I – Uma possível introdução
Um dos versos mais declamados em língua portuguesa, inclusive por quem não é afeto à leitura de poemas, “navegar é preciso, viver não é preciso”, faz parte de um dos muitos sonetos do genial Fernando Pessoa.
Nascido em Lisboa no ano de 1888, no Largo do Teatro de São Carlos, Pessoa se é sem dúvida um dos mais aclamados poetas do mundo lusófono. Notabilizou-se por seus heterônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis etc e até hoje é leitura obrigatória nas escolas não só pela beleza e qualidade de seus versos, mas pela riqueza de detalhes históricos que sua obra contém.
Para sermos honesto, a frase não é de autoria de Fernando Pessoa. Plutarco, que viveu no Século I antes de Cristo, atribui a frase ao general romano Gnaeus Pompeius Magnus1 (navigare necesse, vivere non est necesse) que a teria proferido a frase quando embarcava para Roma com grãos essenciais à alimentação do povo e uma tormenta se abateu sobre a frota.
Evidentemente, diante da situação em que a frase é mencionada, “preciso” só pode ter um significado, que é necessário. Navegar é necessário para que os grãos cheguem ao povo romano.
Por mais encantadora que seja uma outra possível leitura pela qual os portugueses, conhecedores exímios dos mares (assim como eram os romanos com relação ao mar Mediterrâneo que chamavam de mare nostrum) achariam a navegação precisa por ser certa, exata, sem erros, sem surpresas; enquanto a vida, ao contrário, é sempre imprevisível e cheia de intempéries, não é esse o sentido do adjetivo na poesia de Pessoa.
O poeta afirma que “Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero orna-la grande”. Logo, a ideia não era de precisão, de certeza. Não se tratava de precisão matemática e sim de uma necessidade.
Reformar o Código Civil é preciso, necessário, por força das inúmeras mudanças que o mundo e em especial o Direito passou nesses últimos 20 anos. A necessidade de incorporação das mudanças que o direito pessoal de família sofreu é realmente óbvia. Se lermos o direito pessoal de família e a intepretação dos Tribunais, vê-se que a lei não está, nem de perto, refletida na leitura jurisprudencial.
A questão das novas tecnologias e seus efeitos para o direito das obrigações não poderiam deixar de ser incorporadas aos sistemas. Aliás, a tão falada herança digital é tema que compete ao Código Civil tratar.
Agora, se sobra necessidade, problema temos com a precisão no sentido de exatidão. O desafio da Comissão, da qual honrosamente faço parte, é se desincumbir do ônus de alterar a lei espetacularmente pensada por Juristas simplesmente geniais, com precisão, exatidão, para que o sistema seja aprimorado.
II – Os vícios redibitórios na reforma do CC
Vejamos o texto atual e o sugerido pela subcomissão de contratos.
- Art. 441 do CC
O primeiro ponto que se nota é que o projeto opta por utilizar “vício oculto” no texto da lei e não “redibitório” como está no título da Seção V. Faz bem. Redibição é um efeito do vício oculto, mas não o único já que, ao invés de se devolver a coisa (recebendo o valor eventualmente pago de volta), o adquirente pode optar pelo abatimento do preço (ação estimatória ou quanti minoris).
Suprime-se a palavra defeito, pois era redundante. Se há defeito, há vício e se há vício é porque há defeito. Utiliza-se a expressão “obrigação de garantia” e esta menção não gera nenhum efeito prático. Nada muda por ser uma obrigação de garantia. Contudo, também não prejudica em nada a lógica do sistema.
Há uma alteração de alcance da norma, pois o Código Civil determina sua aplicação às doações onerosas sendo que a reforma restringe às doações com encargo. Mas há outras doações onerosas que não a doação com encargo? Sim, as doações remuneratórias, as doações em contemplação do merecimento do donatário (art. 540 do CC), por exemplo, são onerosas, mas não contém encargo.
O parágrafo 2º assim menciona: “A transferência do bem pode referir-se à posse”. A regra é também não é imprescindível, mas não prejudica o sistema. Dá clareza para contratos comutativos como a locação em que somente a posse é transferida.
