Recentemente, a Corte infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof (BGH), proferiu interessante decisão acerca do direito do doador de revogar a doação em decorrência de ingratidão do donatário. A decisão veio solucionar controvérsia existente na doutrina alemã e devido à sua significação fundamental (grundsätzliche Bedeutung) subiu à Corte em Karlsruhe.

 

O caso

 

O caso girava em torno de doação de quatorze imóveis feita a título de antecipação da legítima pela mãe a seus três filhos. A doação foi feita com reserva de usufruto gratuito e vitalício para a genitora. Um outro imóvel, localizado em Frankfurt am Main, foi doado exclusivamente ao filho.

 

Anos depois, após ficar internada longo período em um hospital, a mãe resolveu extinguir o direito de usufruto instituído a seu favor em documento com firma reconhecida em cartório.

 

O documento deveria ficar guardado em um cofre na sede da administração do condomínio até que eles decidissem o que fazer. O filho, porém, se apossou do documento e tentou convencer a mãe e suas duas irmãs a decidir logo o que fazer com a declaração.

 

Embora as partes não tenham chegado a consenso, ele se recusou a devolver o documento e levou-o ao cartório, solicitando o registro do cancelamento do usufruto no cartório de registro de imóveis (Grundbuchamt).

 

Esse fato azedou ainda mais a relação entre mãe e filho, que já estava abalada pelo fato da empresa do rapaz ter suspendido o pagamento da renda de outro imóvel da genitora, arrendado pela sociedade, o que levou a mãe a pleitear em juízo um débito de mais de um milhão de euros.

 

Assim que a genitora foi informada pelo cartório acerca da averbação da extinção do usufruto, ela cancelou uma antiga procuração dada ao filho e requereu judicialmente o cancelamento da mencionada averbação.

 

In continenti, escreveu ao filho comunicando a revogação da doação e entrou com ação na justiça pedindo a devolução do domínio dos imóveis transferido ao filho. Como a genitora faleceu durante o processo, as filhas deram prosseguimento à ação.

 

No curso do processo, a genitora alegou ter revogado a doação por ingratidão do filho, tendo em vista o comportamento dele em registrar contra sua vontade, de forma sorrateira, o cancelamento do usufruto, além de suspender o pagamento do aluguel do imóvel comercial locado, forçando-a a levar o caso ao Judiciário. Além disso, o filho teria chantageado as irmãs no imbróglio envolvendo o cancelamento do usufruto.

 

O Tribunal de primeira instância (Landgericht) de Frankfurt a.M. julgou procedente a ação, condenando o filho (donatário) a devolver a propriedade dos imóveis à genitora, decisão que fora, porém, reformada em grau de recurso pelo Oberlandesgericht Frankfurt a.M. no processo n. 8 U 142/13, julgado em 27/12/2019.

 

Em apertada síntese, o Tribunal de Justiça declarou a nulidade do ato, porque a doadora não indicou na notificação os motivos (fundamento) para a revogação da doação. Ademais, a Corte entendeu que a conduta do donatário, de requerer o averbamento do cancelamento do usufruto, não poderia ser classificada como ingratidão.

 

O processo subiu a Karlsruhe, cidade sede dos tribunais superiores na Alemanha. O Bundesgerichtshof deu provimento ao recurso de Revision interposto, afirmando, em suma, que a declaração de revogação da doação não precisa de fundamentação.

 

Para entender o caso

 

Para entender o caso, faz-se necessário, inicialmente, recordar que a doação é, em princípio, um contrato que não pode ser revogado ao arbítrio do doador. Pelo contrato de doação, uma pessoa, por liberalidade, transfere de seu patrimônio bens ou vantagens para o patrimônio de outrem (art. 538 do Código Civil).

 

Além da movimentação patrimonial, para o aperfeiçoamento do contrato é necessário que as partes acordem entre si que a transferência será feita de forma gratuita, sem que o donatário se obrigue a uma contraprestação, como ressalva atentamente o § 516 do BGB[1].

