A questão da dissonância entre o senso comum e o discurso científico não é propriamente nova, tendo sido apontado já por Weber que o ser humano moderno domina muito menos a técnica presente em seu cotidiano do que seus antepassados, surgindo verdadeira crença na tecnologia, sem que se saiba exatamente como ela funciona1, donde crenças infundadas tenderiam a proliferar na sociedade atual.

 

A tensão, contudo, chegou a um nível dramático mais recentemente, e, para o que aqui nos importa, trafega diuturnamente, inclusive nos meios de informação, quando o assunto é “cartórios”.

 

Especificamente, em qualquer debate a respeito do tema, um questionamento inevitavelmente acaba surgindo: Por que o serviço cartorial seria, supostamente, tão caro?

 

Como um típico caso de dissonância entre o senso comum e a literatura científica, esse questionamento vem sendo superado pela pesquisa especializada já há algum tempo.

 

Em estudo feito há mais de década, o professor da Universidade de Harvard, Peter Murray, e o professor da Universidade de Friburgo, Rolf Stürner, compararam os custos das transações imobiliárias em 5 países da Europa (Alemanha, França, Inglaterra, Suécia e Estônia) e em 2 estados norte-americanos (Maine e Nova York), concluindo que, em relação aos custos diretos, ou seja, aqueles derivados imediatamente da própria transação, “it appears that transaction costs are not directly linked to particular systems” 2, ou seja, um sistema poderia ser caro ou barato tanto com a intervenção notarial (relativamente caro para a França e barato para a Estônia), como sem ela (caro para a Inglaterra e relativamente barato para o Maine), apontando, contudo, que “the two jurisdictions with the lowest transaction costs were Estonia and Germany. Transaction cost levels in the less regulated common law jurisdiction of England and the United States, as well as imputated transaction costs in Sweden tended to be significantly heigher”. 3

 

Com isso, cai por terra um primeiro pensamento bastante difundido no senso comum segundo o qual, se não houvesse notários – e a obrigatoriedade de escrituras públicas -, os custos seriam naturalmente menores, por supostamente poderem ser livremente negociados pelas partes de acordo com suas necessidades.

 

O que se observa, na verdade, é que a função de dar segurança às transações de maior vulto acaba sendo absorvida por algum outro tipo de profissional com conhecimento especializado – como se verificou justamente nos países com os custos mais altos -, o qual, na falta de uma regulamentação estatal, tende a estabelecer um preço ainda maior do que aquele presente nos sistemas notariais.

 

De fato, como concluído pelos autores citados, “the total absence of regulation over an activity such as real estate conveyancing, (…) would be likely to lead to oligopolistic practices and a serious exploitation of relatively defenseless customers.” 4

 

Para além do preço menor, o que já seria suficiente para afastar críticas mais simplistas, a intervenção notarial, segundo o estudo citado, parece aportar benefícios que transbordam a relação individual, naquilo que a literatura econômica chamaria de “externalidade positiva”, 5 agindo, sobretudo, sobre os mais vulneráveis.

 

Nesse sentido, “the cost of the level of uncertainty and dispute that results in litigation is not only pure financial. A degree of legal certainty is a goal in almost every legal transaction. If either a party is uncertain about his rights or obligations after a transaction is concluded, that party has not received full benefit of the transaction. Uncertainty undermines the planning and execution of post transaction undertakings, such as building, development, or financing. Uncertainty is also a psychological burden, that can become acute if it matures into litigation. And the social cost of litigation on the settled expectations and psychological harmony of parties is well known.” 6

 

Ora, justamente a tradição do sistema notarial latino seria promover a garantia da segurança, inclusive psicológica, dos menos favorecidos na transação. “This tradition bespeaks a solicitude for the psychology as well as the legal position of individuals who may seldom be involved with legal transactions. A party to a notarial transaction need not feel insecurity on account of the superior experience or economic power of the party on the other side, but is entitled to the same attention, advice and support from the notary as are all transaction participants, whether buyer, seller or bank.” 7

 

Essa relação de proteção da parte menos favorecida com o sistema notarial foi também especialmente estudada após a crise do subprime americana de 2008, quando o relatório final sobre as causas da crise produzido pela Comissão Especial do governo americano para tratar sobre o tema conclui haver diversas irregularidades na produção da documentação e instrução aos consumidores por parte das empresas de financiamento, “for example, lenders have relied on ‘robo-signers’ who substituted speed for accuracy by signing, and sometimes backdating, hundreds of affidavits, claiming personal knowledge of facts about mortgages that they did not actually know to be true”. 8

