Não é novidade que a ascensão informacional já é capaz de propiciar mecanismos para a operacionalização de manifestações de vontade pela Internet. Em 2019, analisamos tal possibilidade ao sugerir a viabilidade do “testamento vital eletrônico”[1] por meio de chaves de criptografia assimétrica[2] ou mesmo – e de forma inovadora – pela rede blockchain[3].
 
Em um momento delicado como o da atual pandemia desencadeada pela Sars-Cov-2 (ou Covid-19), a facilitação de acesso aos documentos de manifestação de vontade, notadamente quanto aos cuidados de saúde e a oferta de meios eletrônicos para o seu implemento adquire contornos ainda mais claros e propicia importantes reflexões sobre a morte e sobre a necessidade humana de expressar “desejos acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos aos quais [cada pessoa] deseja ou não se submeter caso esteja com uma doença ameaçadora da vida”[4].
 
Eis que, após mais de dois meses de quarentenas e lockdowns no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça, por sua Corregedoria, publicou o Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020, que “dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dá outras providências”. Sem dúvidas, é o momento ideal para revisitar a temática do “testamento vital eletrônico”, agora tecnicamente enquadrável na dinâmica notarial brasileira.
 
Mas, antes de explicitar alguns aspectos fundamentais do mencionado Provimento, é importante revisitar alguns conceitos…
 
As Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) são documentos de manifestação de vontade sobre cuidados de saúde. Sua normatização se deu, primeiramente, nos Estados Unidos da América, em 1990, a partir de previsão expressa do Patient Self Determination Act, que descreveu duas espécies: o living will, traduzido para o português como testamento vital e o durable power of attorney, traduzido como procuração para cuidados de saúde. Hodiernamente, os Estados Unidos já reconhecem e utilizam outras espécies de DAV, como as diretivas antecipadas psiquiátricas[5], ordens de não reanimação[6], o plano de parto[7] e as diretivas antecipadas para demência[8].
 
O testamento vital, analisado neste brevíssimo ensaio, deve ser entendido como um negócio jurídico existencial pelo qual uma pessoa juridicamente capaz manifesta sua vontade sobre quais tratamentos, procedimentos e cuidados médicos deseja ou não se submeter caso seja diagnosticado com uma doença incurável e terminal, e, uma vez que inexiste legislação específica sobre o tema no Brasil, deve-se entender que sua forma é livre. Como tal, parece adequado o seu enquadramento como negócio jurídico unilateral sob condição suspensiva, que tem suas raízes axiológicas na Constituição da República e na proteção à dignidade humana:
 
Ante o valor da pessoa concreta em detrimento do sujeito de direitos abstrato, verificou-se que a tutela patrimonial era insuficiente para efetivar a proteção integral do ser humano, razão pela qual as situações existenciais também passaram a ser considerados fatos jurídicos, sendo elas aquelas que realizam de forma direta a dignidade humana[9].
 
A diferenciação entre as situações jurídicas patrimoniais e as existenciais é, portanto, um dos elementos fundamentais para a compreensão de qualquer escopo tecnológico que se pretenda explorar para a operacionalização dos testamentos, pois “requer estruturas complexas de confiança e segurança, no centro das quais está a questão de compartilhar ou não o acesso aos dados com terceiros (inclusive herdeiros) para a preservação de situações jurídicas existenciais”[10]. Noutros dizeres, trabalhar com a ideia de facilitação de meios para o exercício da autonomia existencial, como se faz com a difusão do testamento vital, significa atribuir importante realce às potencialidades da adoção de instrumentos adequadamente previstos pelo ordenamento para a tutela de novos interesses e direitos[11].
 
Na Itália, o chamado Codice Privacy (Decreto Legislativo nº 196/2003) – importante marco legislativo para a tutela dos dados na Internet – recebeu importante atualização pelo decreto legislativo 101, de 10 agosto de 2018, que entrou em vigor em 19 de setembro de 2018, contendo dispositivos muito alinhados aos do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) europeu. O art. 2-terdecies do regulamento italiano tratou, com certo pioneirismo, do “diritto all'eredità del dato”, base essencial para a discussão da sucessão de bens digitais de natureza patrimonial[12], mas, com curiosa aplicação às situações existenciais, contemplou também os 'motivos familiares dignos de proteção'[13].
 
