Introdução
O presente artigo se destina a registrar o estudo que realizamos, para investigar se o proprietário do terreno, cedido para a incorporação imobiliária, pode vir a ser responsabilizado, solidariamente com o incorporador, perante os consumidores adquirentes prejudicados, pelas perdas e danos por estes sofridos, em decorrência de eventual insucesso do empreendimento.
Nos detivemos a analisar as hipóteses, em que o proprietário firma, com o incorporador, um contrato de promessa de compra e venda ou de cessão de direitos sobre o terreno, para pagamento em prestações, ou um contrato de permuta, por meio do qual promete vender o seu imóvel para o incorporador, aceitando, como pagamento, total ou parcial, unidades autônomas do futuro empreendimento, a lhe serem oportunamente conferidas (artigos 32, “a” e 39 da lei 4.591/64, e 167, I, alíneas 9 e 30, da lei 6.015/73).
Após estudo da legislação, doutrina e jurisprudência, chegamos à conclusão que o proprietário do terreno poderá, ou não, vir a ser responsabilizado, perante os consumidores prejudicados, solidariamente com o incorporador, e demais partícipes da incorporação imobiliária, pelo insucesso do empreendimento, dependendo das circunstâncias do caso concreto.
Responsabilidade do proprietário
A responsabilidade do proprietário surgirá se, além do contrato de promessa ou de permuta de seu terreno, firmado com o incorporador, vier a participar, de alguma forma, da incorporação, ou praticar atos próprios incorporativos.
Se o proprietário, no entanto, se restringir a firmar o contrato de alienação de seu imóvel com o incorporador, acreditamos não possa vir a sofrer tal responsabilização.
Primeiro, porque o art.31, caput, da lei 4.591/64, é expresso em atribuir, ao incorporador, e não ao proprietário, a responsabilidade pelas incorporações imobiliárias.
Em segundo lugar, porque o art.40, parágrafo 2º, do mesmo diploma legal, estabelece que em vindo a ocorrer a rescisão do contrato de alienação do imóvel, firmado entre o proprietário e o incorporador, a responsabilidade do primeiro, relativamente aos consumidores das unidades autônomas, deverá corresponder à devolução, aos mesmos, da parcela da construção acrescida à sua propriedade.
Em vindo a malograr o empreendimento da incorporação imobiliária, e isto ocasionando a rescisão do contrato de alienação, firmado entre o proprietário e o incorporador, por falta de pagamento do preço ajustado do terreno, em favor do primeiro, sejam prestações e/ou unidades autônomas, consolida-se, em favor do proprietário alienante, o direito sobre a construção porventura realizada em seu terreno, em decorrência do início das obras do empreendimento (art.40, § 1º, da lei 4.591/73).
Como esta construção não existia, antes do contrato de alienação, e passou a existir, com o emprego das parcelas pagas pelos consumidores contratantes das unidades autônomas, é justo que estes recebam, de volta, o valor apurado da construção, evitando-se, assim, o enriquecimento sem causa do proprietário.
Mas apurar, dividir e devolver o valor da construção, aos consumidores finais prejudicados, é uma obrigação limitada, não se confundindo com a reparação de todos os danos materiais e morais, que venham a sofrer, pelo insucesso da incorporação. Até porque esta construção pode nem sequer ter chegado a existir, hipótese em que nenhuma responsabilidade recairá sobre o proprietário, que agiu apenas como tal.
Isto significa que, agindo como mero proprietário, o fundamento da responsabilidade deste último, perante os consumidores das unidades autônomas prejudicados, não é a relação contratual estabelecida entre estes e o incorporador, mas sim evitar o seu enriquecimento sem causa.
Também o art.30 da Lei nº 4.591/64, ao elencar uma das hipóteses em que o proprietário deve ser equiparado ao incorporador, está a evidenciar que, para que tal equiparação ocorra, o proprietário precisa praticar atos que vão além do exercício dos poderes inerentes à propriedade, tal como construir edificações em sua propriedade, em regime condominial, iniciando suas vendas, antes de estarem prontas, atividade esta que, como se exporá mais abaixo, é típica da incorporação imobiliária.
São nesse sentido os julgados que encontramos, do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da responsabilidade do proprietário, que apenas cede o seu terreno para a incorporação.
No mesmo sentido, vem se posicionando o Tribunal de Justiça de São Paulo.
