O jurista brasileiro, Lenio Streck, ingressou no Ministério Público em 1986, onde atuou como promotor e, depois, como procurador da Justiça (TJ/RS). Após 28 anos de MP, se aposentou e passou a advogar no STR – Studio Streck & Trindade Advogados Associados. Além disso, é professor titular dos cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, onde coordena o Núcleo de Estudos Hermenêuticos; e também do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unesa/RJ, além de ser professor visitante em algumas universidades estrangeiras. Em 2015, foi agraciado com o título de professor emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. É membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional e membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB. Em entrevista exclusiva ao Jornal do Notário, Lenio Strack discorre sobre o impacto da pandemia nos setores judiciais e extrajudiciais, revela como iniciou a aproximação com a área notarial, analisa a essencialidade da atividade dos cartórios para a sociedade e reflete sobre os serviços prestados pelo extrajudicial como profiláticos para os negócios jurídicos. “Os meios eletrônicos são sedutores pela facilidade que oferecem. O que deve ocorrer, contudo, tanto para atividades jurisdicionais, quanto para o exercício da atividade notarial é a utilização das tecnologias para auxiliar na adaptação e conferir mais segurança”, pontuou. “É na regulação que está a segurança entre o poder público e o particular”. Leia ao lado a entrevista na íntegra:
 
Entrevista CNB/SP
 
Jornal do Notário: O senhor poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória profissional?
 
Lenio Streck: Nasci em Agudo, uma cidade no interior do Rio Grande do Sul, terra do dinossauro mais antigo do mundo, 260 milhões de anos. Nasci pertinho, 3 km, do local em que foram encontrados os fósseis. Talvez por isso eu seja um jurássico do Direito. Bom, vamos lá. Trabalhei em oficina mecânica, capina, vendi cacarecos na rua, joguei futebol para estudar. E fui professor do ensino básico aos 16 anos, por concurso público. Cursei Faculdade de Direito na UNISC, em Santa Cruz do Sul e, no início dos anos 80, frequentei alguns cursos de especialização na UNISC e na UFRGS, envolvendo História, Política, Sociologia, Cultura Popular, além de Metodologia e Teoria Geral do Direito. Na UNISC também foi meu primeiro contato com a docência superior, em 1981, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Dei continuidade a esse interesse na área acadêmica, três anos depois, quando entrei no curso de mestrado em Direito do Estado na UFSC, onde fui orientado pelo saudoso Prof. Dr. Luis Alberto Warat. Foi lá, também, que defendi minha tese doutoral “Eficácia, Função e Poder das Súmulas no Direito”, alguns anos mais tarde. Meus estudos pós-doutorais foram realizados na Universidade de Lisboa, em Portugal, nos anos de 2000 e 2001, onde tive a supervisão do Prof. Dr. Jorge Miranda.
Em 1986, ingressei na carreira do Ministério Público, tendo desempenhado a função de promotor em várias comarcas no interior do Estado. Com dez anos de MP, fui promovido a procurador de justiça, quando atuei no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, com destaque para a 5ª Câmara Criminal, onde inauguramos um modo garantista de aplicar direito.
Hoje sou professor titular dos cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, onde coordeno o DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos; e também do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESA/RJ, além de ser professor visitante em algumas universidades estrangeiras. Em 2015, fui agraciado com o título de professor emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Sou membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional e membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.
Depois de 28 anos de carreira no Ministério Público, no final de 2014, me aposentei e, desde então, venho exercendo trabalhos diferenciados no STR – Studio Streck & Trindade Advogados Associados. Fazemos pareceres, legal opinions, anamneses jurídicas e ações selecionadas nos tribunais superiores, principalmente. Nosso trabalho abrange uma base teórica de Teoria do Direito, Hermenêutica, Direito Constitucional, fundamentos para qualquer área do Direito. Para se ter uma ideia, já fizemos pareceres envolvendo acordo com o Vaticano, negócio jurídico, questões envolvendo a aplicação da teoria da argumentação de Robert Alexy (inclusive com a fórmula por ele proposta), prova ilícita, contratos, aplicação de precedentes (fui o autor do artigo 926 do CPC e participei ativamente na consecução dos critérios constantes no artigo 489, par 1º., que agora também já fazem parte do processo penal), enfim, partimos sempre do DNA do Direito para investigar, com granu salis, a história institucional do caso a ser examinado.
Como você me perguntou, permito-me acrescentar, sem que isso deva representar “exibimento”, como se diz lá em Agudo, minha terra. Mas o homem é a sua história e trajetória. Tenho Prêmio Jabuti junto com Gilmar Mendes, Canotilho e Ingo Sarlet, indicação para o prêmio entre os dez melhores duas vezes, um Prêmio Açorianos no Rio Grande do Sul, mais de 100 livros publicados, 350 artigos científicos e mais de 300 capítulos em livros dispersos pelo Brasil e mundo. Alguns livros meus estão em inglês e espanhol, como Verdade e Consenso, Dicionário de Hermenêutica, A Consciência dos Juízes, etc.   Também mantenho há mais de 6 anos a coluna Senso Incomum, no Consultor Jurídico, com mais de 1 milhão de leitores por ano. Além disso, já ancorei 381 programas Direito e Literatura, na TV Justiça, do STF, além de manter, às quartas-feiras, às 8h30, o quadro Compreender Direito, na Rádio Justiça.
 