No Brasil, com a publicação do mencionado Provimento nº 100, essa mesma discussão passa a permear o contexto da emanação de atos de vontade por meio eletrônico, com a garantia de fé pública que as autoridades notariais possuem, em observância aos regulamentos expedidos pelo Poder Judiciário por força do disposto nos arts. 37 e 38 da lei 8.935, de 18 de novembro de 1994.
 
Recorrendo ao art. 2º-A, §8º, da lei 12.682/2012, que cuida do arquivamento de documentos, em meio eletrônico, sob a chancela de segurança dos certificados digitais baseados na infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil)[14], e invocando a Orientação nº 9, de 13 de março de 2020, da Corregedoria Nacional de Justiça, que dispõe sobre a necessidade de observância às medidas temporárias de prevenção ao contágio pela Covid-19, o Provimento descreve que: “Art. 4º. Para a lavratura do ato notarial eletrônico, o notário utilizará a plataforma e-Notariado, através do link www.e-notariado.org.br, com a realização da videoconferência notarial para captação da vontade das partes e coleta das assinaturas digitais”.
 
Ainda sobre esse aspecto, o art. 9º, §§3º a 5º, traz as seguintes previsões:
 
Art. 9º. O acesso ao e-Notariado será feito com assinatura digital, por certificado digital notarizado, nos termos da MP n. 2.200-2/2001 ou, quando possível, por biometria.
 
(…)
 
§ 3º Para a assinatura de atos notariais eletrônicos é imprescindível a realização de videoconferência notarial para captação do consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico, a concordância com o ato notarial, a utilização da assinatura digital e a assinatura do Tabelião de Notas com o uso de certificado digital, segundo a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP.
 
§4º O notário fornecerá, gratuitamente, aos clientes do serviço notarial certificado digital notarizado, para uso exclusivo e por tempo determinado, na plataforma e-Notariado e demais plataformas autorizadas pelo Colégio Notarial Brasil-CF.
 
§5º Os notários poderão operar na Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP Brasil ou utilizar e oferecer outros meios de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, sob sua fé pública, desde que operados e regulados pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal.
 
Com o claro intuito de prevenir fraudes, exigiu-se o contato por videoconferência entre o notário e as partes – reflexo claro da inviabilidade de se exigir que todo cidadão brasileiro possua certificado digital (o popular 'token') para promover, com assinatura digital criptografada, manifestação de vontade fidedigna.
 
Outra evidência disso aparece no art. 9º, §1º, do Provimento, que garante o acesso dos usuários externos ao sistema e-Notariado “mediante cadastro prévio, sem assinatura eletrônica, para conferir a autenticidade de ato em que tenham interesse”, o que indica o papel proeminente do notário na aferição da veracidade das informações que serão levadas a efeito para a lavratura do ato notarial eletrônico e, especialmente, para que possa atestar o teor da vontade manifestada durante o contato por 'videoconferência notarial' (que ficará arquivada, segundo consta do art. 23, §2º), além das assinaturas notariais e, se aplicável, até mesmo da biometria (art. 17, parágrafo único).
 
No que interessa aos testamentos vitais, alguns rigores são necessários (como a não admissão de forma oral[15]), o art. 17, caput, prevê que “os atos notariais celebrados por meio eletrônico produzirão os efeitos previstos no ordenamento jurídico quando observarem os requisitos necessários para a sua validade, estabelecidos em lei e neste provimento”. E, exatamente pelo que se explicou nos parágrafos anteriores, quando se buscou um breve conceito para o testamento vital, deve-se ter em mente que é necessário que ele preencha os pressupostos de validade dos negócios jurídicos, quais sejam, a capacidade do agente, o objeto lícito, possível, determinado ou determinável e a forma prescrita ou não defesa em lei[16].
 
