Suscitar alienação parental como argumento de defesa nas ações de responsabilização por abandono afetivo é mitificar dois institutos jurídicos de proteção aos filhos, o que passaremos a demonstrar
Primeiramente, é necessário que seja aclarado o que, pela lei, é considerado ato de alienação parental.
Dispõe o art. 2º da lei 12.318/10: Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Quando o texto normativo utiliza a expressão para que, indica que necessariamente a prática de alienação parental é um ato doloso. O sujeito ativo tem que ter por objetivo interferir na vontade da criança, de forma direta (promovida), ou sub-reptícia (induzida), para causar prejuízo ao vínculo afetivo da criança com o outro genitor, ou parentes deste.
Na sequência a lei elenca de forma exemplificativa alguns atos considerados alienadores, sem prejuízo de outros que sejam identificados em perícia psicológica.
Observe-se que a legislação brasileira focou a problemática no comportamento dos pais ou cuidadores, se afastando de qualquer consideração acerca de uma suposta patologia familiar envolvendo a saúde psicológica da criança, de onde se depreende que a tese desenvolvida por Richard Gardner, da “síndrome da alienação parental”, não encontrou guarida no nosso ordenamento, logo, não faz sentido sustentar a inconstitucionalidade da lei argumentando a não comprovação científica de uma tese que a norma não contempla.
Pois bem.
Centrado no comportamento dos pais ao fim da conjugalidade, Douglas Darnall, doutor e mestre em Psicologia, Perito Forense e autor de inúmeros livros e artigos científicos na área, classificou o agente alienador em três categorias: alienador ingênuo, ativo e obsessivo1.
O alienador ingênuo (naïve alienador) incide nos atos de alienação parental de forma passiva. Não interfere diretamente no vínculo de afeto com o outro genitor, ao contrário, reconhece os benefícios da dupla referência, mas ocasionalmente faz ou diz algo que pode induzir a alienação, por questões emocionais naturais de qualquer pessoa que suporta algum tipo de sofrimento emocional. Dessa forma, ocasionalmente, todos os pais acabam sendo alienadores ingênuos. Exemplo, quando a criança pede algo ao pai/mãe, no que este responde para pedir ao seu outro pai/mãe, “porque ele tem mais dinheiro” (sic).
Nesses casos, a tarefa do judiciário é alertar o alienador ingênuo dos prejuízos que esse tipo de atitude pode causar no desenvolvimento psicológico dos filhos. A partir da noção do que constitui o ato de alienação parental, a persistir na sua conduta, esse alienador passa a agir dolosamente, podendo passar para a escala seguinte, qual seja, a do alienador ativo.
O alienador ativo dirige sua conduta com o objetivo de provocar a alienação. Tem consciência do fenômeno, mas age em momento de raiva. Usa de críticas ao outro par parental sem avaliar o dano. A impulsividade é a característica do seu comportamento, já que pode sentir-se mal depois que retorna a calma. Na verdade, esses pais têm boas intenções e desejam o convívio saudável do filho com o outro genitor, mas falham no controle da própria frustração ou mágoa. A postura entre difamar e tentar reparar o dano na sequência é a marca registrada do alienador ativo, que está sinceramente preocupado com a adaptação dos filhos à separação. Na prática, conseguem cumprir as ordens judiciais, na maioria das vezes, mas podem ser rígidos e pouco cooperativos com o outro genitor.
Já o alienador obsessivo não tem qualquer pudor em esconder ou camuflar sua intenção de destruir os laços de afeto do filho com o outro genitor. É inescrupuloso, inventa situações, distorce contextos, e não mede esforços em usar afeto do filho como objeto de vingança. Nas palavras do próprio (DARNALL, 1999): têm uma causa fervorosa para destruir o genitor alvo e qualquer vestígio de relacionamento que os filhos tenham com ele. Raramente o alienador obcecado tem autocontrole ou discernimento suficientes para reconhecer como seu comportamento está prejudicando os filhos. Na verdade, ele se sente justificado: sua cruzada é proteger a criança da maldade do tribunal e do genitor alvo2(tradução).
Identificado quais são os três tipos de alienadores, resta compreender o que vem a ser abandono afetivo, já que o objeto desta análise é a interligação dos fenômenos da alienação parental e do abandono afetivo, quando surgem no mesmo processo, ou seja, quando a alienação parental é utilizada como tese defensiva para justificar o abandono afetivo.