 

A doação só pode ser desfeita em situações excepcionais. A codificação brasileira prevê expressamente duas hipóteses no art. 555, quais sejam, os casos de ingratidão do donatário ou de inexecução do encargo.

 

O art. 557 CC elenca algumas hipóteses de ingratidão, como atentar contra a vida ou cometer homicídio contra o doador, ofensa física, injúria ou calúnia ou recusar fornecer alimentos ao doador necessitado. A revogação pode ocorrer quando o ofendido for cônjuge/companheiro, ascendente, descendente ou irmão do doador (art. 558 CC).

 

O direito de revogar a doação é direito potestativo e personalíssimo que só pode ser exercido pelo próprio doador, sendo permitido a seus herdeiros apenas continuar a demanda revocatória já instaurada (art. 560 CC), salvo em caso de homicídio doloso do doador, quando a ação caberá evidentemente aos herdeiros (art. 561 CC). O direito de revogação por ingratidão deve ser exercido por meio de ação revocatória a ser movida no prazo de decadencial de um ano, nos termos do art. 559 CC.

 

A doutrina discute se o art. 557 CC consagra um rol taxativo (numerus clausus) de formas de ingratidão ou se outras situações igualmente graves poderiam justificar o desfazimento da doação. Nesse sentido, o Enunciado 33 da I Jornada de Direito Civil diz que “o Código Civil de 2002 estabeleceu um novo sistema para a revogação da doação por ingratidão, vez que o rol legal previsto no art. 557 deixou de ser taxativo, admitindo, excepcionalmente, outras hipóteses”.

 

O direito alemão, ao contrário, não possui um rol taxativo de hipóteses de ingratidão, mas dispõe de uma cláusula geral, estampada no § 530 I BGB, segundo a qual a doação pode ser revogada quando o donatário (Beschenkte), através de grave falta cometida contra o doador (Schenker) ou familiar próximo, incorrer em grosseira ingratidão (grober Undank)[2].

 

Dessa forma, faz-se necessário uma valoração ampla das circunstâncias do caso concreto, inclusive do comportamento do doador[3], para saber se o donatário faltou com a gratidão que a moral social normalmente espera seja devida ao doador.

 

Como atentamente observa Ingo Saenger, Professor da Universidade de Münster, a norma do § 530 I BGB trata, a rigor, de caso especial de perturbação da base do negócio (§ 313 BGB) na medida em que um grave comportamento superveniente do donatário (ingratidão grosseira) altera profundamente as circunstâncias iniciais do negócio, fazendo surgir para o doador o direito (rectius: pretensão) de revogar a doação feita, pleiteando a devolução do objeto doado[4].

 

A jurisprudência alemã é rica em exemplos de grosseira ingratidão: maus-tratos, cárcere privado, ofensa grave, pedido de interdição manifestamente infundado, denúncia ou queixa-crime infundada, ofensa à honra, exclusão deliberada da empresa familiar, abertura de empresa concorrente pelo donatário que recebeu quotas sociais da empresa do doador, tentativa de captação de clientes, etc. Em certas circunstâncias, até mesmo a negativa de concessão de um direito real de uso pode justificar a revogação da doação[5].

 

Para a configuração da ingratidão no direito alemão, é necessário, em apertada síntese, a existência de dois pressupostos fundamentais: primeiro, uma falha grave do donatário e, segundo a reprovabilidade moral da conduta por demonstrar falta de gratidão para com o doador[6]. Esses são, por assim dizer, os pressupostos materiais para a revogação da doação por ingratidão do donatário.

 

Segundo o § 531 BGB, a revogação deve ser feita por meio de declaração dirigida ao donatário (inc. 1) e, uma vez revogada a doação, a restituição da coisa se dará pelas regras do enriquecimento sem causa (inc. 2)[7]. A doutrina diverge quanto à necessidade de o doador indicar na declaração a causa da revogação, isto é, de fundamentar sua decisão.