Jornal do Notário: Estamos vivendo um momento global controverso por conta da atual pandemia de Covid-19, com impacto direto em diversos setores da sociedade, inclusive na atividade judicial e extrajudicial. O senhor acredita que haverá reestruturação no panorama das instituições jurídicas após essa fase?
 
Lenio Streck: O mundo é outro e, sem dúvidas, não sairemos iguais desse processo todo em decorrência da pandemia. Da mesma forma, esse tem sido um momento interessante para avaliarmos quais são os serviços e atividades essenciais para, então, avaliarmos as adaptações necessárias à retomada dos trabalhos.
Parece-me, assim, que precisamos utilizar a tecnologia a nosso favor. Em muitos aspectos, ela pode ser prejudicial, por conta da impessoalidade, vulnerabilidade da nossa privacidade – os hackers não nos deixam ignorar esses fatos – e também da segurança das informações. No entanto, ela pode facilitar as comunicações e o acesso a serviços antes dificultados pela distância, por exemplo.
Logo, o que precisamos nos perguntar é quais são os serviços que não podem ser realizados de forma virtual e segura hoje? É preciso realizar uma adaptação das nossas habitualidades para dar espaço àquelas atividades que não podem ser desenvolvidas na modalidade online. De forma conectada pela internet, com a utilização de equipamentos e softwares, é possível realizar consultas médicas, mas é impossível, por exemplo, realizar uma cirurgia.
Os meios eletrônicos são sedutores pela facilidade que oferecem. O que deve ocorrer, contudo, tanto para atividades jurisdicionais, quanto para o exercício da atividade notarial é a utilização das tecnologias para auxiliar na adaptação e conferir mais segurança. E nunca esqueçamos: a tecnologia nos dá apenas informações; estas não são ainda um conhecimento; que, por sua vez, não constitui um saber e, tampouco, sabedoria. Informações todos têm, a um toque no computador. Mas, se informação fosse conhecimento, qualquer advogado seria um expert. Qualquer aluno de Direito seria um gênio. No entanto, cresce dia a dia o número de analfabetos funcionais com formação superior. Por isso não podemos abrir mão da sofisticação teórica.
 
Jornal do Notário: Quando e como iniciou a aproximação com a atividade extrajudicial?
                           
Lenio Streck: O Judiciário, historicamente, tem ficado em dívida para com a sociedade. Para termos uma ideia, antes da Constituição de 1988, praticamente não tínhamos Direito, mas apenas uma Constituição que era um arremedo. O Direito era, digamos, ruim e carente de legitimidade. Por isso, apostávamos na criatividade voluntarista dos juízes, buscando nas brechas da institucionalidade um modo de contornar o autoritarismo legal, visto que esse era o espaço que restava aos juristas no regime de exceção.
Hoje, temos o regramento do Direito mais consolidado. As regras do jogo são previamente estabelecidas e, em razão disso, temos uma também uma série de avanços e conquistas no campo das atividades extrajudiciais.
Enquanto promotor de justiça, trabalhava na fiscalização das atividades notariais, por exemplo. No entanto, a função do notário era muito restrita há trinta anos. Houve uma série de conquistas nas últimas décadas e muitas delas foram confiadas ao notário.
Somente após me aposentar do Ministério Público foi que tive a oportunidade de estreitar meus laços com o notariado, no âmbito da consultoria e da advocacia privada, realizando alguns trabalhos importantes, especialmente no Supremo Tribunal Federal, envolvendo normativas do Conselho Nacional de Justiça. Nisso foi possível perceber a dificuldade com que o judiciário, ele mesmo, tem para lidar com a atividade extrajudicial, por vezes demonstrando profunda dificuldade na compreensão do assunto.
 
