Adriana Caldeira, advogada especialista em Direito Civil do PG Advogados, explica a falta de consenso do Judiciário acerca do tema e quais os critérios são levados em conta para garantir a privacidade do falecido
O mundo está cada vez mais digital e conectado e pouca gente reflete sobre o assunto, mas, ao usar um computador, um smartphone, ao criar uma conta para uso dos mais diversos serviços de internet e deixar registrado na nuvem uma série de dados, as pessoas estão construindo, de forma muito natural e impensada, o seu patrimônio digital, conta a advogada especialista em Direito Civil, Adriana Caldeira do PG Advogados.
Segundo a especialista, ao longo de uma vida, as pessoas deixam armazenada uma série de bens imateriais das mais diversas formas possíveis no meio digital. “Mas ainda não se pensa nisso como um patrimônio que pode vir a ser requerido como herança digital, e aqui reside uma série de situações que vão parar na Justiça e causam muitos problemas a familiares após morte de um ente querido”.
Não há uma legislação específica nessa área e também não existe consenso do Judiciário sobre plataformas digitais, de acordo com Adriana. “Contudo, todas as pessoas estão conectadas de algum modo, o que suscita diversos questionamentos: Como a herança digital pode ser automaticamente transferida para seus herdeiros? Eles terão acesso às contas pessoais de redes sociais e ativos digitais? De que forma se dará esse acesso? Diante dessas indagações – e de muitas outras – a natureza jurídica da herança digital começou a ser balizada nos Direitos da Personalidade, que são prerrogativas irrenunciáveis e intransmissíveis de todo ser humano”, acrescenta a especialista.
O que são bens digitais?
A divisão dos bens de uma pessoa falecida já é momento complexo para seus familiares, ainda mais quando existe um patrimônio valioso a ser dividido entre os herdeiros. São os bens imobiliários, automóveis, valores financeiros e os itens pessoais com caráter afetivo, como livros, discos e roupas, dentre outros. Agora, tudo tende a se complicar quando, além dos bens materiais, estão em jogo os bens (ou ativos) digitais, pontua a advogada.
“Os bens digitais são classificados como tudo aquilo que pode ser processado em dispositivos eletrônicos e armazenados em servidores físicos ou na nuvem. São as contas em redes sociais e aplicativos, moedas digitais, fotos, vídeos, áudio, arquivos de texto, e-mails, e-books, jogos online, assinaturas digitais, criptoativos, enfim, é o próprio conteúdo armazenado”, esclarece a especialista.
Como patrimônio fica entendido o conjunto de bens, direitos e obrigações que tem algum valor financeiro, seja para pessoas físicas ou para empresas. Já o patrimônio digital é constituído por bens incorpóreos (imateriais) existentes no meio digital.
Direito da Personalidade
Um dos pontos que vem sendo analisado pela Justiça é a questão da privacidade da pessoa falecida – já que contas de e-mail ou celular podem conter informações privadas de anos da sua vida. Neste contexto, o Direito da Personalidade tem sido a principal baliza reguladora, destaca Adriana.
“Houve um caso em que uma filha entrou com uma ordem judicial para desbloquear o computador e o celular do seu pai falecido para usufruir dos aparelhos, e a Justiça trouxe à tona o Direito da Personalidade por entender que há contas de e-mail, bancos e aplicativos, dentre outros, que precisam ser respeitados e mantidos privativos mesmo após a morte. O resultado foi o indeferimento da ação, uma vez que os desembargadores consideraram que não havia caráter patrimonial ali atrelado, ou seja, tudo que envolveu dados pessoais e sensíveis não foi, em princípio, suscetível à sucessão”, conta a especialista do PG Advogados.
Os Direitos da Personalidade, que se consolidaram no meio jurídico com a publicação da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, protegem direitos invioláveis como: intimidade, honra, imagem e privacidade. No caso mencionado, o direito à privacidade foi o principal argumento jurídico que impossibilitou a herdeira legítima de ficar com o computador e os celulares do pai falecido. “Mas isso não ocorreu devido aos bens materiais, mas sim aos arquivos pessoais armazenados nos aparelhos”, finaliza.
Redes sociais: um caso à parte
As redes sociais apresentam um caráter distinto. A especialista em Direito Civil do PG Advogados informa que as redes sociais possuem os próprios termos e condições de uso, que contemplam o que deve ser feito com o perfil em caso de morte. “Geralmente há dois caminhos a seguir: o primeiro é o/a dono/a do perfil optar por manter sua conta em forma de memorial e o segundo momento é ativar, ainda em vida, o comando de exclusão do perfil em caso de falecimento”, explica.
Para fins de figura pública, faz sentido passar aos herdeiros, até porque a mesma poderá ser utilizada para memória do artista ou influenciador entre seus seguidores. Na falta de consenso, contudo, o Judiciário tem analisado os processos caso a caso, de acordo com suas peculiaridades concretas. “É possível que representantes legais, nomeados em vida pela pessoa e que sejam maiores de 18 anos, possam se tornar administradores do perfil e dar continuidade a ele mediante algumas regras a serem definidas”, esclarece.
De acordo com a advogada, o alerta que fica é sobre pensar o patrimônio digital e deixar claro, para familiares e amigos próximos, o que deseja após a morte. A questão sucessória é importante porque atinge afetivamente os entes e a sua imagem também. “A orientação é consultar um advogado e estabelecer o seu planejamento sucessório, sendo o testamento um desses caminhos, para envolver a herança digital. E tudo deve ser feito de maneira formal ou respeitando as características legais, como a presença de testemunhas, para que o desejo tenha validade legal e, assim, seja cumprido”, finaliza a advogada.
Fonte: Migalhas
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