 

A opinião majoritária entende que o doador precisa indicar na declaração a causa da revogação (Widerrufsgrund), fazendo menção ao comportamento ingrato do donatário até para que esse possa verificar a veracidade da causa e a observância do prazo decadencial de um ano estipulado no § 532 BGB[8].

 

Corrente minoritária, porém, afirma que isso seria desnecessário tendo em vista a dicção do § 531 I BGB, que exige apenas que o doador emita uma declaração de vontade receptícia, sem forma especial, no prazo de um ano, contado do momento em que toma conhecimento da ocorrência dos pressupostos de seu direito, i.e., do fato e da autoria da ingratidão (§ 532 BGB).

 

A Corte de Karlsruhe, reconhecendo a divergência, filiou-se à corrente minoritária e afirmou que a declaração de revogação não requer fundamentação. Trata-se do processo BGH X ZR 42/20, julgado em 11/10/2022 pelo 10º Senado do BGH.

 

A decisão do BGH

 

Com efeito, o Tribunal entendeu que o comunicado feito pela mãe ao filho, informando que estava revogando a doação dos imóveis e requerendo a devolução do domínio sobre os mesmos, era suficiente para atender à exigência do § 531 BGB, que requer apenas que a revogação seja feita por meio de declaração de vontade endereçada ao donatário na qual conste claramente a decisão de desfazer a doação.

 

Uma interpretação literal da norma revela que o legislador não impôs ao doador o dever de mencionar a causa da revogação (Widerrufsgrund) na declaração de revogação (Widerrufserklärung). Em outras palavras: a norma não cria um dever de fundamentação (Begründungspflicht) para o doador.

 

Esse dever também não resulta do sentido (Sinn) e escopo (Zweck) da norma, afirmou a Corte. Exigir que o doador fundamente sua declaração de revogação seria criar um requisito formal que a própria lei não instituiu.

 

Ademais, disse o BGH, uma interpretação sistemática revela que o Código Civil alemão não exige fundamentação em hipóteses semelhantes, como na denúncia de relações obrigacionais duradouras por motivo relevante (Kündigung aus wichtigen Grund).

 

Com efeito, no contrato de prestação de serviço (Dienstvertrag), qualquer das partes pode denunciar o contrato a qualquer tempo quando surgem fatos graves que – considerando todas as circunstâncias do caso concreto e ponderando os interesses das partes envolvidas – tornem irrazoável, segundo a boa-fé objetiva (Treu und Glauben), a continuidade do vínculo contratual.

 

Essa é a regra constante do § 626 I BGB, norma especial que disciplina a denúncia extraordinária, sem prazo e por motivo relevante (justa causa), nos contratos de prestação de serviços, a qual se aplica no direito alemão inclusive aos contratos de trabalho[9].

 

Para que a denúncia extraordinária seja feita de forma válida, ela deve ser efetivada dentro do prazo fatal de duas semanas, mediante declaração de vontade, denominada Kündigungserklärung, na qual conste, de forma inequívoca, a vontade do declarante de encerrar imediatamente o contrato. A denúncia feita fora do prazo é inválida.

 

Como deixa claro o inc. 2 do § 626 BGB, a parte denunciante não precisa indicar a causa da denúncia na declaração. Segundo o dispositivo, ela só precisa informar – por escrito e imediatamente – a causa da denúncia se a contraparte assim solicitar[10]. Disso se conclui que a comunicação do motivo do encerramento do contrato não é requisito de validade para a denúncia extraordinária.

 

Para o BGH, a mesma lógica deve ser aplicada aos casos de revogação da doação por ingratidão – para os quais a lei sequer previu um dever de fundamentação a posteriori aos moldes do § 626 II BGB.

