O cancelamento administrativo de matrícula de imóvel, do art. 1º da lei 6.739/79, é hipótese de autotutela e exemplo de desjudicialização, que vem sendo legitimado pelo CNJ e tribunais superiores
 
Introdução
 
É inegável a ascensão do fenômeno da desjudicialização, impulsionado pela releitura do direito de acesso à justiça e tendo como pano de fundo a inegável crise do Poder Judiciário.
 
É neste contexto que vem ganhando força o denominado “sistema multiportas”, que nada mais é do que a abertura para meios alternativos de solução de conflitos, que, longe de ameaçarem a inafastabilidade da jurisdição estatal, representam novas formas de distribuição da justiça, albergadas por uma moderna função judicial no Estado de Direito.
 
Como se verá, a situação aqui trazida, embora se afaste destas novas possibilidades no que tange a origem, se aproxima pelo fundamento de legitimação, o que representa importante sinalização pela consolidação de uma das balizas da cultura da desjudicialização, qual seja, ampliar o espaço de legitimidade de meios alternativos de solução de conflitos, reservando-se à justiça estatal os casos que assim o exijam, por sua natureza e peculiaridade.
 
Tal movimento permitirá o desafogo do Judiciário e viabilizará o resgate da credibilidade da atividade jurisdicional do estado-juiz, que quando chamado a decidir, terá condições de fazê-lo de forma justa e em tempo razoável.
 
Do cancelamento administrativo de matrícula de imóvel rural da lei 6.739/79 e sua possível aplicação no processo discriminatório administrativo
 
O art. 1º da lei federal 6.739/79 prevê a possibilidade de se declarar inexistente e de serem “cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito” (BRASIL, 1979).
 
Como se vê, tal possibilidade decorre da autotutela administrativa, pois depende, apenas, da declaração de inexistência com base no reconhecimento administrativo de nulidade absoluta.
 
Embora fosse sustentável o cancelamento pelo próprio regime jurídico administrativo, o legislador fez questão de assim autorizar, complementando regra geral já prevista no art. 214 da lei dos registros públicos (lei 6.015/73) (BRASIL, 1973).
 
Aliás, em 2009 ainda foi incluído o inciso IV ao art. 250 da lei de registros públicos, restando ainda mais clara a intenção de se permitir o cancelamento administrativo (BRASIL, 1973).      
 
Ainda assim havia forte resistência na doutrina1 e na jurisprudência quanto à legitimidade desta hipótese de autotutela, o que tinha como fundamento uma suposta cláusula de reserva de jurisdição, além de violação do direito ao contraditório e à ampla defesa, argumentos estes que, como se verá, não se sustentam.
 
Cumpre esclarecer que o reconhecimento da legitimidade do cancelamento administrativo é relevante para a defesa do patrimônio público, haja vista que é instrumento capaz de fazer frente a incontáveis casos de grilagem de terras públicas, por meio, por exemplo, do processo discriminatório administrativo.
 
O Processo Discriminatório é o procedimento instaurado com o objetivo de se identificar e delimitar as terras devolutas da União e dos estados-membro, separando-as das terras particulares.
 
Tal procedimento é regulado, em âmbito federal, pela lei 6.383/76, e no Estado da Bahia, por exemplo, pela lei estadual 3.038/72, podendo ser administrativo ou judicial (importando-nos, neste artigo, apenas a primeira hipótese), sendo um dos mais importantes institutos do Direito Agrário.
 
O fundamento jurídico é o domínio eminente que o Estado detém sobre todos os bens que estão situados no território nacional, fato este que lhe outorga o poder de identificar suas terras devolutas.
 
Deste modo, ao longo do processo discriminatório, é comum que se depare com imóveis que possuam matrícula, mas nos quais se identifique algum vício insanável no registro cartorário.
 
Assim, ao cabo do processo discriminatório administrativo, caso se chegue à conclusão de que o registro e a matrícula são nulos de pleno direito, cabível e oportuno que se invoque e se aplique, devidamente, o procedimento previsto na lei Federal 6.739/79, promovendo o cancelamento administrativo da matrícula do imóvel rural.
 
Do julgamento do Pedido de Providências (PP) 0001943-67.2009.2.0.000 pelo CNJ e dos novos precedentes do STF e do STJ
 
Como dito, apesar da previsão mais do que trintenária na legislação, sempre se verificou resistência dos operadores do direito em reconhecer a legitimidade do referido cancelamento administrativo, inclusive pelo eterno Professor Hely Lopes de Meirelles, para o qual se “afigura inconstitucional, por autorizar o cancelamento do registro sem o devido processo legal”. (MEIRELLES, 2010, p. 580).
 
Imperioso que se registre que, ainda em 1983, referido dispositivo chegou a ser apreciado pelo STF na Representação de Inconstitucionalidade 1.078-8-DF, de relatoria do Ministro Moreira Alves, que declarou sua constitucionalidade, oportunidade em que se destacou tratar-se de manifestação de autotutela, por meio do exercício da função atípica do Judiciário de fiscalizar a atividade cartorária.
 
Nesta mesma linha, o CNJ, em decisão do ano de 2010, exarada no PP 0001943-67.2009.2.0.000, deixou clara a possibilidade de se cancelar administrativamente matrículas irregulares, representando um marco para a defesa das terras públicas e do combate à grilagem, tendo o Ministro Gilson Dipp analisado o tema com extrema profundidade.
 
