O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 13)

Fácil é advertir que, nada obstante o relevo que tem o idioma para a formação da pátria e a geração nacional, ele não é seu elemento essencial. Que, de fato, a língua não seja o fator fundamental da pátria dão-nos exemplo a Suíça, cuja unidade cultural se reconhece, em que pese embora a seus quatro idiomas principais, e, ao revés, a fragmentação da América espanhola, a despeito da unidade substancial de sua língua, o castelhano (frise-se: unidade substancial, porque conhecidas são as diferenciações pontuais nos «castelhanos» das Américas andina, caribenha e mexicana).

Fator sujeito, em larga medida, a constantes e inevitáveis mudanças, não será, pois, pelo obséquio e culto de uma sua estabilidade a qualquer preço que se haveria de justificar a piedade patriótica, mas, antes, isto sim, por sua preservação diante de mutações que, ideológicas e manipuladoras, visam, de modo tantas vezes proposital, a desconstruir-lhe os conceitos e até as realidades a que a língua se remete.

Acenando ao conhecido aforismo lex orandi, lex credendi, um grande filósofo espanhol de nossos tempos, em seu livro El lenguage y los mitos, afirmou que “mudar de linguagem (…) é mudar de alma”. Porque, prossegue este autor, Rafael Gambra,

“las palabras no son solo vehículos para la expresión de realidades concretas o de ideas, sino que poseen un poder de reactivo sobre el espíritu, no ya en su mismo significado, a veces complejo y matizado, sino en la carga emocional que conllevan.”

Na pequena apresentação que fiz para a grandiosa Suma gramatical, de Carlos Nougué, referi-me a uma interessante passagem do filme Life of Brian (1979), filme dirigido por Terry Jones, cuja principal personagem, naturalmente: Brian, pichava os muros de Jerusalém com esta atropelada sentença supostamente em latim Romanes eunt domus. Brian pretendia com ela significar “romanos, ide para casa”, e deu-se que um centurião romano o surpreendeu, levando-o –com alguma didática mesclada a ameaças– a convencer-se dos manifestos lapsos de seu texto, emendando-se, por fim, com a frase “Romani ite domum”. Mas aí vem o fundamental da passagem: o centurião impôs a Brian escrevesse ele cem vezes essa frase sobre os muros da cidade. Pois bem: é muito possível (provável mesmo) que o filme desejasse, neste capítulo, criticar a pedagogia da língua latina, mas o fato é que a cena retraçou, de um lado, a liberdade de expressão política entre os romanos, e, de outro lado, sua intransigência com a perversão do idioma, porque essa perversão implicaria um ataque fundamental de subversão da própria comunidade.

Com efeito, não se pense haja inocência na mudança proposital da linguagem −“nous n’avons jamais cru que les mots sont innocents”, disse Michèle-Laure Rassat−, e ainda que seja de todo errôneo julgar, pura e simplesmente, que as palavras sejam um mal (aproveitando-se da homofonia, dizem os franceses que “les mots sont les maux”), é certo que possam ser uma via de manipulação e desconstrução, pela qual, de modo inadvertido, somos muitas vezes contaminados.

Não se trata já de mudança do significante ou dictum, mas do câmbio do significado ou dicibile (na referência agostiniana). Tomemos por ilustração o caso da palavra “família”. Para Léon Trotsky, o célebre revolucionário, se a família não pode ser abolida, há de ser substituída, e esta substituição pode dar-se (e assim vem ocorrendo) com a mudança, neste caso expansiva, de seu conceito, do significado de uma palavra que permaneceu exteriormente a mesma.

Outro exemplo de nossos tempos é o do vocábulo “fobia”, que se trasladou da noção de “medo sem motivo racional” para a de “preconceito”. Com isto, interdita-se o controle epistêmico (ou de veracidade) das várias fobias, permitindo-se o uso ideológico da palavra.

Pode, por exemplo, destruir-se a instituição notarial, na sua forma latina, sem alterar uma letra de sua designação. Basta com avessar-lhe os princípios e os atributos fundamentais (v.g., imediatidade, dação da fé pública, cavere, cēt.).

Deste modo, ainda que a língua nasça, cresça, viva e até morra, ela é um dos pilares da pátria e da comunidade nacional, e tal bem o disse Gladstone Chaves de Melo, “a língua é a primeira manifestação da cultura de um grupo, tanto é verdade que, a seu modo, lhe reflete o nível mental, as ocupações dominantes, o espírito, as características psicológicas, os hábitos, o temperamento”.

Assim, ainda que a língua não seja o fator essencial da pátria, desonra-as, a uma e a outra, a irreverência com que aquela se trate, na negligência das regras de sua gramática, no desamor de seu significado e, mais que tudo, na intencional revolução por que ela se desconstrua.