Prosseguindo na análise da situação do proprietário, que se limita a ceder o seu terreno, para o incorporador, sem praticar atos de incorporação imobiliária, mas agora à luz do Código de Defesa do Consumidor – CDC (lei 8.078/90), é de se observar que, realmente, não chega a integrar a cadeia da relação de consumo, que culmina com a celebração dos contratos de promessa de compra e venda das unidade autônomas com os consumidores finais.
Conforme ensina Cláudia Lima Marques, fazem parte da cadeia da relação de consumo, todos os atores que unem esforços para uma “finalidade comum”.
A finalidade comum, no negócio da incorporação imobiliária, é a obtenção de lucro com o empreendimento, por meio da venda de frações ideais do terreno vinculadas a futuras unidades autônomas.
O proprietário, que apenas cede o seu terreno para o incorporador, não adere a tal finalidade, sendo sua pretensão, única e exclusivamente, vender o seu imóvel e receber, por ele, o devido pagamento.
Ou seja, não se torna o proprietário “fornecedor” no mercado de consumo, nos termos do art.3º do Código de Defesa do Consumidor – CDC, que considera como tal, apenas, aqueles que “desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.
Nesse sentido, o posicionamento que encontramos, do Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado na ementa do Resp. 686.198/RJ4 e na ementa a seguir:
PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. INEXECUÇÃO CONTRATUAL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO PROPRIETÁRIO DO TERRENO. INAPLICABILIDADE DO DIREITO DO CONSUMIDOR.
(…)
2. A Lei de Incorporações (Lei n. 4.591/1964) equipara o proprietário do terreno ao incorporador, desde que aquele pratique alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, atribuindo-lhe, nessa hipótese, responsabilidade solidária pelo empreendimento imobiliário.
3. No caso concreto, a caracterização dos promitentes vendedores como incorporadores adveio principalmente da imputação que lhes foi feita, pelo Tribunal a quo, dos deveres ínsitos à figura do incorporador (art. 32 da Lei n. 4.591/1964), denotando que, em momento algum, sua convicção teve como fundamento a legislação regente da matéria, que exige, como causa da equiparação, a prática de alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, ou seja, da promoção da construção da edificação condominial (art. 29 e 30 da Lei 4.591/1964).
4. A impossibilidade de equiparação dos recorrentes, promitentes vendedores, à figura do incorporador demonstra a inexistência de relação jurídica consumerista entre esses e os compradores das unidades do empreendimento malogrado.
5. Recurso especial provido.
(REsp 1065132/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/06/2013, DJe 01/07/2013).
Realmente, responsabilizar o proprietário, pelo insucesso do empreendimento, quando tenha apenas cedido o seu terreno para o incorporador, seria o mesmo que responsabilizar o proprietário de um imóvel, que o aluga para um restaurante, pelos danos causados por este, a um consumidor final, por ter-lhe fornecido comida estragada. Não teria nenhum cabimento.
Isto, evidentemente, pressupondo-se que o proprietário tenha tomado as cautelas devidas e de praxe, para evitar alugar ou vender o seu imóvel, para pessoas ou empresas inescrupulosas ou evidentemente incapacitadas.
Situação diferente se verifica, no entanto, se o proprietário, além de ceder o seu terreno para o incorporador, vem a participar, de alguma forma, do próprio empreendimento, praticando algum ato típico de incorporação imobiliária.
Importante aqui definirmos o que caracteriza uma atividade como sendo de incorporação imobiliária.
Segundo Castro Filho5, o que caracterizaria tal atividade, seria a venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em condomínio edilício, em construção ou objeto de projeto de construção.
Castro Filho narra que Caio Mario da Silva Pereira, autor do anteprojeto, que deu origem à lei 4.591/64, teria preferido conferir destaque à promoção da construção, ao invés da venda, para caracterizar a atividade de incorporação imobiliária, mas sua pretensão não fora acolhida, tendo sido aprovada a atual redação do art.29, caput, da referida lei, segundo a qual:
Assim, segundo Castro Filho, e outros doutrinadores por ele citados, a lei 4.591/64 teria optado por conferir, à venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em construção ou a serem construídas, o traço mais característico e identificador da atividade de incorporação imobiliária.
No nosso entendimento, para se compreender, corretamente, a atividade de incorporação imobiliária, deve-se conjugar o supra transcrito art.29, caput, que dá destaque à venda, com o parágrafo único do art.28, ambos da lei 4.591/64, referindo-se este último à incorporação imobiliária, como a atividade desenvolvida com o intuito de promover e realizar a construção de edificações, para a alienação de unidades autônomas.
