Muitas cidades no mundo vivenciaram o abandono dos seus centros originais com a migração dos habitantes e de investimentos para áreas urbanas periféricas.

 

No Brasil o processo foi ainda mais dramático. Ao longo dos últimos 50 anos surgiram verdadeiras zonas de deterioração e abandono imobiliário nos centros urbanos. Vários desses processos decorreram de zoneamentos e limitações legais que restringiram os imóveis a usos comerciais ou para prestação de serviços. Mas os reais fatores que levaram ao cenário atual foram: (1) a mercantilização do solo urbano, com estímulo à aquisição de novas habitações e unidades comerciais qualificadas; (2) a especulação imobiliária — que comprou áreas nas regiões periféricas a preços baixos, depois requalificadas por investimentos públicos municipais e revendidas a preços elevados (“mais valia”); (3) e os modelos rodoviários típicos do “american way of life”, que incentivaram o deslocamento diário das classes abastadas ou mesmo as classes médias para bairros mais afastados usando carros sonorizados nas autopistas.

 

Agora, em 2023, a pandemia de Covid-19 ampliou e aprofundou o esvaziamento dos centros urbanos em todo mundo e, sobretudo, no Brasil, recrudescendo o erro histórico das legislações e das políticas administrativas urbanas, cabaladas ou não pelas cirandas imobiliárias e rodoviárias.

 

Os esforços em favor da diversidade de ocupações e de usos imobiliários em todas as regiões da cidade (principalmente nos centros urbanos) emergem como um dos desafios cruciais do urbanismo contemporâneo, sobretudo para melhorar a ambiência e a qualidade de vida em regiões degradadas. Revisões urbanísticas usando novas tecnologias como “Lean”, “Design Thinking” e OPBP; isenções condicionais de IPTU ou de ITBI; financiamentos imobiliários especiais; incentivos e compensações urbanísticas — como nos programas conhecidos como “Reviver Centro” ou projetos de revitalização urbana (como no bem-sucedido caso das “Olimpíadas de Barcelona”) são mecanismos legais, administrativos, financeiros e fiscais importantes, que vêm se destacando nesse novo contexto.

 

Contudo, mesmo estas iniciativas parecem não ser suficientes para reverter o longo e profundo processo de deterioração das áreas centrais e de ocupação mais antiga das cidades, sobretudo em relação a imóveis abandonados pelos proprietários — pois muitos deles aguardam a ruína dos prédios e edificações para fugirem de restrições edilícias destinadas a proteger e preservar suas características históricas ou culturais.

 

Sobre este tema específico, é preciso destacar que o Brasil conhece há muito um instrumento legal específico para a arrecadação e apropriação pública de imóveis abandonados, previsto no desde o Código Civil de 1916[1]. Porém, nunca foi implementado na prática.

 

No Código Civil de 1916, a competência legal para arrecadação de imóveis abandonados estava determinada em favor dos Estados, fazendo coro com a ideia de transferência do controle da posse (regularização fundiária sobre áreas públicas) pelos “Estados-membros”, como definido pela Constituição da “República Oligárquica” de 1891. Mas os Estados nunca avançaram na regulação do instrumento e na sua efetivação.

 

De fato, existiam alguns entraves que tais como: o tempo longo (dez anos) para caracterização do abandono e a falta de elementos objetivos para caracterizar tal situação, o que somavam ao velho patrimonialismo brasileiro, superprotetor da propriedade e da posse contra o interesse coletivo.

 

Com o Código Civil de 2002 o poder-dever de arrecadar bens imóveis abandonados foi finalmente transferido para os municípios, em consonância com o preceito constitucional de atribuiu expressamente aos Municípios a competência para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (artigo 30, VIII da Constituição de 1988). E vai além, permitindo também a arrecadação de imóveis rurais pelas municipalidades brasileiras.

 

O tempo para caracterização do abandono foi reduzido para três anos e, mais importante, criou-se uma presunção absoluta da intenção de abandonar o bem imóvel na hipótese em que “cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais” (artigo 1.276, caput e §2º [2]).

 

Cumpre frisar que a caracterização da volição do titular do domínio pode ser verificada por outros meios, mesmo quando não haja a presunção decorrente da “reiterada inadimplência”.

 

Contudo, apesar dos avanços, o Código Civil de 2002 ainda não havia fixado claramente a competência administrativa autoexecutória do Poder Executivo Municipal para os procedimentos de arrecadação e de apropriação dos imóveis abandonados. Esta dúvida acabou servindo de esteio para a tradicional indiferença ou lentidão dos gestores locais na implementação de medidas para efetivação da já vetusta “arrecadação de imóveis abandonados”.

 

Apesar de  já ser possível extrair a autoexecutoriedade administrativa da redação original do Código Civil, ela se tornou inequívoca após a edição os artigos 64 e 65 da Lei Federal nº 13.465/2017[3].

 

O novo diploma legal foi dedicado a diversas normas gerais de urbanismo e meio ambiente urbano e não previu apenas os procedimentos administrativos de arrecadação e transferência para o patrimônio do ente municipal, mas também medidas acauteladoras para a imediata preservação e promoção do imóvel abandonado, devendo o ente local valer-se de recursos próprios ou de terceiros para tais finalidades.

 

Apesar dos evidentes progressos legislativos dos últimos 20 anos, foram tímidos os avanços das administrações locais no desenvolvimento de projetos e programas de arrecadação de imóveis abandonados[4].

 

Algumas cidades (como Porto Alegre e Salvador) vinham adotando medidas pioneiras para arrecadação de imóveis por meio de suas procuradorias municipais. Mesmo assim os resultados eram restritos, pois excluíam os imóveis invadidos (nos quais terceiros — e não os proprietários — exerciam posse) e, também, aqueles cujos proprietários quitavam ou parcelavam os tributos fundiários inadimplidos por vários anos “afastando a presunção de abandono”, logo após a notificação do início do processo de arrecadação.

 

Ainda que estas duas situações (posse de terceiros sobre imóvel abandonado-invadido e pagamento extemporâneo do IPTU após notificação) possam ser desconsideradas para que se mantenha o reconhecimento da situação de abandono do imóvel pelo proprietário, certo é que elas vêm reconhecidas pelas duas municipalidades referidas como impedimentos à arrecadação.

 

Agora, o Rio de Janeiro edita o Decreto Municipal nº 53.306/2023, com a promessa de efetivar e acelerar os procedimentos de arrecadação de imóveis abandonados, dentro do esforço de recuperação do centro antigo da capital carioca[5].

 

Segundo a normativa, a iniciativa dos procedimentos poderá se dar a partir de distintas secretarias municipais, visando a dinamizar a arrecadação de imóveis abandonados, recuperando imediatamente a sua habitabilidade, destinando-os a finalidades econômicas e sociais de interesse das coletividades locais.

 

Uma vez notificado o proprietário e não respondida em 30 dias, restará caracterizada a concordância com a arrecadação, devendo ser arrecadado como bem vago mediante publicação de decreto do prefeito.

 

Espera-se que, agora, os sucessivos entraves e desinteresses administrativos pelos imóveis abandonados seja definitivamente superada, trazendo-os de volta à vida urbana, com o melhor aproveitamento possível para os interesses da coletividade local, recuperando áreas centrais degradadas, sua memória de história e cultura.

 

Fonte: Conjur

Deixe um comentário