(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 41)

Des. Ricardo Dip

764. Dispõe a Lei brasileira n. 6.015, de 1973 –isto já ficou dito–, que, no registro imobiliário, devam averbar-se, “por cancelamento”, a extinção dos ônus e direitos reais (n. 2 do inc. II do art. 167).

O cancelamento registral é um dos modos de retificação do registro: é sua retificação negativa.

As retificações podem ser positivas, negativas e mistas; aquelas, as positivas, são de acrescentamento, quer substancial (p.ex., o registro de uma venda e compra é um exemplo de retificação registral positiva, ainda que o termo “retificação” se entenda, neste exemplo, em sentido bastante lato), quer por acidente (ao incluir-se um dado acessório faltante – v.g., como o número de contribuinte fiscal– para a integralidade da inscrição retificada). Retificação negativa é a supressora –total ou parcial– de dados inscritos. E, mista, a retificação que, de par com suprimir algum dado da inscrição retificada, inclui-lhe um novo indicativo (ad exemplum, a correção de um algarismo no número de contribuinte, a emenda do apelido de um legitimado registral, etc.).

O cancelamento, como se referiu, é a retificação registral negativa, tanto a supressiva de apenas parte da inscrição afligida (cancelamento parcial: scl., o de uma cláusula do título, o relativo à morte de um dos co-usufrutuários), quanto a eliminação influente sobre a totalidade da inscrição anterior. Nesta última hipótese, o do cancelamento integral, o efeito rotineiro, no direito nacional vigente, é o da exclusão ex nunc de efeitos da inscrição atingida, e ex nunc, explique-se, por força da legitimação registral ou presunção relativa qualificada prevista no art. 252 da Lei n. 6.015: “O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.

Pode ocorrer –em caráter excepcional no direito brasileiro em vigor– de o cancelamento não ser exclusor de efeitos do registro cancelado, mas simples seu aviso –com o consequente de publicidade-notícia, voltada ela a excluir alegação da boa-fé de terceiros. Esta é a situação que, como já se viu, atende à hipótese de cancelamento do registro perempto de uma hipoteca.

765. Além da hipótese da perempção, as demais ocorrências de extinção da hipoteca devem também averbar-se com caráter cancelador (mas, note-se bem, desta averbação emanará a exclusão ex nunc dos efeitos do registro retificado, ao revés do que se passa com o averbamento relativo ao registro perempto).

As causas de extinção da hipoteca alistam-se, entre nós, no art. 1.499 do Código civil, quais sejam (i)
a extinção completa da obrigação principal; (ii) o perecimento da coisa; (iii) a resolução da propriedade (é dizer, ocorrência da condição resolutiva de um domínio); (iv) a renúncia do credor (sempre quanto à hipoteca voluntária; restritivamente, quanto à legal, tratando-se de hipoteca constituída em favor do ofendido: inc. III do art. 1.489 do Cód.civ.); (v) a remição pelo credor subipotecário; (vi) a arrematação ou adjudicação, satisfeito o requisito de cientificação judicial do credor hipotecário (o art. 1.501 do Cód.civ. fala em “notificação”; o art. 804 do Cód.pr.civ. de 2005 usa o termo “intimação” –cf. também o inc. I do art. 799 deste mesmo Código processual); desta maneira, não é só na execução promovida pelo credor hipotecário que se pode extinguir, com a arrematação ou a adjudicação, o ônus da hipoteca, desde que se cumpra o suposto da cientificação desse credor (vidē, neste sentido, Francisco Eduardo Loureiro).

Estas hipóteses extintivas da hipoteca não são as únicas na ordem jurídica vigente. Carlos Roberto Gonçalves, ad exempla, indica, além da perempção da hipoteca, as extinções por anulação em virtude de fraude contra credores (art. 163 do Cód.civ.bras.: “Presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor”), mediante consolidação da propriedade (concentração dos status de credor hipotecário e de dono do imóvel garantido) e por usucapião liberatória –usucapio libertatis (tema este último, entretanto, que comporta interessante controvérsia). Cabe ainda acrescentar a hipótese de prescrição da dívida garante (referem-na, p.ex., Nelson e Rosa Nery).

Observou com razão o des. Francisco Loureiro que a norma do art. 1.500 do vigente Código civil brasileiro é “dispensável”, porquanto, assim sustenta, já disciplinada na Lei n. 6.015/1973, em seu art. 251. Lê-se neste dispositivo do Código: “Extingue-se ainda a hipoteca com a averbação, no Registro de Imóveis, do cancelamento do registro, à vista da respectiva prova”.