 

Isso não significa, porém, que o donatário fique desprotegido pela ordem jurídica. Com efeito, sua tutela se dá quando a lei lhe permite verificar os requisitos materiais de validade do ato de revogação, ou seja, a emissão de declaração inequívoca revogando a liberalidade (§ 530 BGB) e a observância do prazo legal (§ 532 BGB).

 

Além disso, na eventualidade de processo judicial, a lei impõe ao doador o ônus de demonstrar em juízo a existência do suporte fático da ingratidão grosseira, ou seja, a falha grave do donatário (requisito objetivo) e a reprovabilidade da conduta por exprimir a ausência da gratidão que o doador poderia esperar naquela situação (requisito subjetivo). Sem a presença dos elementos caracterizadores do suporte fático da ingratidão, o negócio jurídico não pode ser desfeito.

 

Nesse caso concreto, os autos foram devolvidos à instância inferior para novo julgamento, uma vez que o BGH entendeu que o Tribunal a quo não avaliou adequadamente todas as peculiaridades do caso.

 

Com efeito, o OLG Frankfurt a.M. não analisou se poderia ser considerado falha grave o fato do filho – contra a inequívoca vontade da mãe e das irmãs – ter se apossado indevidamente do documento e averbado o cancelamento do usufruto vitalício no cartório de registro de imóvel.

 

Para o BGH, tendo em vista a vontade clara da mãe de não cancelar naquele momento o usufruto sobre o imóvel e o desejo de que qualquer decisão fosse tomada conjuntamente entre todos os codonatários, o filho não poderia simplesmente usar o documento em prol de seus próprios interesses, prejudicando a donatária com a extinção de seu direito de usufruto vitalício.

 

Ao assim agir, o donatário pôs-se em clara oposição à vontade da doadora, deixando margens para se questionar se não faltara no caso com a devida consideração pelos interesses da doadora, inerentes à gratidão que a ordem jurídica – e moral – espera para com o doador.

 

Epílogo

 

Esse interessante caso de ingratidão do donatário para com o doador mostra a importância de se superar, no direito brasileiro, a estreita visão de que o art. 557 do Código Civil contém um rol exaustivo de hipóteses de revogação da doação. Embora a jurisprudência já venha permitindo, por analogia, o desfazimento da liberalidade nos casos em que o doador é vítima de difamação por parte do donatário, a verdade é que existem uma infinidade de situações de ingratidão que não são abarcadas pelas estreitas hipóteses do art. 557 CC, as quais, em sua maioria, recebem reprovação na esfera civil por configurarem crime na esfera penal.

 

Ler o art. 557 CC como um rol exemplificativo é, sem dúvida, mais consentâneo com a realidade social contemporânea e com a ratio do sistema jurídico, que tem a clara – e legítima – preocupação de proteger o doador. Outra não é a razão pela qual a disciplina legal dos contratos de doação diverge em vários aspectos do padrão geral válido para os demais contratos.

 

É para proteger os interesses do doador que a lei, por exemplo, dificulta a celebração do contrato, exigindo obrigatoriedade de forma (art. 541 CC) e decretando a nulidade da doação universal (art. 548 CC); flexibiliza a força vinculante do pacto, possibilitando a revogação por ingratidão e inexecução do encargo (art. 555 CC), e permitindo a estipulação de cláusula de reversão (art. 547 CC), bem como quando estabelece uma responsabilização atenuada para o doador ao isentá-lo de responsabilidade por evicção, vício redibitório e juros moratórios (art. 552 CC).

 

Julgados como esse mostram de que se faz necessária entre nós uma proteção mais eficaz dos doadores naquelas situações mais delicadas, nas quais a base do negócio é posteriormente subtraída por atos reprováveis de grave ingratidão do donatário. Isso certamente fomentará nos agraciados um grau mais elevado de gratidão e consideração pelos interesses daquele que se empobreceu para beneficiá-los.

 

Fonte: Migalhas

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