A incorporação se caracteriza, fundamentalmente, como uma atividade de comercialização de unidades autônomas, que estão sendo ou serão construídas, em edifícios, ou conjunto de casas, para funcionarem em regime condominial.
Se verifica quando o consumidor é chamado, ou se propõe a comprar um imóvel na planta, que ainda não existe, pois se a venda das unidades ocorrer somente após a conclusão das obras, e expedição do habite-se, não mais se estará diante de uma atividade de incorporação imobiliária.
Como ressalta Castro Filho6, é uma aquisição de risco para o consumidor, baseada na confiança, pois se compromete a comprar, e começa a pagar, por algo que ainda não existe.
Tratar-se-ia, na verdade, segundo o autor, de captação antecipada de poupança popular, sem a existência de órgão específico para capacitar e fiscalizar o incorporador. Assim, e com razão, Castro Filho alerta para a necessidade do consumidor pesquisar muito bem a idoneidade do incorporador, a quantidade e a qualidade das obras por ele já entregues, antes de assinar o contrato.
Mas, muito embora a incorporação imobiliária se caracterize, fundamentalmente, pela venda ou promessa de venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em construção ou a serem construídas, em regime condominial, trata-se de um negócio bem mais complexo, por envolver todas as atividades necessárias para a implementação do empreendimento, e para possibilitar a entrega das unidades autônomas, afinal, aos consumidores, na forma e no prazo prometidos nos contratos, na publicidade e nas ofertas realizadas.
Assim, se inclui na atividade de incorporação imobiliária, a procura de um terreno apropriado para o desenvolvimento do projeto; a sua compra ou promessa de compra, junto ao proprietário, quando o incorporador não for o dono do terreno; a reunião da documentação necessária e a tomada de providências para obtenção do registro da incorporação, perante o Cartório de Registro de Imóveis competente (art.32 da lei 4.591/64); a divulgação do empreendimento; a construção da obra ou a sua contratação; a confecção e a assinatura dos contratos com os consumidores, e assim por diante.
Ou seja, tudo que diga respeito ao empreendimento, e seja necessário para a sua concretização e comercialização, é atividade de incorporação imobiliária, ainda que haja delegação de sua execução para terceiros.
Desta forma, se o proprietário do terreno vier a praticar atos típicos de incorporação imobiliária, não se restringindo a uma mera posição de vendedor do imóvel, responderá como se incorporador fosse, de forma solidária e objetiva, juntamente com todos os demais atores promoventes do empreendimento, pelos danos patrimoniais e morais sofridos pelos consumidores, pelo insucesso do negócio (artigos 7º, § único, 12º e 18º do CDC).
Por exemplo, se o proprietário vier a providenciar o registro da incorporação imobiliária; a contratar a construção da obra ou a construí-la; a auxiliar na comercialização das unidades autônomas; a receber parte das parcelas pagas pelos consumidores; a divulgar o empreendimento e/ou a captar consumidores, etc.
Em todas estas hipóteses, o proprietário passará a integrar a cadeia da relação de consumo, pois terá contribuído, com sua conduta, para o empreendimento, tornando-se “fornecedor” no mercado de consumo, com todas as responsabilidades e riscos advindos desta posição, nos termos dos artigos 3º, 7º, § único, 12º e 18º do CDC.
Neste sentido é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, inclusive nos lembrando da importância da teoria da aparência, como um dos fundamentos para a responsabilização do proprietário que se apresenta como incorporador, perante o consumidor.
O Tribunal de Justiça de São Paulo vem, da mesma forma, exigindo a prova da participação do proprietário do terreno, na incorporação imobiliária, para reconhecer sua responsabilidade, na reparação dos danos sofridos pelos consumidores das unidades autônomas.
Conclusão
Concluindo, para se poder aferir a existência de responsabilidade do proprietário, pelo insucesso do empreendimento, frente aos consumidores finais das unidades autônomas prejudicados, há que se analisar, caso a caso, se o mesmo participou, contribuiu ou praticou atos próprios de incorporação imobiliária, ou se se limitou a ceder o seu terreno para o incorporador. Na primeira hipótese, sua responsabilidade será solidária com o incorporador, e poderá ser cobrada em juízo, o mesmo não ocorrendo na segunda, quando sua responsabilidade se limitará a devolver, aos consumidores, o valor apurado de eventual construção realizada em seu terreno e incorporada à sua propriedade.