A lei 12.424, de 16 de junho de 2011, incluiu no sistema a usucapião especial urbana individual por abandono do lar, também conhecida como usucapião familiar. Conforme o art. 1.240-A do Código Civil, “aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. Em complemento, o seu § 1º estabelece que “o direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez”.
Como se pode perceber, o instituto traz algumas semelhanças em relação à usucapião constitucional ou especial urbana individual que já estava prevista no sistema, que pode ser denominada como regular, prevista no art. 1.240 do Código Civil e no art. 183 da Constituição Federal. De início, cito a dimensão de 250 m², que é exatamente a mesma, procurando o legislador manter a uniformidade legislativa. Isso, apesar de que em alguns locais a área pode ser tida como excessiva, conduzindo a usucapião de imóveis de valores milionários. Ademais, o novo instituto somente pode ser reconhecido uma vez, desde que o possuidor não tenha um outro imóvel urbano ou rural.
A principal novidade da norma transcrita foi a redução do prazo para exíguos dois anos, o que faz com que a nova categoria seja aquela com o menor prazo previsto entre todas as modalidades de usucapião, inclusive em relação aos bens móveis – hipótese em que o prazo menor era de três anos (art. 1.260 do CC). A tendência contemporânea é justamente a de redução dos prazos legais, eis que a realidade possibilita a tomada de decisões com maior rapidez.
O abandono do lar é tido como fator determinante para a incidência da norma, somado ao estabelecimento da moradia com posse direta. O comando pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive homoafetivos, diante do amplo reconhecimento jurídico da união e do casamento homoafetivo. Fica claro que o instituto tem incidência restrita entre os componentes da entidade familiar, sendo esse o seu âmbito de aplicação. Nesse sentido, enunciado doutrinário aprovado na V Jornada de Direito Civil, com a seguinte redação: “a modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas” (Enunciado n. 500).
Como outra questão prática de relevo, em havendo disputa, judicial ou extrajudicial, relativa ao imóvel, não ficará caracterizada a posse ad usucapionem, não sendo o caso de subsunção do preceito. Eventualmente, o cônjuge ou companheiro que abandonou o lar pode notificar o ex-consorte, para demonstrar o impasse relativo ao bem, afastando o cômputo do prazo, especialmente pelas ausências da posse pacífica e do animus domini. Trazendo essa ideia, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: “Acolhimento do pedido de reconhecimento de domínio pela usucapião que se mostra inviável. Instituto da usucapião familiar/conjugal, previsto no artigo 1.240-A que pressupõe que o imóvel que se pretende usucapir seja, por força do regime de bens, do casal, em comunhão, decorrente do regime de bens do casamento ou da união estável, ou em condomínio. Imóvel que, no caso em tela, pertence unicamente ao primeiro réu, o qual o recebeu em doação quando ainda era menor. Demais modalidades que imprescindem do animus domini, não demonstrado na hipótese em exame. Permanência da autora no imóvel, juntamente com os filhos do ex-casal, que indica somente a tolerância com a situação fática acarretada pelo rompimento do vínculo conjugal. Incidência do art. 1.208 do Código Civil. Notificação extrajudicial realizada que cumpriu a finalidade de denunciar o contrato e demonstrou o interesse da usufrutuária e do nu-proprietário em reaver o imóvel, perfectibilizando-se o esbulho. Incidência do artigo 582 do Código Civil” (TJRJ, Apelação n. 0390522-36.2016.8.19.0001, Rio de Janeiro, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Heleno Ribeiro Pereira Nunes, DORJ 10/06/2021, p. 298). Ou, ainda, do Tribunal Paulista: “Embora o réu tenha constituído nova família, não restou configurado abandono. Réu que vem pagando pensão alimentícia e exercendo o direito de visitas à filha comum do casal. Mera ocupação autorizada do imóvel comum que restou continuada diante de permissão do coproprietário. Ausente requisito do animus domini para o seu reconhecimento” (TJ/SP, Apelação cível n. 1002348-40.2016.8.26.0704, Acórdão n. 14935725, São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Elcio Trujillo, julgado em 19/08/2021, DJESP 24/08/2021, p. 1668).
Tem-se entendido, com razão, que o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa. Nessa linha, o Enunciado n. 499 aprovado na V Jornada de Direito Civil, em 2011, que analisava muito bem a temática: “a aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito 'abandono do lar' deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e dever de sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião” (Enunciado n. 499). Como incidência concreta desse enunciado doutrinário anterior, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por um cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono.
Outra aplicação da última ementa doutrinária diz respeito ao afastamento de qualquer debate a respeito da culpa, com o fim de influenciar a usucapião a favor de um ou outro consorte. Na verdade, existindo qualquer controvérsia a respeito do imóvel, não há que se falar em posse ad usucapionem com a finalidade de gerar a aquisição do domínio. De toda sorte, na VII Jornada de Direito Civil, realizada em 2015, o Enunciado n. 499 foi cancelado, substituído por outro com linguagem mais clara, que parece englobar as hipóteses aqui mencionadas. Nos termos da nova ementa doutrinária, “o requisito do 'abandono do lar' deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499” (Enunciado n. 595). Penso que o novo enunciado não inova substancialmente, trazendo como conteúdo exatamente o que estava tratado no anterior, ora cancelado, apenas com o uso de termos mais claros e objetivos.