Abandono afetivo, para o universo jurídico, não é a “falta de afeto”, como muito se propaga equivocadamente. Não cabe ao judiciário interferir na natureza humana ao ponto de desenvolver ou qualificar sentimentos mútuos de carinho e afeição entre pais e filhos. No entanto, cumpre ao Estado fiscalizar e punir a violação ao dever de cuidado3 que é imposto aos pais em relação aos seus filhos. Trata-se de dever legal, imposto pela Constituição Federal e legislação ordinária (arts. 227 e 229 da CRFB/88, e arts. 3º e 4º do ECA).
Em suma, os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos. Ou, pela letra do Estatuto da Criança e do Adolescente, tem o dever de sustentar, guardar e educar.
A ação judicial pelo abandono afetivo, portanto, tem caráter pedagógico-punitivo, e não necessariamente compensatório, porque não há valores que compensem o abandono afetivo de um filho. Busca-se a conscientização do cumprimento de um dever legal, tal como é o dever de prestar assistência material, por exemplo, bem como a punição pelo seu descumprimento.
Estabelecidas as balizas da conceituação dos dois institutos, qual é então a interligação da alienação parental com o abandono afetivo?
A alienação parental vem sendo utilizada como argumento de defesa do genitor(a) para eximir-se da responsabilidade pelo abandono afetivo, culpabilizando assim o genitor(a) guardião pelo seu afastamento da vida dos filhos.
No entanto, se bem delinearmos a alienação parental e o abandono afetivo, é possível aferir que muito excepcionalmente seria possível, na prática, reconhecer que o abandono afetivo decorre da alienação parental. E coloco a questão como “muito excepcionalmente” apenas porque no direito nada é impossível.
Veja, no nosso ordenamento jurídico a alienação parental é uma forma de abuso moral (art. 3º da lei 12.318/2010) e violência psicológica (art. 4º, inciso II, alínea “b” da lei 13.431/17). Pergunto: onde este genitor(a) estava, que nada fez enquanto o filho era vítima de abuso moral e violência psicológica pelo guardião? Por qual razão não exerceu seu dever de cuidado? Por qual razão não protegeu o filho desse tipo de abuso
Em regra, nas ações de abandono afetivo os réus não têm nenhum histórico do ajuizamento pretérito de uma ação de guarda, do incidente de alienação parental, sequer da demanda judicial visando regulamentar a convivência com o filho. Aliás, alguns ainda têm histórico de ajuizamento da negatória de paternidade.
Alegar alienação parental como defesa pelo abandono afetivo, sem comprovar que empreendeu todos os esforços ao seu alcance para inibir o abuso que foi praticado contra o próprio filho, é admitir a violação ao dever de cuidado. A omissão do genitor(a) de socorrer o filho vítima de violência psicológica, praticada por quem quer que seja, é infração aos deveres parentais.
A bem da verdade, o genitor(a) que não cuida, não procura, não se mostra interessado ou minimamente empenhado na rotina do filho, se “auto aliena”, utilizando o termo de forma atécnica para bem ilustrar a problemática. Fato é que, se após anos de ausência resolve finalmente exercer sua paternidade/maternidade não sendo correspondido pelo filho, não há que se falar em alienação. A recusa do filho em inaugurar tardiamente essa convivência é legítima, pois, como sujeito de direitos, tinha a expectativa de ser cuidado e receber afeto parental, e a sua frustração por não ter sido entregue o que lhe era de direito gera rejeição.
Com relação à rejeição legítima, vulgarmente denominada auto alienação parental, o genitor(a) contínuo não tem muita ingerência. Não está na sua esfera de disponibilidade a conduta omissa do outro par parental. Nesse ponto, os pais precisam aprender a se responsabilizar pelas suas próprias ações, e que o filho não é mero objeto que estará disponível para atender as demandas do pai ou da mãe quando lhes for conveniente.
Em suma, alegar alienação parental como tese de defesa em abandono afetivo é desvirtuar os dois institutos, contribuindo para propagação de tantas informações distorcidas que permeiam o movimento de revogação da lei 12.318/10. O texto legal não pode ser culpabilizado pela interpretação deturpada que operadores mal informados (ou intencionados) fazem dela. O problema em assumir a lógica adversarial nas ações familiaristas está intimamente relacionado a falta de juridicidade e cientificidade dos fenômenos que permeiam essa matéria.
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1 Ver por todos: LEITE, Eduardo de Oliveira. Alienação Parental. Do mito à realidade. Revista dos Tribunais. 2015. São Paulo. P. 210.
2 DARNALL, Douglas. Parental Alienation: not in the best interest of the children. North Dakota Law Review, Volume 75, 1999, p 323-364.
3 Recurso Especial 1.159.242 – SP (2009/0193701-9). Relatora Ministra Nancy Andrighi. 24/04/12.
Fonte: Migalhas
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