Os terrenos de marinha são bens da União que não estão debaixo d’água. A frase pode parecer óbvia, mas é uma das premissas para interpretar, com a máxima efetividade que merecem, as leis de patrimônio da União, em especial aquela que fixa como são feitas as medições do oceano para o continente para se estabelecer a extensão do domínio público litorâneo.

 

Segundo o artigo 20, VII, da Constituição, são bens da União os terrenos de marinha e seus acrescidos. A norma deu uma abertura necessária à delimitação desses bens a partir de fenômenos naturais, que implicam mudança de propriedade pela força da natureza.

 

Desde os tempos romanos até hoje existe disciplina normativa para definir a propriedade que tem sua extensão ou volume acrescidos. É o caso da formação de ilhas, aluvião, avulsão e abandono de álveo do artigo 1.248 do Código Civil e dos artigos 16 a 28 do Código de Águas.

 

A dinâmica natural da costa marítima, com a subida do nível dos oceanos, ou mesmo com a construção de aterros, portos, decréscimo do volume dos rios implicam o avanço ou recesso do nível dos oceanos sobre o continente. Tudo isso deve ser levado em conta, com a abertura dada pela norma constitucional, e, especialmente, na interpretação da legislação federal.

 

Com efeito, rezam os artigos 2º e 3º do Decreto-lei nº 9.760/1946:

 

Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:

  1. a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;
  2. b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.

Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.

Art. 3º São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.

 

A medição do preamar, que não é a baixa mar, tampouco a maré alta, considerou o marco temporal de 1831. Desde então, a costa brasileira mudou muito, até mesmo a de sua antiga capital, repleta de aterros e obras que alteraram a paisagem do século 19.

 

Mas o que havia de importante em 1831 nas marés para se levar em conta como marco constitucional? Do ponto de vista físico, nada. Do ponto de vista jurídico, foi o ano em que sobreveio a primeira disciplina legal dos terrenos de marinha, sob o Brasil independente, mais precisamente artigo 51, §14 da Lei de 15 de novembro de 1831. Antes dessa lei, havia o Aviso Real de 18 de novembro de 1818, que dizia “que 15 braças da linha d’água do mar, e pela sua borda, são conservadas para servidão pública; e tudo o que toca a água do mar e acresce sobre ela é da nação”. A disciplina desses imóveis sequer era constitucional. Sua mensuração servia para “regalias reais”[1].

 

Os terrenos de marinha somente passaram a ter envergadura constitucional em 1988, o que implica ressignificar seu conceito. Interpretá-los com base nas marés de dois séculos atrás, além de não haver medições físicas contemporâneas, implicaria  abandonar os cânones da interpretação e aplicação da Constituição.

 

Com efeito, dar densidade constitucional ao instituto terreno de marinha resulta tratá-lo não apenas como fato gerador de receitas, o foro ou laudêmio, mas também como dominialidade pública (artigo 1229 do Código Civil) onde se situam parte de fragmentos remanescentes de Mata Atlântica, protegidos pela Lei 11.428/2006, e das restingas e dos manguezais protegidos nas repristinadas Resoluções nº 302 e 303 do Conama.

 

Os terrenos de marinha, como propriedade (artigo 1.229 do Código Civil), têm que cumprir sua função social, que encontra, junto aos fundamentos da ordem econômica, a defesa do meio ambiente natural. São precisamente nos terrenos de marinha, onde situam-se esses espaços especialmente protegidos, que ressignificam o sentido e o modo de ver esses bens da União, ainda mais quando a Administração Federal, com base no Decreto nº 11.349/2023, reconhece, expressamente, a mudança do clima como fenômeno jurídico e objeto de atuação da função administrativa do Estado.

 

Elevar o patamar normativo dos terrenos de marinha, implica também levar em consideração essa data para medição dos 33 metros da preamar média, pois a lei passa a ser lida conforme a Constituição e não o contrário. A preamar média passa ser aquela do dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, lei nova e superior que tratou do instituto derrogando a parte final do artigo 2º do Decreto-lei nº 9.760/1946, que não foi recepcionada.

 

Essa é a melhor forma de identificar esses bens constitucionais de domínio da União de lege lata. Até advir uma legislação nova e menos presa a conceitos históricos do século retrasado, que não fazem mais sentido e nem importância,vamos caminhando com fé na Constituição, afinal “A fé ‘tá na maré, na lâmina de um punhal. Oh, oh, na luz, na escuridão, Andá com fé eu vou, Que a fé não costuma faiá”[2].

 

Fonte: Conjur

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