Sendo o caso, não se nota óbice à sua operacionalização, inclusive com a garantia de sigilo sobre seu conteúdo – ao menos enquanto o testador tiver discernimento decisório  -, tendo em vista que o Provimento especifica que o acesso deverá ser assegurado “por meio de conexão segura HTTPS, e os servidores de rede deverão possuir certificados digitais adequados para essa finalidade” (art. 14, §3º), e também por definir que “os dados das partes poderão ser compartilhados somente entre notários e, exclusivamente, para a prática de atos notariais, em estrito cumprimento à lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais)” (art. 33).
 
O art. 13 prevê que o sistema deverá estar “disponível 24 (vinte e quatro) horas por dia, ininterruptamente” e o art. 36 veda a adoção de outras plataformas, o que, nesta leitura perfunctória, afasta a possibilidade de utilização da rede blockchain para a garantia da higidez de eventuais assinaturas e seu consequente implemento[17].
 
Em conclusão, afirma-se, com festejo, que a adoção do sistema e-Notariado é um passo no caminho certo quanto à facilitação dos meios de acesso à emanação da vontade do paciente por mecanismos que, embora sejam tecnicamente complexos, podem ser facilmente difundidos a ponto de viabilizarem uma transmissão de vídeo, pela Internet, que encurta distâncias e permite, com segurança, a concretização de desideratos seus que, noutros tempos, seriam bem mais dificultosos.
 
Não obstante, ressalta-se que ainda há espaço para aprimoramentos e que a ampla testagem será fundamental para garantir a higidez de um sistema dessa estirpe, a se recrudescer, ainda, com a esperada vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, base fundamental para a exigência do implemento das técnicas de segurança de dados pelas autoridades notariais que utilizarão mais diretamente o novíssimo sistema.
 
Todavia, essas medidas não resolvem o principal problema de efetividade do testamento vital: o acesso do profissional de saúde à manifestação prévia do paciente. Assim, ainda que o sistema e-Notariado seja um avanço para a feitura do testamento vital em Tabelionatos de Notas, continua sendo necessário que o Poder Público implemente, nos moldes portugueses, um Registro Nacional de Testamento Vital, ou seja, um banco de dados que contenha todos os documentos feitos no país, com uma chave de acesso exclusiva para os profissionais de saúde que estiverem cuidado do paciente em fim de vida.
 
*Luciana Dadalto é doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Direito pela PUC-Minas. Mediadora judicial e extrajudicial cadastrada no CNJ. Pesquisadora de temas relacionados a Direito Médico e Bioética, especialmente Testamento Vital. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Bioética (GEPBio) da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, administradora do portal www.testamentovital.com.br. Advogada com atuação exclusiva em saúde.
 
*José Luiz de Moura Faleiros Júnior é mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFU. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance. Advogado.
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1 DADALTO, Luciana; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. “Testamento vital eletrônico”: considerações quanto ao uso da tecnologia para o implemento desta espécie de Diretivas Antecipadas de Vontade na sociedade da informação. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 8, n. 3, p. 1-20, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020.
 
2 MENKE, Fabiano. A alocação dos riscos na utilização da assinatura digital. Migalhas de Responsabilidade Civil, 02 jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2020. Comenta: “Quanto ao segundo aspecto, a criptografia assimétrica agrega algo que implica em verdadeira guinada no que diz respeito à lógica das ferramentas de identificação, uma vez que segrega, o que poderia ser chamado de senha, em chave pública e chave privada. A chave pública, como a denominação indica, é de conhecimento e acesso geral. Mas a chave privada é armazenada em dispositivos seguros como tokens e cartões inteligentes, de onde não é exportada. Novamente, calha a comparação com login e senha, porquanto estes, além de serem conhecidos do titular que os criou, ficam armazenados nos bancos de dados dos fornecedores, de modo que, para efeitos de imputação jurídica ambos podem ser considerados, tanto titular quanto fornecedor. O compartilhamento da senha que existe no mecanismo de login e senha não se faz presente no emprego do certificado digital com criptografia assimétrica e chave privada”.
 
