotar um modelo diferente, por conta da interoperabilidade dos dados.
 
Para ela, não há mais dados irrelevantes, já que “a partir de dados aparentemente inofensivos pode-se traçar um perfil muito fiel de uma pessoa e com isso tomar decisões relevantes”. Nesse sentido, a professora ponderou que é necessária uma lei abrangente que se aplique aos setores público e privado, e a pequenas e grandes empresas, que atuem on-line e off-line.
 
Sensibilidade
 
O encerramento do seminário teve a participação de seus dois coordenadores científicos: o ministro Luis Felipe Salomão e o presidente da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), Márcio Novaes. O painel foi mediado pela jornalista Mara Luquet, do canal MyNews.
 
Segundo o presidente da Abratel, embora ainda não esteja em vigor, a LGPD vai exigir muita sensibilidade dos operadores do direito, “porque a tecnologia nos atropela todos os dias”. Ele lembrou a necessidade de bom senso do Judiciário na interpretação da nova lei.
 
O ministro Salomão destacou que a tecnologia, de forma semelhante ao conceito de mercado, não pode ser definida como boa ou ruim para a humanidade. “Nós é que vamos fazer com que a tecnologia funcione bem ou funcione mal”, ponderou.
 
Salomão lembrou que, no âmbito do Judiciário, a tecnologia tem sido importante para a padronização de processos e a agilidade dos julgamentos, inclusive com o auxílio da inteligência artificial. Ao mesmo tempo, destacou que a Justiça terá que tomar decisões sobre as aplicações tecnológicas, a exemplo da própria legislação de proteção de dados.
 
Ao encerrar, o ministro anunciou que as discussões ocorridas no seminário serão compiladas e transformadas em livro.