De fato, pouco parece compreender-se com o advérbio «ainda» que consta do texto desse art. 1.500 do Código civil, salvo se seu significado normativo se estabelecer em redor das hipóteses extintivas que não se preveem no art. 1.499 do Código civil (tais as referidas acima).

Se, como é próprio de um sistema de título e modo –tal o é o caso do registro predial brasileiro em vigor–, a averbação de cancelamento, quod plerumque accidit, constitui de modo negativo a extinção do registro da hipoteca (e, raramente, apenas a noticia, tal se dá ao averbar-se o cancelamento da inscrição perempta da hipoteca), ter-se-ia de saber, para melhor justificar a norma desse art. 1.500, em qual hipótese, para além das previstas na lei substantiva, a averbação ainda extinguiria directe a própria hipoteca (em consequência do cancelamento de seu registro).

Assinale-se que a hipótese de uma extinção judicial da hipoteca por iniciativa de terceiro (art. 253 da Lei n. 6.015: “Ao terceiro prejudicado é lícito, em juízo, fazer prova da extinção dos ônus, reais, e promover o cancelamento do seu registro“) não agrega, no plano substantivo, novos títulos para a extinção, mas somente expressa a possibilidade de, em via judicial, terceiros postularem, confirmando-lhe a causa, a extinção hipotecária. Trata-se aí, pois, apenas de uma referência estrita em benefício de terceiro (vale dizer, de quem não seja o credor da hipoteca objeto do registro retificando), possivelmente para não só aclarar, expansivamente, a regra do inciso II do art. 250 da mesma Lei n. 6.015/1973, mas também temperar o uso do advérbio «só» no caput desse artigo.

Com efeito, lê-se no art. 250 da Lei n. 6.015 que “o cancelamento de hipoteca só pode ser feito” (o itálico não é do original) “em razão de procedimento administrativo ou contencioso, no qual o credor tenha sido intimado” (inc. II), e não parece excessiva a intenção de esclarecer que a esse “procedimento” (sic; melhor se diria a esse processo) –quer na esfera administrativa, quer na contenciosa– legitimam-se ativamente os terceiros interessados.

Controverso, neste quadro, é o tema do discrimen para a eleição entre as vias judiciais administrativa e contenciosa. Há quem pense que a via administrativa está restrita à hipótese de existência prova preconstituída documental bastante para apoio da averbação de cancelamento. Se assim é, a via contenciosa enseja-se quando, para a verificação da causa desse cancelamento, haja necessidade de provas (orais ou periciais).

Por sua vez, o processo de caráter administrativo-judicial é pertinente quando haja recusa do registrador em averbar o cancelamento, o que se dá, não de todo raro, em vista de cogitar-se de alguma insuficiência ou dubiedade da prova. Este processo é, em princípio, entre nós, o de dúvida (arts. 198 et sqq. da Lei n. 6.015), mas, no Estado de São Paulo, por versar sobre averbação resistida, atrai o procedimento ou (melhor) processo administrativo comum, iniciado, directe, perante as corregedorias permanentes.

Nada impede que terceiros prejudicados se valham das demais hipóteses legais de solicitação de averbamento cancelador do registro da hipoteca, a saber: (i) o em que se exiba “autorização expressa ou quitação outorgada pelo credor ou seu sucessor, em instrumento público ou particular” (inc. I do art. 250 da Lei n. 6.015) e (ii) o do pleito conformado à “legislação referente às cédulas hipotecárias” (inc. III).

Quanto a esta última hipótese de averbação de cancelamento do registro da hipoteca, hipótese que se remete ao Decreto-lei brasileiro n. 70/1966 (de 21-9), nele se admite, por seu art. 20, a ação consignatória das importâncias devidas, com a expedição de ordem judicial para o cancelamento da inscrição da hipoteca, sempre que se trate de seu pagamento integral. Ou seja, tem-se aí um caso de averbação apoiada em mandado para inscrever-se o cancelamento.

O art. 24 do Decreto-lei n. 70 reporta-se ainda ao cancelamento das inscrições da hipoteca e da cédula hipotecária, em hipótese sempre de liquidação integral da dívida, (i) com a exibição da cédula devidamente quitada ao oficial do registro de imóveis competente (inc. I), (ii) com a apresentação, à falta da cédula, de outros meios de prova de sua quitação (incluída a possibilidade de declaração oriunda do emitente ou do endossante –cf. inc. II e par. único) e (iii) por meio de sentença judicial com trânsito em julgado.