Herdeiros podem ficar sem acesso a ativos se o titular não disponibilizar senhas e códigos necessários para tanto
 
É consenso que a tecnologia digital está completamente integrada à vida das pessoas, seja do ponto de vista pessoal, seja do ponto de vista profissional/educacional. A pandemia da Covid-19 apenas contribuiu para acelerar esta nova realidade, sem a qual, para muitos, não seria viável trabalhar, estudar nem se conectar com amigos e familiares.
 
Em razão desse crescente avanço tecnológico visto nos últimos anos, as contas, materiais e conteúdos mantidos em âmbito virtual (também chamados, em conjunto, de “bens digitais”), passaram a compor o patrimônio do indivíduo, sendo constituída, portanto, para fins sucessórios, a chamada “herança digital”.
 
Alguns desses bens digitais podem possuir significativo valor econômico, como contas em bancos virtuais, investimentos em moedas digitais, milhas aéreas, pontos em programas de fidelidade, acervo de livros, fotos de autoria do próprio titular, perfis em redes sociais. É oportuno mencionar que, atualmente, o Instagram constitui uma vitrine fundamental para empresários que, por meio do chamado marketing digital, procuram desenvolver um novo negócio a partir desta plataforma, assim como para outros que buscam divulgar negócios já existentes no mundo físico.
 
Por outro lado, também há aqueles bens digitais que possuem valor sentimental e pessoal, como fotos, mensagens de e-mail e whatsapp, recados inbox nas mídias sociais, dentre outros conteúdos.
 
Ocorre que, independentemente da natureza dos bens digitais, todos, senão a grande maioria, são protegidos por senhas ou por outros mecanismos de segurança, que impossibilitam o acesso por membros da família, na hipótese de falecimento do seu titular.
 
Em vista disso, a grande dúvida com relação ao acervo digital acumulado ao longo dos anos é a forma de sua sucessão. Não restam dúvidas de que, com relação aos bens digitais que possuem valor econômico (por exemplo, as criptomoedas), cabe sucessão e, portanto, devem ser passíveis de partilha entre os herdeiros. Contudo, como será abordado a seguir, ainda que determinados bens digitais possam ser objeto de sucessão, os herdeiros não terão acesso à conta se o titular não disponibilizar as senhas e códigos necessários para tanto.
 
Com relação aos bens digitais de valor sentimental, caso o falecido não tenha registrado a sua vontade, em vida, a destinação ficará sob responsabilidade da empresa que detém tais dados pessoais. Algumas plataformas, no entanto, permitem que o usuário determine a destinação de sua conta, quando vier a falecer. O Facebook, por exemplo, permite ao usuário escolher duas opções por meio do aplicativo “If I die” (se eu morrer, em tradução livre): optar por manter a conta ativa ou excluí-la permanentemente do Facebook.
 
A primeira opção transforma o perfil da pessoa falecida em um memorial, desde que um ente próximo envie uma solicitação ao Facebook para esta finalidade. As contas transformadas em memorial são um local em que amigos e familiares podem se reunir para compartilhar lembranças após o falecimento de uma pessoa, além de manter intacto o conteúdo já compartilhado pelo falecido. Além disso, é permitido ao usuário da conta indicar um “contato herdeiro”, que cuidará do perfil após este ter sido transformado em memorial. O herdeiro indicado, no entanto, terá funções limitadas e não poderá acessar as mensagens inbox, por exemplo.
 
A segunda opção permite, por sua vez, a exclusão da conta por um representante que comprove a morte do usuário. Assim, todas as mensagens, fotos, publicações, comentários, reações e informações serão permanentemente removidos do Facebook.
 
No entanto, caso o usuário deixe de optar por quaisquer das opções acima, as providências relacionadas à sua conta e aos dados do perfil ficarão sob responsabilidade do Facebook. Esta condição também se aplica aos demais aplicativos/redes sociais, que, muitas vezes, não fornecem alternativas ao usuário para o caso de seu falecimento.
 
Em razão da ausência de uma lei, no Brasil, que regulamente as regras de sucessão destes bens digitais, as demandas que envolvem a discussão dessa matéria vêm sendo direcionadas ao Poder Judiciário. Muito embora não seja um tema pacífico, nota-se que muitos tribunais têm negado acesso aos bens digitais de valor sentimental, em virtude de seu caráter personalíssimo e no intuito de proteger o direito à privacidade e à vida íntima do falecido.
 
De todo modo, entendemos que cada caso deveria ser analisado de acordo com suas especificidades, levando em consideração a real necessidade dos herdeiros ao acesso a determinada informação específica que seja, sobretudo, de cunho patrimonial.
 
Assim, para evitar transtornos futuros, e até que seja aprovada uma lei que enderece a sucessão dos bens digitais, é altamente recomendável a elaboração de testamento elencando a existência dos bens acumulados em vida também no âmbito virtual e, se o caso, manifestando a vontade com relação à sua destinação e acesso a seus herdeiros.
 
Desta forma, seria dispensável a intervenção do Poder Judiciário para decidir sobre o tema e, como resultado, seria garantida a vontade do testador e respeitado seu direito à privacidade e intimidade.
 
A recomendação acima também se aplica para os casos de transmissão de bens digitais de valor econômico, cujo acesso também é dificultado, em virtude da necessidade de senhas e códigos específicos, como é o caso das moedas digitais. Se o falecido não deixar registrado, em vida, algum mecanismo que informe aos herdeiros sobre sua chave privada, eles não terão acesso às moedas digitais nem sequer saberão a quantidade que possuía. Seria impossibilitada, assim, a partilha desses bens entre os herdeiros, exceto se o seu titular registrar, via testamento, as informações necessárias acerca da existência das moedas digitais, bem como as suas respectivas chaves de acesso.
 
É evidente que as novas tecnologias, incrementadas pelas redes sociais e interações digitais, trouxeram grandes repercussões e desafios para o Direito, exigindo que o planejamento sucessório e patrimonial abranja não apenas os bens tradicionais, mas também aqueles digitais, independentemente de sua natureza (econômica ou sentimental), vez que se trata, nos tempos atuais, de uma parcela importante do patrimônio de um indivíduo.