Merece destaque outro enunciado doutrinário aprovado na V Jornada, que conclui que não é requisito indispensável para a nova usucapião o divórcio ou a dissolução da união estável, bastando a mera separação de fato: “as expressões 'ex-cônjuge' e 'ex-companheiro', contidas no artigo 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio” (Enunciado n. 501). Julgando dessa forma, somente para ilustrar: “o evento a quo para o início da contagem do prazo prescricional é a separação de fato do casal, com o abandono do lar por um dos cônjuges” (TJ/SP, Apelação n. 0023846-23.2012.8.26.0100, Acórdão n. 7215564, São Paulo, Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, julgado em 03/12/2013, DJESP 21/01/2014).
Na mesma V Jornada de Direito Civil concluiu-se que “o conceito de posse direta do art. 1.240-A do Código Civil não coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código” (Enunciado n. 502 da V Jornada de Direito Civil). Isso porque o imóvel pode ser ocupado por uma pessoa da família do ex-cônjuge ou ex-companheiro que pleiteia a usucapião, caso de seu filho, conforme consta do próprio dispositivo. Em casos tais, pelo teor do enunciado e na minha opinião doutrinária, a usucapião é viável juridicamente.
Como última questão divergente a ser exposta neste breve texto, há intenso debate a respeito da competência para apreciar tal modalidade de usucapião, se da Vara de Registros Públicos, da Vara Cível ou da Vara da Família. Em discussões recentes, em grupos digitais, percebi que a primeira corrente prevalece entre os civilistas, enquanto a segunda entre os familiaristas. Entendo que, por se tratar de questão eminentemente civil, em que a primeira análise para a configuração do instituto diz respeito à configuração ou não da posse ad usucapionem, a competência deve ser das duas primeiras.
Exatamente nesse sentido decidiu recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo, confirmando a posição do seu Órgão Especial, que “a questão afeta à competência para apreciação da usucapião familiar já foi solucionada pelo Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça, cabendo às varas cíveis ou de registros públicos (onde não houver varas cíveis) apreciar a matéria” (TJSP, Apelação cível n. 1020898-41.2019.8.26.0005, Acórdão n. 14851731, São Paulo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Silvério da Silva, julgado em 26/07/2021, DJESP 30/07/2021, p. 2831). Na mesma linha, julgou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal que “a relação jurídica em discussão, de ordem eminentemente patrimonial, no que se compreende a pretensão inicial de usucapião familiar, com fundamento no art. 1.240-A do Código Civil, atrai inexoravelmente a competência do Juízo Cível. Súmula n. 24 do TJDFT e precedente julgado na 2ª Câmara Cível” (TJDF, Apelação cível n. 00380.18-62.2016.8.07.0001, Acórdão n. 134.4789, Sétima Turma Cível, Rel. Des. Fábio Eduardo Marques, julgado em 09/06/2021). Por fim, do Tribunal Fluminense, em prejuízo de muitos outros julgados, sendo essa a posição majoritária das Cortes Estaduais brasileiras: “o objeto da demanda é a aquisição originária da propriedade do imóvel em que reside a autora, de modo que a matéria a ser apreciada e julgada nos autos é de natureza eminente patrimonial, não havendo qualquer questão relativa à relação familiar. Matéria que não se encontra no rol da competência das varas de família, expressamente delimitada no art. 43 da LODJ” (TJRJ, Apelação n. 0012457-50.2019.8.19.0210, Décima Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Ricardo Rodrigues Cardozo, DORJ 29/07/2020, p. 371).
Esse último entendimento ganha força diante da comum situação de os autores das ações de usucapião alegarem a presença não só de uma de suas modalidades. Assim, é usual que a parte alegue não só a usucapião familiar, mas também a usucapião ordinária e a extraordinária, pela presença de requisitos cumulativos, de uma ou outra categoria. A configuração ou não de seus elementos é melhor apreciada pelo Juízo Cível do que pelo Juízo da Família, na minha opinião.
Não se pode negar, contudo, que a questão não é pacífica, existindo acórdãos em sentido contrário, como nas hipóteses em que a usucapião é alegada como matéria de defesa em ações de divórcio ou de dissolução de união estável. Ou, ainda, as hipóteses concretas em que há divergência a respeito da presença ou não de uma união estável, motivadora da usucapião. Trazendo essa solução, pela competência da Vara da Família, colaciono o seguinte julgado, do Tribunal de Santa Catarina:
Como palavras finais para este breve texto, não se pode negar que existem argumentos consideráveis para os dois caminhos a respeito da competência. De todo modo, reafirmo o meu entendimento no sentido de se tratar de tema relacionado a matéria predominantemente civil, sendo certo que a grande maioria das demandas de usucapião, como aqui se demonstrou, traz o debate sobre a caracterização ou não da posse ad usucapionem.