Trata-se de um novo paradigma de representação jurídica e econômica, cujos efeitos irradiam sobre o Direito Societário, Tributário, Contratual, Contábil e Regulatório
A tokenização de participações societárias irrompe no cenário jurídico contemporâneo como uma das manifestações mais revolucionárias da simbiose entre a tecnologia blockchain e o direito societário. Trata-se da transmutação de quotas ou ações detidas em sociedades empresárias em tokens digitais, os quais, assentados em redes de registros distribuídos (DLT – Distributed Ledger Technology), passam a encarnar, com fidelidade representativa, os direitos patrimoniais e políticos correspondentes. Tal inovação não apenas redefine paradigmas de registro e negociação societária, como também inaugura uma nova ordem de possibilidades negociais, marcada pela fluidez, desintermediação e rastreabilidade, sem ignorar os inusitados desafios de natureza jurídica, regulatória e tributária que emergem em sua esteira.
1. Fundamentos tecnológicos e conceituais da tokenização societária
Sob o prisma técnico-operacional, tokenizar uma participação societária é construir uma representação digital e criptograficamente segura de um Direito Societário – seja este consubstanciado em uma ação ou em uma quota – por meio de plataforma baseada em blockchain. A IOSCO – Organização Internacional das Comissões de Valores delimita tokenização como “o processo de representar digitalmente um ativo ou a propriedade de um ativo”, encapsulando, em uma única estrutura algorítmica, o valor jurídico e econômico do bem subjacente.
Neste sentido, o token – compreendido como ativo digital singular – torna-se espelho da participação societária que lhe serve de lastro, sem, contudo, desnaturá-la. A substância jurídica do direito permanece incólume; o que se inova é a forma de sua representação e circulação. Como bem pontuou Daniel Maeda, gerente da CVM – Comissão de Valores Mobiliários, “a tokenização é uma representação, e o token deve ser tratado juridicamente como o ativo que representa”. Dito de outro modo, se o token representa uma ação ou quota, deve, por simetria jurídica, ser investido do mesmo regime normativo da ação ou quota representada – o que demanda acurado mapeamento normativo para evitar disfunções entre a forma e o conteúdo.
A tecnologia blockchain constitui o alicerce tecnológico sobre o qual essa nova arquitetura de direitos se edifica. Amparado por mecanismos de criptografia assimétrica e consenso distribuído, o blockchain funciona como um grande livro-razão público, imutável e auditável, no qual cada transação é registrada com máxima integridade e confiabilidade. A natureza descentralizada da rede elimina a dependência de intermediários tradicionais, mitigando riscos de fraudes, falhas operacionais e manipulações, ao mesmo tempo em que promove uma inédita segurança jurídica nas transações com participações societárias tokenizadas.
Sob o prisma econômico-financeiro, a tokenização de ativos societários se apresenta como vetor de aprimoramento da eficiência mercadológica, especialmente ao reduzir os custos operacionais relacionados à emissão, negociação e conformidade regulatória. A fragmentação de ativos – característica distintiva desse modelo – permite que um Direito Societário, antes indivisível ou acessível apenas a grandes investidores, seja fracionado em múltiplos tokens de valor reduzido, viabilizando sua aquisição por um público mais amplo. Esse movimento democratizador tem o condão de impulsionar o acesso de pequenos investidores ao capital de sociedades privadas, fomentando novas estratégias de captação de recursos e reconfigurando o ecossistema de investimentos no Brasil.
A principal inovação, portanto, não reside apenas na virtualização do título societário, mas na introdução de mecanismos dinâmicos de liquidez e acesso, capazes de transpor as barreiras estruturais do regime societário clássico. A possibilidade de transferências instantâneas, auditáveis e dotadas de validade técnica e operacional reconfigura os contornos da circulação de capital societário, promovendo uma verdadeira disrupção nos instrumentos tradicionais de titularidade e governança empresarial.
Entretanto, essa inovação, por mais promissora que seja, não se mostra isenta de percalços jurídicos. O ordenamento jurídico brasileiro, estruturado sobre registros centralizados e formalidades rígidas, não foi originalmente concebido para recepcionar mecanismos descentralizados de registro de titularidade. A tensão entre a rigidez da legislação societária vigente e a flexibilidade da tokenização exige interpretação jurídica sistemática e, em muitos casos, uma reengenharia normativa que permita a harmonização entre o arcabouço legal e as soluções tecnológicas emergentes.
É precisamente nesse ponto que se impõe a análise acurada da compatibilidade da tokenização com os regimes jurídicos aplicáveis às Ltda. – sociedades limitadas e às S.A. – sociedades por ações. A depender do tipo societário, as formalidades legais para a validade da transmissão de participações e os meios de registro e controle da titularidade podem se mostrar incompatíveis – ou, ao menos, resistentes – à adoção da tokenização como mecanismo válido de representação e negociação de quotas ou ações.
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Fonte: Migalhas
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