O último capítulo do Quixote é um dos fragmentos mais tocantes da literatura ocidental. É o fim do livro e acerto de contas com o legado dessa figura aliciante. À beira da morte Quixote recobrou a razão, espiou seus exageros, retomou a realidade, registrou seu testamento. Esse belíssimo texto foi comentado, entre outros, por Jorge Luís Borges e por Miguel Unamuno. Para o espanhol, Unamuno, a morte imortalizou Quixote. O Quixote não morreu. Para o argentino, Borges, nas últimas páginas desse memorável livro Cervantes e Quixote se perdoam. O autor e a personagem se fundem.
 
Na cena, ao lado do cavaleiro da triste figura, um médico, um bacharel, um barbeiro, a ama, a sobrinha, e Sancho, o escudeiro, sempre ao lado da cabeceira da cama. Vencido, desencantado com Dulcineia, Quixote recobrou a realidade. Dulcineia já não mais existia, voltava a ser Aldonza Lorenzo, a criadora de porcos. Quixote pediu para dormir um pouco. Dormiu mais de seis horas. Ao acordar, lembrou que reavia o juízo livre e claro, sem as sombras da ignorância, derivadas das intermináveis leituras de livros de cavalaria, que reconhecia como detestáveis. O excesso de leitura cozinhou seu cérebro.
 
Já não era mais D. Quixote de la Mancha. Recobrava a identidade. Era Alonso Quijano quem ali estava, inimigo de toda a caterva de cavaleiros andantes. Pediu um padre para a confissão e um escrivão para o testamento. Os presentes confirmaram que a morte se aproximava. Quixote de doente se tornava são, e os antigos acreditavam que à beira da morte os loucos retomavam a razão. Era o que acontecia com Quixote. A sós com o cavaleiro, o padre tomou a confissão.
 
No testamento, Quixote deixou a maior parte do que tinha para Sancho, determinando que se pagassem o quanto devia, e que, se sobrado algum dinheiro, que fosse entregue a quem sua loucura fizera escudeiro. Pediu perdão ao amigo. Em prantos, Sancho, que era um sábio, pediu a Quixote que não fizesse a maior das loucuras do mundo, isto é, morrer sem ninguém que nos mate. Sancho entendia que a melancolia era uma manifestação da desrazão, e que a tristeza matava. Freud aprendeu espanhol para ler Quixote no original. Uma pista: literatura e psicanálise.
 
Quixote insistia que não era mais louco. Pedia que o seu arrependimento e a sua verdade cimentassem a estima que pedia dos amigos. À sobrinha deixou sua fazenda. No entanto, condicionava a herança ao comprometimento da sobrinha de não se casar com quem fosse leitor de novelas de cavalaria. Caso a sobrinha não cumprisse a determinação, ordenou aos testamenteiros que distribuíssem o quinhão em obras pias. À ama determinou que se pagassem salários devidos e mais vinte ducados para um vestido. Ao fechar o testamento, entre compaixões e lágrimas, Quixote entregou seu espírito, exatamente como se lê em Cervantes.
 
Desse livro encantador várias lições se tiram ou se inventam. A mais poderosa delas, tirada ou inventada, suponho, consiste na compreensão dos moinhos de vento que mantemos em nossa alma, em suas formas de sonho e de alucinação. Somo sonhadores e somos alucinados. Quando nossos moinhos de vento se ajustam aos moinhos de vento de quem convivemos, avançamos na loucura compartilhada: é tão gostoso. Quando nossos moinhos de vento deixam de ser os moinhos de vento de quem compartilhamos nossos sonhos quebra-se o encanto, e a realidade nos toma. Nos tornamos realistas e amargos. É desesperador.
 
Esse legado de sonhos consiste (talvez) na parte intangível do testamento de Quixote. Não se sabe, e nunca saberemos, se melhor vivermos na insensibilidade do que nos cerca, realisticamente, ou no conforto do que sonhamos, romântica e ilimitadamente. Não há nada, absolutamente nada, que sonhar nos impeça.
 
[1] Livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo/USP. Doutor e Mestre pela PUC/SP.