Em movimento atualizador das normas pragmáticas do Direito de Família, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº 141, de 16 de Março de 2023, que entrou em vigor no mesmo dia. Por meio da mais recente alteração normativa, o Corregedor Nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, utilizando-se de suas atribuições regimentais, inaugurou uma fase extrajudicial de planejamento familiar muito mais relaxada e livre das amarras e burocracias judiciais.

 

A partir de agora, o termo declaratório de existência ou dissolução de união estável ganhou mais peso, e a alteração extrajudicial de regime de bens, surpreendentemente, recebeu guarida (a qual nos últimos anos vinha sendo bastante requisitada pelos doutrinadores do ramo). De igual modo, a conversão da união estável para o casamento foi realmente facilitada dessa vez, valendo para isso, segundo a redação do Provimento, simples pedido cartorário expresso dos companheiros para o ato. De pronto, inúmeras são as vantagens que o provimento traz.

 

Uma das questões mais efervescentes para a doutrina brasileira, contudo, se encontra em mero parágrafo normativo do texto, cujo conteúdo pode revelar bem mais do que uma regra de cunho material. Segundo a redação do artigo 9º-D, § 4º, “Não se impõe o regime de separação legal de bens, previsto no art. 1.641, inciso I, da Lei no 10.406 de 2002, se superada a causa suspensiva do casamento quando da conversão”.

 

Pelas nuances do trecho, sua base lógico-jurídica pode revelar verdadeiro posicionamento do CNJ em relação ao grande debate da aplicabilidade das causas suspensivas à união estável, estas previstas no artigo 1.523 do Código Civil de 2002 [1]. A orientação que sugere a Corregedoria, por meio de uma leitura transparente do trecho, é a de que a união estável iniciada em meio a causa suspensiva, independentemente da existência ou não de pacto de bens, apenas se converterá em casamento acoplado com o regime da separação caso a causa inicial não tenha desaparecido.

 

O motivo é certo: o momento de verificação das causas suspensivas é, justamente, a conversão para casamento, pois este sim, de acordo com a expressão da lei, apenas pode ser contraído com a imposição da separação legal, em tais casos. Pouco importa a (in)existência de qualquer das causas suspensivas elencadas pelo Código quando do início da união estável. E há várias justificativas para isso.

 

Em primeiro lugar, por mais que muitos doutrinadores e julgadores busquem, incansavelmente, a equiparação total dos dois institutos, união estável e casamento jamais representarão a mesma relação jurídica, e jamais se comportarão, tanto social quanto economicamente, como fenômenos idênticos. Por razões práticas, a união estável não demanda o mesmo formalismo que o casamento, não precisa sequer ser declarada e emana da simples realidade dos fatos, sendo verdadeira situação fática com efeitos jurídicos.

 

O julgamento do RE 878.694 pelo Supremo Tribunal Federal, em 2017, tornou claro o entendimento de que a equiparação da união estável ao casamento deve se operar quando a norma matrimonial encontrar fundamento na solidariedade familiar. Claro, união estável e casamento são, ambas, entidades familiares constitucionalmente reconhecidas e protegidas (artigo 226 da Constituição de 1988). Foi esta, justamente, a razão para igualar os sistemas sucessórios de cônjuge e companheiro, que se justificam em nosso ordenamento pela solidariedade entre familiares. No entanto, a equiparação entre os institutos não é (e nem deve ser) total. Afinal, não há sentido em estimular a conversão se os dois institutos estivessem igualados.

 

As causas suspensivas, por sua vez, têm ratio na relação patrimonial do casal com terceiros, ou seja, resumidamente, encontram raízes na solenidade e publicidade do instituto (na sua ausência, leia-se). Enquanto o matrimônio representa um dos atos jurídicos mais complexos, solenes e públicos de nosso ordenamento, a união estável dispensa movimentos burocráticos. Um casal pode viver em união estável por anos sem nem ao menos declará-la ou registrá-la. A relação com terceiros e sua segurança jurídica variam muito a depender do arranjo familiar, inegavelmente.

 

Segundo os civilistas Gustavo Tepedino e Ana Carolina Brochado Teixeira, “No que se refere às situações jurídicas que decorrem do princípio da solidariedade, os direitos e deveres são os mesmos do casamento; o mesmo não se dá, no entanto, quando se está sob análise situações derivadas da segurança jurídica, pois o casamento é ato jurídico formal e solene, motivo pelo qual gera efeitos que ultrapassam aqueles criados pela relação familiar propriamente dita” [2].

 

As causas suspensivas do casamento impõem o regime de separação legal de bens como forma de se evitar a confusão entre os patrimônios anteriores dos nubentes, os quais podem responder por dívidas em face de terceiros pretéritos ou futuros, com maior segurança de adimplemento.

 

Além disso, recorde-se que por expressa disposição legal, “as causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável” (artigo 1.723, § 2º do Código Civil). As causas suspensivas são situações restritivas de direito, uma vez que obrigam o matrimônio pelo regime da separação e dificultam a circulação de bens e direitos econômicos entre os cônjuges. Por isso, não comportam interpretação extensiva, como se reconhece dos ditames elementares do Direito Civil.

 

Assim, justificativas existem para se restringir a aplicação das causas suspensivas à união estável. Na verdade, como visto, são várias e são enfáticas. Seja como for, a redação do artigo 9º-D, § 4º do novo Provimento do CNJ é cristalina. Qualquer que seja o regime adotado pelas partes, estará ele sujeito a possível mudança a depender do quadro do casal.

 

Imposição, vale dizer, refere-se a algo inédito, à verdadeira alteração obrigatória do regime de bens. Não faria muito sentido em se referir à imposição de um regime que já vigorasse entre os companheiros. Se as causas suspensivas realmente se aplicassem à união estável, a convivência seria desde o início regida pela separação de bens, e, no ato da conversão para o casamento, o regime não seria imposto, mas sim mantido, preservado, perpetuado, etc.

 

A contrario sensu, se superada a causa suspensiva antes de realizada a conversão, não haverá imposição do regime legal, pela obviedade de a norma do Código Civil não ser mais aplicável.

 

O termo “impõe” não foi empregado à toa. Leva à inevitável interpretação de que antes da conversão em casamento, os companheiros podem adotar qualquer regime de bens.

 

Realmente, o debate ainda não se apaziguará. Entretanto, com o inédito Provimento do CNJ, fato é que novos rumos podem ser traçados pelos operadores do Direito, de forma a finalmente sedimentar a imprestabilidade das causas suspensivas em matéria de união estável.

 

 

[1] Art. 1.523. Não devem casar: I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.

 

[2] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos de Direito Civil, Vol. VI, Direito de Família; 2 ed.; Rio de Janeiro; Forense; p. 179.

 

Fonte: Conjur

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