No sistema tributário plasmado pela Constituição, a competência para tributar a transmissão inter vivos por ato oneroso de bens imóveis, de direitos reais sobre imóveis (exceto os de garantia) e a cessão de direitos a sua aquisição fora outorgada aos municípios. Trata-se do vulgarmente conhecido ITBI.
Para estimular a capitalização e o desenvolvimento das empresas[1], o constituinte previu as seguintes hipóteses de imunidade: (i) transmissão de bens ou direitos ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital social e (ii) transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica. A imunidade só deixará de existir se a atividade negocial preponderante do adquirente envolver a venda-compra, locação ou arrendamento mercantil desses bens ou direitos (artigo 156, parágrafo 2º, inciso I, in fine). A significação de “atividade preponderante” para excluir citada imunidade continuou regulada pelo Código Tributário Nacional. Mas não é dela que se tratará aqui.
Alguns municípios, ao estabelecerem as regras do ITBI, têm desconsiderado o texto da Constituição e exigido o recolhimento do imposto sobre hipótese que jamais poderia existir. Um exemplo elucidará a situação. Imagine-se que Joaquim e Carlos pactuem uma sociedade empresária limitada. Joaquim realiza 50% do capital social subscrito, destinando um imóvel para a sociedade. Carlos realiza a outra metade em dinheiro. Joaquim se retira da sociedade, cedendo suas cotas sociais a Pedro. O imóvel continua, porém, integrando o patrimônio da pessoa jurídica. Anos depois, Pedro e Carlos declaram o fim da sociedade e, nessa operação, ajustam que aquele imóvel ficará com Pedro. Nos termos postos, evidencia-se que referida transmissão imobiliária não pode ser tributada, uma vez que se enquadra no enunciado de imunidade. Todavia, o recolhimento do ITBI é exigido ao fundamento de que a imunidade só existiria se o imóvel incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica voltasse ao patrimônio jurídico do mesmo alienante — no caso imaginado, para Joaquim.
Para sustentar tal tributação, a municipalidade tem se amparado no artigo 36 e seu parágrafo único do CTN assim disposto:
Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;
II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.
Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.
No entanto, esse raciocínio não é dedutível dos termos constitucionais, pois a imunidade, para acontecer, não depende de uma operação envolvendo os “mesmos alienantes”. É irrelevante quem seja o destinatário dos bens ou direitos imobiliários quando se extingue a pessoa jurídica. A Lei Maior não trata dessa minúcia, não cria essa distinção factual; reza, tão somente, que o imposto não incide “sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de […] extinção de pessoa jurídica”.
A imunidade do ITBI é, essencialmente, incondicionada
É importante acentuar que a fruição de referida imunidade não requer, ainda, pelo Texto Maior que o potencial sujeito passivo da relação tributária atenda a qualquer “requisito estabelecido em lei”, como acontece, por exemplo, no regime imunitário das contribuições para a seguridade social (artigo 195, parágrafo 7º). Sob esse aspecto, a imunidade do ITBI se revela, essencialmente, incondicionada[2], de sorte que a disciplina contida no parágrafo único do artigo 36 do CTN é irrelevante para interpretar a operação de transmissão de bem ou direito decorrente da extinção societária, não tendo o poder de impor mais requisitos que aqueles já constantes do texto constitucional.
Além do mais, o CTN não tem tamanha força jurídica (como gostaria o legislador local) para restringir o enunciado imunizante, ainda que seja a função dele, CTN, “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar”. Sustentar que o referido código serviria de fundamento normativo para a lei municipal divergir da literalidade da Constituição implicaria conferir-lhe a função mesma de desenhar as operações e situações imunes, o que seria, à evidência, conclusão absurda!
Ora, a imunidade nasce e se esgota no Texto Maior. Como observa Paulo de Barros Carvalho, trata-se de “classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição da República, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas”[3]. Dessa forma, tais “situações específicas e suficientemente caracterizadas” no texto da Constituição não podem, à socapa, ser diminuídas ou desenhadas diferentemente pela legislação complementar. Esta, quando muito, só poderá explicitar o enunciado de imunidade — jamais alterá-lo!
A propósito, é importante lembrar, essa questão tributária foi enfrentada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo quando do julgamento da Apelação 0002800-74.2012.8.26.0456 (Comarca de Pirapozinho, desembargador relator Erbetta Filho, 15ª Câmara de Direito Público, julgado em 24 de novembro de 2015). Naquela ocasião, o município insistia na incidência do ITBI, ao argumento de que a transferência do domínio imobiliário decorrente da extinção da pessoa jurídica ocorria para pessoa diversa daquela que havia integralizado, originalmente, o capital social da sociedade. O recurso da municipalidade foi, porém, desprovido, restando frisado na decisão que o artigo 36 do CTN não incide sobre as hipóteses de extinção da pessoa jurídica, mas sobre aquelas de “simples redução do capital social, com desincorporação dos bens imóveis ou direitos a eles relativos do patrimônio de pessoas jurídicas”.
Conclusões
A leitura da Lei 5.172/66 deve ser feita, sempre, à luz da Lei Maior. Esse é um postulado interpretativo óbvio, mas o legislador municipal, não raro, ao transcrever as hipóteses de imunidade para suas normas tributárias, tem se esquecido disso. De modo que se não existe qualquer exigência constitucional relativamente à identidade das pessoas envolvidas nas operações de extinção da pessoa jurídica, para a fruição da imunidade, não poderia o CTN pretender criá-la. O seu artigo 36 e parágrafo único não é fundamento de validade para leis locais discreparem da Constituição.
Não se pode esquecer que a imunidade relativa ao ITBI não requer qualquer requisito (a ser) estabelecido em lei para a sua fruição, como acontece noutros casos constitucionais (ver artigos 150, VI, “c”; e 195, parágrafo 7º). Assim, o parágrafo único do artigo 36 do CTN, ao estabelecer “identidade de pessoas” (“mesmos alienantes”) na hipótese de desincorporação de bens da pessoa jurídica, para a não incidência do imposto, não encontra fundamento constitucional.
Por isso, leis municipais que condicionem a imunidade do ITBI sobre transmissões de bens ou direitos decorrentes de extinção da pessoa jurídica apenas e tão somente se envolverem os “mesmos alienantes” (isto é: mesma pessoa que integralizou o capital social) revelam-se, na essência e no fundo, inconstitucionais! E, embora a competência tributária deferida aos municípios lhes permita muita coisa — como desenhar ou diminuir uma hipótese de isenção — não lhes permite, jamais, desenhar ou diminuir uma norma de imunidade.
[1] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 401.
[2] “Em face da existência ou não de remissão expressa, pela Constituição, às condições ou requisitos estabelecidos por lei, a doutrina também classifica as imunidades em condicionadas e incondicionadas. Cabe observar, porém, que sempre teremos o condicionamento ao menos à preservação do valor que inspira a regra de imunidade”, conforme PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário: completo. 6. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 94.
[3] Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 190-191.
Alan Brizola é advogado, especialista em direito tributário pela PUC/SP.