Jornal do Notário: Como o senhor enxerga a questão da “burocracia” associada à segurança jurídica no Brasil? Qual a essencialidade da atividade notarial para a sociedade?
 
Lenio Streck: O papel do Estado é equilibrar, conter, interditar; tudo isso na busca pelo tratamento de forma equânime de todo o povo. Esse papel é desenvolvido também pela delegação dessas funções. E aí entra, por exemplo, o papel da atividade notarial.
Em verdade, o Brasil é um país que não soube trabalhar o papel da burocracia e, assim, transformou a sua burocracia em um mal ou em algo que é mal visto.
Por exemplo, numa tradição marcadamente patrimonialista, as pessoas consideram um incômodo observar determinados requisitos mínimos para, por exemplo, fazer um contrato. Criou-se esse imaginário de que toda a burocracia é ruim, até dar ensejo à criação da figura do despachante.
Acontece que são exatamente esses requisitos mínimos que colocam as partes em pé de igualdade para praticarem inúmeros institutos de direito privado – em que o Estado está mais distante, mas não ausente. Não está ausente justamente porque ali está a atividade delegada para o notariado. Alguém tem e deve proporcionar segurança jurídica aos utentes. O rico e o pobre ficam em posições equiparadas quando um negócio foi feito com segurança registral; uma vítima de calúnia fica com maiores possiblidades de processar o agressor se o objeto transmissor da ofensa foi registrada em uma ata notarial.
Todavia, ainda há um equívoco na compreensão da própria burocracia. Porque esse imaginário patrimonialista do brasileiro reside na associação da burocracia a aborrecimento, quando, em verdade, deveríamos estar aliando à segurança. Eu repito: a burocracia é o único modo do Estado prestar seus serviços de forma equânime, fairness, como se diria nos Estados Unidos. A modernidade se firmou em cima da burocracia, burreau-cracia, pela qual passou de ex parte príncipe (relação carismática) para ex parte principio (relação legal-racional). Os cidadãos passam a ter um distanciamento, uma impessoalidade no tratamento das coisas públicas.
A essencialidade da atividade notarial se estabelece à medida em que toda e qualquer relação privada deve partir da premissa de tratamento equânime e com o selo da segurança estatal, porque atividade supervisionada pelo Estado. É papel do notariado fazer prevalecer o direito independente de questões pessoais e de questões econômicas.
 
Jornal do Notário: Recentemente o senhor participou de uma live no Instagram do CNB/SP sobre o tema “Segurança Jurídica, Acesso à Justiça e o Papel do Notariado”. É possível afirmar que os serviços prestados pelo extrajudicial são profiláticos para os negócios jurídicos?
 