O parágrafo § 3º determina que “Os vícios ocultos de que trata o caput já devem ser existentes, mas não manifestados ao tempo da aquisição”. Perfeita a regra. Decorre da própria definição de vício oculto e de sua distinção para vício aparente. Se o vício se manifestou, oculto não é.
- Art. 441 – A
O artigo é uma inovação. Tem a seguinte redação:
“Art. 441-A. O transmitente não será responsável por qualquer vício do bem se, no momento da conclusão do contrato, o comprador sabia ou não podia ignorar a sua existência, consideradas as circunstâncias do negócio no momento da aquisição.
Parágrafo único. Se a identificação do vício demandar preparação científica ou técnica, deve-se levar em consideração se, diante da qualificação do adquirente, de sua atividade profissional, ou da natureza do negócio, era seu ônus buscar elementos técnicos que permitissem aferir a presença ou não de vícios”.
O dispositivo segue com a distinção entre vício aparente e vício oculto. Será aparente o vício se o adquirente sabia da existência (foi informado pelo alienante ou um terceiro, por exemplo) ou deveria saber (por exemplo o preço do bem é tão ínfimo que só pode ter um defeito).
O termo adquirente é preferível a comprador.
Novamente, o parágrafo mostra que o standard do “homem médio” não é sempre o utilizado para a distinção entre vício oculto e aparente. Um mecânico que compra um carro, um veterinário que compra um animal, um dentista que compra objetos de uso profissional etc. Aqui temos uma situação de qualificação do adquirente que exige dele maior cuidado na celebração do contrato comutativo. Eu chamaria de adquirente qualificado em razão de seus conhecimentos.
Não se trata mais de um adquirente “em abstrato”, mas sim em concreto.
- b) Art. 442
Vamos novamente comparar a redação atual e a sugerida.
Além das tradicionais alternativas (redibição ou abatimento do preço), a subcomissão sugere que o adquirente (melhor dizer adquirente que comprador) possa exigir do alienante as despesas que teve com o reparo do vício, salvo se o último se propuser a realizar os reparos. A regra sugerida é positiva. O alienante tem a opção, a escolha, de reparar o vício (ele mesmo ou terceiros por suas expensas). Se não fizer, o adquirente o fará e terá direito ao reembolso (direito restitutório). O prazo prescricional da pretensão de restituição será aquele previsto na Parte Geral para o enriquecimento sem causa (atualmente de 3 anos).
Nos moldes do CDC, se o alienante tiver que fazer os reparos, há um prazo de 30 dias para tanto. Decorrido tal prazo sem que o reparo tenha ocorrido, poderá o adquirente exigir o abatimento do preço ou a redibição.
Questão interessante se coloca. O adquirente pode se valer desde logo da ação redibitória ou da quanti minoris (incisos I e II do projetado artigo 442) ou tem o direito suspenso até que decorram os 30 dias previstos no inciso III? A regra projetada é clara. O adquirente tem uma de três opções: i) redibição; ii) abatimento do preço; e iii) exigir o saneamento do vício. Não há, como no CDC, um direito do alienante de sanar o vício do bem.
O adquirente, que pela redação atual do Código Civil tinha duas alternativas, passa a ter três. Logo, o parágrafo único projetado se refere apenas ao inciso III e não aos demais.
Por fim, a subcomissão não condicionou a redibição ou o abatimento à extensão do vício ou à redução do valor da coisa. Sendo pequeno ou grande o vício, o adquirente pode optar por qualquer dos direitos que lhe confere o artigo 442. Gosto da solução. Sempre defendi que o direito do adquirente era potestativo e incondicionado. Aqui a lei afasta a ideia de primazia da conservação do negócio jurídico (pelo abatimento do preço) e permite a extinção (em o adquirente utilizando a ação redibitória).
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1 Aquele que ao lado de Crasso e Julio Cesar foi triúnviro, posteriormente inimigo capital de Cesar e que acaba sendo morto no Egito por ordens do Faraó Ptolomeu XIII.
Fonte: Migalhas
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