Tal Pedido de Providências se originou da manifestação de diversos entes, públicos e privados, que levaram ao conhecimento do CNJ estudos que dariam conta de que a área grilada no Brasil beira os cem milhões de hectares, tudo isto como consequência de grande insurgência contra o entendimento do Tribunal de Justiça do Pará pela impossibilidade do cancelamento administrativo.
 
Como era de esperar, a decisão do CNJ pela validade do cancelamento foi questionada no STF, dentre outros, no Mandado de Segurança Coletivo (MS) 30.220/DF, que teve a segurança denegada pela Relatora E. Min. Rosa Weber, em decisão extremamente elucidativa, publicada em 31/08/2016.
 
Nesta oportunidade, a Ministra esclarece a possibilidade de cancelamento administrativo das matrículas, reputando inexistente reserva jurisdicional e destacando outro precedente da 1ª Turma do STF, em que também se reconheceu a legitimidade, fazendo-se expressa remissão ao já destacado precedente da Representação 1.078/DF, de relatoria do E. Min.  Moreira Alves.
 
Cabe, por oportuno, destacar o seguinte trecho da recente decisão tomada no já mencionado MS 30.220/DF, de relatoria da E. Min. Rosa Weber:
 

6. Não se exige, por sua vez, reserva de jurisdição para declarar, na hipótese, o cancelamento de matrículas. Nos termos de precedente invocado no curso do julgamento do MS 31.681/DF, não há explícita determinação constante do texto da Constituição Federal de 1988 que afaste do exame administrativo a matéria jurídica em questão (MS 23.452/DF, Pleno, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 12.5.2000). (…) A lei 6.739/79 (…) é especial em relação à lei 6.015/73. Mesmo (…) última (…) também existe previsão de cancelamento de registro pela via administrativa (art. 250, IV). 

 
Registre-se, ainda, recente precedente do STJ que também ratificou o cancelamento de registro de imóveis rurais via procedimento administrativo, se destacando, dentre outros, o RMS 32.227/AM de Relatoria do E. Ministro Vascco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), julgado em 16/12/2010, pela 3ª Turma.
 
Como se nota, precedentes dos tribunais superiores vem afastando os principais argumentos contrários ao cancelamento administrativo, quais sejam, a suposta cláusula de reserva de jurisdição e violação ao contraditório.
 
No que tange o contraditório, restou consignado que o procedimento prevê a oitiva dos prejudicados, oportunizando a demonstração da regularidade da cadeia dominial. Além do que, resta incólume a inafastabilidade da jurisdição para aqueles que entendem possuir justa causa para a anulação do próprio ato administrativo.
 
Quanto ao destaque pela ausência de cláusula de reserva de jurisdição, entendemos que a consolidação da jurisprudência neste sentido reforça uma das bases para a expansão da desjudicialização, pois ao se prestigiar a instância decisória administrativa, se fortalece a ideia de residualidade do Poder Judiciário, aproximando “institutos” aparentemente distantes entre si, como a autotutela administrativa e o sistema multiportas, os quais, ao fim e ao cabo, representam diferentes meios de resolução de conflitos, alternativos à “Justiça estatal”.
 
Neste ponto, relevante o destaque do Professor Camargo Mancuso:
 

“Como se vê, o próprio legislador vem se mostrando sensível à tendencial desjudicialização (…), como alternativa ao tradicional monopólio estatal da distribuição da justiça. Portanto, uma pretendida “reserva de Justiça estatal (…) não se extrai da letra nem do espírito do inciso XXXV do art. 5º da CF; ao contrário, tal dispositivo (…) não determina nem estimula que todas as demandas devem ser encaminhadas à Justiça, mas sim que tal acesso deve operar como uma cláusula de reserva, de cunho residual, preordenada às controvérsias porventura insolúveis por auto ou heterocomposição, ou àquelas que, em razão da pessoa ou da matéria, devem merecer passagem judiciária”. (MANCUSO, 2020, p. 199).

 
Neste exato sentido é que, em nosso entender, deve-se, cada vez mais, ampliar a discussão em torno do real escopo do direito fundamental à justiça, abrindo o espaço de legitimação das diferentes alternativas de desjudicialização, consolidando o caráter residual e de ultima ratio do Poder Judiciário.
 
Conclusão
 
O cancelamento administrativo de matrículas de imóveis rurais, precedida de declaração de inexistência por reconhecimento de nulidade absoluta, prevista pelo art. 1º da lei 6.739/79, embora polêmica, tem sido legitimada no âmbito dos tribunais superiores e do próprio CNJ, em sua função fiscalizadora.
 
Tal possibilidade encontra esteio na autotutela administrativa e na ausência de de reserva de jurisdição.
 
Como se sabe, a própria autotutela é método milenar e primitivo de resolução de conflitos, autorizada somente de forma excepcional no Estado de Direito, e que, na situação trazida pelo presente artigo, se aproxima do sistema multiportas, justamente por possuir semelhante critério de legitimação, qual seja, a ausência de cláusula de reserva de jurisdição.
 
É nessa linha, com fortalecimento dos caminhos legítimos de desjudicialização, que se vislumbra a mudança de paradigma necessária à ressignificação do conteúdo do direito de acesso à justiça, desviando o holofote do processo/procedimento e passando a centralizar a ciência do direito, e seus instrumentos, na prevenção e na resolução dos conflitos, sempre na esperança por maior pacificação e justiça social.