3 DADALTO, Luciana; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. “Testamento vital eletrônico”, cit., p. 16. Com efeito: “Isso pode dizer respeito a certidões de nascimento e de óbito, certidões de casamento, ações e títulos de propriedade, diplomas de ensino, contas bancárias, procedimentos médicos, créditos de seguros, votos, proveniência de alimentos e tudo o mais que possa ser expresso em código. E, repita-se: como o sistema é ciclicamente auto-auditado, a falibilidade é virtualmente inexistente”.
 
4 DADALTO, Luciana. Responsabilidade civil pelo descumprimento do testamento vital no contexto da Covid-19. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson; DENSA, Roberta. Coronavírus e responsabilidade civil: impactos contratuais e extracontratuais. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 347.
 
5 ZELLE, Heather; KEMP, Kathleen; BONNIE, Richard J. Advance directives in mental health care: evidence, challenges and promise. World Psychiatry, v. 14, n. 3, p. 278-280, out. 2015.
 
6 MORRELL, E. D.; BROWN, B. P.; QI, R.; DRABIAK, K.; HELFT, P. R. The do-not-resuscitate order: associations with advance directives, physician specialty and documentation of discussion 15 years after the Patient Self-Determination Act. Journal of Medical Ethics, v. 34, n. 9, p. 642-7, set. 2008.
 
7 PHILIPSEN, Nayna C.; HAYNES, Dorothy, R. The similarities between birth plans and living wills. Journal of Perinatal Education, v. 14, n. 4, p. 46-48, set./dez. 2005.
 
8 GASTER, B.; LARSON, E. B.; CURTIS, J. R. Advance Directives for dementia: meeting a unique challenge. Journal of the American Medical Association, v. 318, n. 22, p. 2175-2176, dez. 2017.
 
9 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia existencial. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 16, p. 75-104, abr./jun. 2018, p. 104.
 
10 MARTINS, Guilherme Magalhães; FALEIROS JÚNIOR. O planejamento sucessório da herança digital. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord.) Arquitetura do planejamento sucessório. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 470.
 
11 RAAD, Daniela Russowsky. O exercício da autonomia privada no direito sucessório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 21. A autora comenta: “Fica evidenciado o caráter duplo do princípio da dignidade da pessoa humana, no qual o Estado recebe como tarefas o respeito e a proteção do princípio, constituindo o encargo de promover condições para que todas as pessoas vivam com dignidade. Assim, justifica-se a vinculação das relações privadas aos princípios fundamentais: cabe ao ente garantir um espaço reservado de interferência aos particulares e, concomitantemente, assegurar condições de dignidade a todos os indivíduos dentro destas relações”.
 
12 AUSTERBERRY, David. Digital asset management. Oxford: Focal Press, 2012, p. 5. Diz o autor: “What gives an asset value? If it can be resold, then the value is obvious. However, it can also represent a monetary asset, if it can be cost-effectively repurposed and then incorporated into new material”.
 
13 “Art. 2-terdecies (Diritti riguardanti le persone decedute). – 1. I diritti di cui agli articoli da 15 a 22 del Regolamento riferiti ai dati personali concernenti persone decedute possono essere esercitati da chi ha un interesse proprio, o agisce a tutela dell'interessato, in qualità di suo mandatario, o per ragioni familiari meritevoli di protezione”.
 
14  Para maiores detalhes, confira-se: MENKE, Fabiano. A criptografia e a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil). In: DONEDA, Danilo; MACHADO, Diego (Coords.). A criptografia no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 123 et seq.
 
15  DADALTO, Luciana. Testamento vital. 5. ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 55-62.
 
16  AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, passim.
 
17  Sobre as vantagens e potencialidades da rede blockchain para o processamento e armazenamento desses documentos, confira-se: DADALTO, Luciana; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. “Testamento vital eletrônico”, cit., p. 16-18.