(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a locação -parte 2)

Des. Ricardo Dip

768. Três são, classicamente, os tipos de locação, segundo seu objeto consista em uma coisa (móvel ou imóvel), uma obra ou um serviço.

Esses tipos locatícios correspondem ao que, no direito romano, eram chamados, respectivamente, de locatio conductio rei, locatio conductio operis e locatio conductio operarum.

A vigente lei brasileira de registros públicos –a Lei n. 6.015/1973– contempla, já o vimos (e aqui reiteramos para uma visão de conjunto), a possibilidade de inscrição de todos esses tipos de ajuste locatício:

(i) a locatio conductio operarum, ou seja, em vernáculo, a locação de serviços, é suscetível de inscrever-se, no ofício de títulos e documentos, conforme se vê da previsão do item 4º do art. 129 da Lei n. 6.015 , que se refere a “contratos de locação de serviços não atribuídos a outras repartições” (a ressalva do registro em outras repartições corre à conta dos contratos laborais, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, e de outros específicos contratos de prestação de serviço, como o sejam aqueles submetidos à inscrição no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (p.ex., cf. o art. 211 da Lei brasileira n. 9.279, de 14-5-1996: “O INPI fará o registro dos contratos que impliquem transferência de tecnologia, contratos de franquia e similares para produzirem efeitos em relação a terceiros”);

(ii) à locatio conductio operis –que se distingue da de locatio condutio operarum porque não tem por objeto os serviços (operæ), mas o produto ou resultado (opus) desses serviços– parece convir a extensão do disposto no mesmo já referido item 4º do art. 129 da Lei nacional de registros públicos; mas, quando assim não se entendesse, poderia invocar-se o preceito do parágrafo único do art. 127 da Lei n. 6.015: “Caberá ao Registro de Títulos e Documentos a realização de quaisquer registros não atribuídos expressamente a outro ofício”;

(iii) por fim, a locatio conductio rei pode registrar-se, tratando-se de res mobilis, no ofício de títulos e documentos (com amparo no mencionado par. único do art. 127 da Lei n. 6.015), e, cuidando-se de imóvel, registrar-se –tanto no ofício predial (n. 3 do inc. I do art. 167 da mesma Lei n. 6.015 e art. 8º da Lei brasileira n. 8.245/1991), quanto no registro de títulos e documentos (item 1º do art. 129 da Lei n. 6.015, com fins, quando menos, de conservação: cf. inc. VII do art. 127)–, e averbar-se no registro de imóveis, de acordo com o que prevê, para viabilizar o exercício de direito de preferência”, o n. 16 do inciso II do art. 167 da Lei de registros públicos em vigor.

769. Enuncia o art. 2.036 do vigente Código civil brasileiro que “a locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida”; os imóveis rurais devem observar a disciplina do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504, de 30-11-1964) e, de modo subsidiário, os preceitos do Código civil (assim o dispõe o § 9º do art. 92 do referido Estatuto: “Para solução dos casos omissos na presente Lei, prevalecerá o disposto no Código Civil”).

É em normativa especial, qual seja a da Lei n. 8.245/1991, que se vai encontrar, no Brasil, a solução de direito posto ora aplicável a uma questão teórica interessante.

Em resumo, suposto –matéria embora controversa– não vedar o direito substantivo que se possa dar em locação coisas alheias, incluídos os imóveis, caberia sindicar se as inscrições prediais correspondentes devem observância ao princípio do trato consecutivo –o mal designado de princípio da continuidade.

Esse gênero de discussão não é novo: p.ex., Jorge de Seabra Magalhães, no interessante estudo O registo das acções, arguira já, em 1986, a impertinência de observarem-se, quanto a esta inscrição (que guarda similitude com averbações previstas no Código brasileiro de processo civil –p.ex., arts, 828, 844 e 868, § 1º– e, sobretudo, corresponde ao registro da citação em ações reais ou pessoais reipersecutórias, alistado no item 21 do inc. I do art. 167 da Lei n. 6.015/1973) –repete-se: inconveniente se mostra, segundo Seabra Magalhães, a observação, no registro das ações, dos critérios da consecutividade. Tampouco, no plano teórico, seria negligenciável, em nosso capítulo, disputar sobre a possibilidade de as locações serem inscritíveis com independência da participação contratual do dono do imóvel.

Na lição consagrada de Carvalho de Mendonça, podem contratar a locação predial –no polo ativo– (i) o proprietário do imóvel, (ii) o simples possuidor do prédio, (iii) o mandatário, contanto que munido de poderes de administração, (iv) o tutor de proprietário do imóvel, (v) o curador de um proprietário, (vi) o administrador dos bens do ausente, (vii) o credor usufrutário, (viii) o credor anticrético, (ix) o enfiteuta e (x) o locatário, quando autorizado a sublocar.

Contra a exceção eventual de observância do trato consecutivo para o registro de locação com cláusula de vigência, poderia objetar-se que essa clausulação –viesse a ser ajustada com locador não proprietário do imóvel– importaria num estorvo manifesto à mais econômica fluidez dominial, até mesmo interferindo, o que é fácil adivinhar, no preço da alienação. Mas esta objeção pode superar-se com o mero consentimento do proprietário, seja antes ou depois da celebração do ajuste.

Na mesma trilha, poderá acenar-se a algum óbice com a ideia de um direito de preferência aquisitiva constituído em favor do locatário à margem da vontade do dono do imóvel que não tenha participado do contrato de locação. Todavia, dá-se o caso de que essa preferência não é contratual, é legal, e, não fora isto, poderia igualmente admitir-se o consenso do proprietário antes da inscrição.

Convinha, pois, uma solução determinativa do tema, o que adveio com a Lei n. 8.245, de 1991, cujo art. 81, além de acrescentar no inciso I do art. 167 da Lei n. 6.015 a previsão de averbamento “do contrato de locação para fins de exercício de direito de preferência”, incluiu, no art. 169 desta Lei, um inciso (o III), preceituando que

“III – o registro previsto no n° 3 do inciso I do art. 167, e a averbação prevista no n° 16 do inciso II do art. 167 serão efetuados no cartório onde o imóvel esteja matriculado mediante apresentação de qualquer das vias do contrato, assinado pelas partes e subscrito por duas testemunhas, bastando a coincidência entre o nome de um dos proprietários e o locador” (a ênfase gráfica não é do original).

Assim, não há, no direito brasileiro atual, a possibilidade de registrar-se ou averbar-se contrato de locação do qual não participe ao menos um dos comproprietários do imóvel. Solve-se, pois, em parte, a discussão sobre a observância do trato consecutivo, mas não por inteiro, uma vez que permanece alguma sorte de ladeamento da consecutividade ao admitir-se que uma inscrição, relativa a imóvel com legitimação plural de domínio, possa perfazer-se sem que todos os disponentes participem do título inscritível.

É verdade que o art. 1.324 do Código civil brasileiro prevê que o fato de um condômino administrar a coisa comum sem oposição dos outros condôminos faz presumir a representação de todos, mas não são menos verdade (i) que, de consonância com o parágrafo único do art. 1.314 do mesmo Código, “nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros” (o itálico não está na origem), e (ii) que a letra do inciso III do art. 169 da Lei n. 6.015 sequer permite possa o registrador exigir prova do consenso dos condôminos quanto à investidura da posse por terceiro –o locatário– em ajuste que esteja firmado por ao menos um dos comproprietários.