Lenio Streck: Sem dúvida. Quando falamos em estado e segurança jurídica, logo nos remete à forma como o Estado administra a sociedade e como pode prestar esses serviços de uma forma ex parte principio. Ao notariado é delegada a prestação de alguns serviços estatais, ainda que de forma privada, cuja legitimidade se estabelece pela seleção por meio de rígidos concursos públicos e pela fiscalização realizada pelo poder público.
A fé pública que possuem os notários carrega uma grande responsabilidade, que é, principalmente, a de conferir segurança e evitar litígios. Bingo! O caráter profilático da atividade extrajudicial está na sua formação, na delegação do serviço público, na utilização de critérios rígidos de seleção dos notários, mas também na aplicação de critérios igualmente rigorosos nos negócios jurídicos.
Ao aderir à boa burocracia e a exigir equanimemente de todos, o notariado cumpre com seus deveres. Trata-se de dever do Estado, pelos seus entes delegados, porque é ele quem detém o poder de conter. É na regulação que está a segurança entre o poder público e o particular.
Vejamos um exemplo: É necessário, para cobrar um devedor, permitir que esse alguém seja negativado por um birô privado de crédito, da noite para dia, sem sequer ser notificado? Não haveria um modo menos invasivo para o direito do cidadão? Se a resposta for sim, a negativação não foi a medida adequada. As atividades notariais são responsáveis, assim, por realizar um sopesamento sobre a possibilidade de um agir menos invasivo aos direitos alheios. Afinal, para que alguém seja protestado, há um aviso prévio comprovado. Na verdade, aqui nessa sanha de cobranças feitas por entidades privadas, o cidadão-devedor fica desprotegido da proteção institucional. Instituição, aqui, é uma palavra fundamental. Na verdade, há uma usurpação de competências. No direito constitucional, visto a partir da hermenêutica e teoria da argumentação, fala-se em fazer sopesamentos entre os diversos bens em jogo. Veja-se: uma medida tomada por uma entidade privada na qual o indivíduo é negativado em três tempos, estaria respondida a primeira pergunta da teoria da argumentação (falo, aqui, na teoria alexiana)? A medida era adequada? E, mais, a segunda pergunta: era uma medida necessária? Não havia um meio menos invasivo? E assim por diante. Se tudo isso for ultrapassado, vai-se para uma terceira etapa, para discutir a proporcionalidade em sentido estrito. Enfim, há muitos modos de discutir essa fenomenologia. O quero dizer é que trato o direito como ciência. Todos os argumentos devem ser sempre demonstrados. É o que aprendi desde 1984, quando cursei a disciplina chamada Epistemologia Jurídica. Significa dizer: sempre temos de demonstrar a demonstração. Na minha teoria da decisão, falo disso na Condição Hermenêutica de Sentido. O argumento jurídico que não passa por esse filtro é antijurídico.
Assim como o processo não é instrumento, as normativas e exigências do notariado não são meros instrumentos que estão à disposição. O serviço notarial tem como razão de ser a garantia da eficácia da lei, a segurança jurídica e a prevenção de litígios. E como já disse, uma coisa está ligada a outra.
 
Jornal do Notário: Como o senhor enxerga o papel do notário na aferição da manifestação de vontade das partes? Qual a sua avaliação sobre a modernização tecnológica dentro dessa esfera?
 
Lenio Streck: A modernização tecnológica, como falamos anteriormente, é uma onda que não temos como conter. Temos, sim, como proporcionar a adaptação necessária para conferir segurança nessas relações. Daí surge a imprescindibilidade de uma rígida regulamentação – que pode ser também chamada de sã-burocracia.
A burocracia da qual falei há pouco, apesar da relação conturbada do brasileiro com esses requisitos, é o que estabelece um patamar de igualdade entre as partes e lhes confere um tratamento equânime. Esse procedimento é aplicado pelo notariado, que imprime que o direito está acima das características pessoais dos envolvidos.
As modalidades de assinaturas eletrônicas, por exemplo, já amplamente difundidas no processo judicial eletrônico, e também no âmbito privado, considerando a obrigatória observância de um mínimo de segurança, devem ser facilitadoras do trabalho. Mormente agora que parece que o mundo está “ficando em casa” e tudo está sendo feito à distância.
 
Jornal do Notário: Para o senhor, qual é o maior desafio para o futuro do notariado?
 
Lenio Streck: Certamente o maior desafio do notariado no futuro próximo é a também o desafio do presente: conferir segurança a relações estabelecidas na contemporaneidade, seja pela insegurança das novas tecnologias – afinal, a tecnologia não pensa, como diria Heidegger – ou pela resposta aos anseios sociais. As recentes exigências relativas ao compliance, nesse sentido, pode ser um bom exemplo.
É preciso sempre relembrar que o direito notarial não é uma ilha separada de todos os demais ramos do direito. E assim como se espera do judiciário, o notário também deve buscar a estabilidade que a coerência e a integridade propiciam.
Me parece desafiador para o notariado, nesse sentido, lidar com a forte tentativa de privatização dos direitos públicos. No mesmo exemplo de possibilidade de negativação do devedor, da noite para o dia, insisto: é intrigante que seja atribuído a um escritório que enriquece com a situação de endividamento, a faculdade de negativar o devedor. É fácil demonstrar o equívoco disso.
Com efeito, essa usurpação das atividades notarias pelos birôs financeiros coloca em xeque a segurança, especialmente do devedor. Em vez do Estado tratar do assunto por meio de seus serviços delegados, ele entrega essa atividade à iniciativa privada. Esse, sem dúvida, será um imbróglio a ser dirimido.