O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 14)

Dando sequência ao tema central sobre a relação (e o papel) do notário no domínio da moral pública, aventuramo-nos no capítulo da piedade patriótica, para cujo conceito tivemos de considerar já alguns dos fatores constitutivos da pátria (o território, a raça, a língua) e pendemos, ainda, de examinar, no âmbito da constituição da pátria, o papel da religião, do querer viver coletivo (o vouloir vivre colectif de Le Fur) e da tradição.

A universalidade do fenômeno religioso –ou seja, o fato histórico de que alguma religião sempre nutriu a vida dos povos– testemunha sua importância constitutiva para as diferentes comunidades. Disse, a propósito, Lewis Mumford que, com a transformação urbana que emergiu da passagem da aldeia à cidade, esta último, “como um todo, tornou-se um recinto sagrado”. E prossegue o autor:

“Por trás das muralhas da cidade descansava um fundamento comum colocado em posição tão profunda quanto o próprio universo: a cidade era nada menos que um lar de um deus poderoso.”

Em um livro publicado ao princípio do século XX (The study of religion), Morris Jastrow observou que as religiões –quaisquer elas sejam– se compõem de três elementos:

(i) a fé ou o reconhecimento de um ou mais deuses superiores ao homem;

(ii) um correspondente sentimento de dependência em relação a esses deuses;

(iii) o relacionamento do homem com os deuses.

Daí que, como consequentes, a crença, o afeto e o trato estabelecido entre os homens e os deuses acarretem a organização de um culto (com seus atos específicos: ritos) e regulamentação da vida humana para atrair os benefícios do relacionamento com os deuses.

Confirmando as referências de Jastrow, abonou o grande pensador Léonce de Grandmaison as três características de todas as religiões conhecidas:

(i) a de ter um corpo de doutrina, ao menos esboçado, de adesão obrigatória; é dizer, um conjunto de crenças relativas à origem e ao destino dos homens (ou de uma fração da humanidade: a gênese e o fim de um grupo ou de uma raça);

(ii) a de estabelecer um conjunto de regras de conduta, reportado a um poder sobre-humano;

(iii) a de constituir um sistema de ritos e de práticas para a regulação do relacionamento dos homens, tanto individual, quanto socialmente, com esse poder sobre-humano.

Tamanha é a relevância do fenômeno religioso (e, note-se bem, não se fala aqui de uma ou de outra religião, mas apenas do fenômeno religioso universal, do fato mesmo da religião) que, não fora ela,  religião, as muralhas das cidades haviam de as ter transformado em prisões “cujos internos teriam tido apenas uma ambição: destruir seus carcereiros e fugir” (Mumford).

Sinal emblemático desta importância do fenômeno  religioso na gestação e história das comunidades pode recrutar-se das culturas em que não havia cidades (p.ex., a dos espartanos, “que viviam em aldeias abertas e declinavam de se refugiar por trás das muralhas”), pois nelas os detentores da potestade “tinham de permanecer selvagemente alertas e ameaçadores, em armas durante todos os tempos, não fossem derrubá-los seus servidores escravizados”. Disto adveio a solidariedade comunal, o liame entre os membros da comunidade que se achavam, por assim dizer, dentro de “um mesmo barco” (ainda na expressão de Mumford).

Mas de ser tão relevante a religião para que, ao largo do tempo, se sedimentasse a comunidade pátria, solidarizando-se nela suas sucessivas gerações, não se deve extrair que a religião seja da pátria o fator essencial in se. Isto o desmentiriam os fatos: basta que olhemos, por exemplo, a América hispânica, na qual, ainda hoje –a despeito da míngua de quantidade e de qualidade que a afligem– prevalece a religião católica romana, com sua identidade de fé estendida do Norte, onde se deram as gestas da Cristiada mexicana, ao Sul das ardorosas procissões à Virgem de Luján, a mesma fé, noutros exemplos, dos jesuítas que civilizaram o Brasil e bem se sucederam nas reduções paraguaias.

Todavia, em que pese a este relevo social, cultural e político das religiões, elas não são, in se, o constitutivo essencial da pátria: México, Argentina, Paraguai e Brasil, para aqui valer-nos dos exemplos indicados acima, todos nutridos da mesma fé católica, apostólica e romana, nem por isto são uma só pátria, e não faltam mesmo pátrias em que haja variedade de religiões: ilustração muito gráfica desta diversidade de religiões numa só pátria pode apontar-se com o Líbano, em que pouco mais de metade da população é muçulmana, com ela convivendo grande número de católicos maronitas e de outras religiões cristãs.

A religião, portanto, não é o fator essencial da pátria, a despeito de sua vultosa importância para a geração e consolidação da comunidade nacional.

Prosseguiremos nesta série, em busca ainda do elemento que se haja de considerar fundamental para a noção de pátria.