 

Não à toa, o prêmio Nobel de economia, Robert Shiller, em seu livro sobre a crise, chega a citar como uma das soluções para evitar sua repetição em solo americano o sistema do notariado latino, elencado “another possible default option would be a requirement that every mortgage borrower have the assistance of a professional akin to a civil law notary. Such notaries practice in many countries, although not in the United States. In Germany, for example, the civil law notary is a trained legal professional who reads aloud and interprets the contract and provides legal advice to both parties before witnessing their signatures. This approach particularly benefits those who fail to obtain competent and objective legal advice. The participation of such a government-appointed figure in the mortgage lending process would make it more difficult for unscrupulous mortgage lenders to steer their clients toward sympathetic lawyers, who would not adequately warn the clients of the dangers they could be facing.” 9

 

Ademais, economicamente, a ligação do documento notarial com a segurança preventiva, evitando a litigância, foi objeto de estudo há quase 30 anos, pelo Catedrático de Economia, e diretor do Instituto de Direito e Economia da Universidade Carlos III de Madri, Santos Pastor Prieto, que concluiu que “el examen de la evidencia empírica ha permitido confirmar en un grado razonable – ajustado a la calidad de la información disponible – las proposiciones básicas del trabajo sobre la relación entre litigiosidad e instrumentos notariales. Tanto la actividad notarial como la litigiosidad han crecido, pero más el número de instrumentos que el de los pleitos. La tasa de litigiosidad, esto es, el porcentaje que representan los litigios en relación a los instrumentos totales (.) ha ido decreciendo paulatinamente, desde el 25% en 1960 al 12% en 1989. Más aún, dicha tasa de litigiosidad desciende a medida que aumenta la actividad notarial a lo largo del citado período. La litigiosidad civil ha crecido más en las materias no intervenidas por los notarios que en aquellas otras donde sí intervienen.” 10

 

Ora, em virtude de todos os estudos citados, não deixa de ser curioso11 que o relatório “Doing Business” do Banco Mundial tenha chegado a conclusões exatamente opostas, colocando muitas vezes países que possuíam a intervenção notarial na transação imobiliária como supostamente ineficientes em tal seara e recomendando a utilização do notariado apenas de forma opcional.

 

No Brasil, o referido relatório é apontado por Patrícia Ferraz como o grande impulsionador das reformas do sistema registral – e consequentemente notarial12 – que tomaram rumo durante o Governo anterior, citando Patrícia que “embora o relatório fosse metodologicamente deficiente, (…) é fato que ele servia de referência para alocação de investimentos em todo o mundo, de modo que era estrategicamente importante que o Brasil não desse as costas para esse trabalho e agisse para melhorar sua posição no questionável ranking. (…) Tão importante e tão estratégico que, em setembro de 2017, a Secretaria de Governo da Presidência da República realizou, em Brasília, workshops que tiveram como tema a ‘Melhoria do Ambiente de Negócios 2017’, dos quais um foi dedicado aos serviços registrais e notariais, tendo como foco o registro de propriedades, subtema do relatório no qual o Brasil figurava em péssima colocação”. 13

 

Da mesma forma, comentando o contexto das reformas legislativas de então, Fábio Rocha Pinto e Silva informa que “Diversas medidas foram adotadas, na lei 14.382/22, com a finalidade de aumentar a eficiência do registro, em muitos casos sob influência direta de reformas fomentadas pelo Banco Mundial”. 14

 

Pois bem, ao que tudo indica, os próprios números do relatório doing business seriam suficientes para a defesa do notariado.

 

De fato, analisando os dados de todos os 190 países pesquisados pelo Banco Mundial, Antonio Cappiello percebeu que “the quality of the transfer is much higher and less expensive if on civil law notary control.”. Ainda mais, “Another consideration can be made on the gap between the procedures and time indicators: the most evident gap is on the time. This surely means that the transfer is faster in the civil law notaries countries cluster. If we consider that the indicator on the procedures presents a less evident gap, this mean that in average each procedure is completed quickly. Moreover, considering the possible distortion coming for the implication of the methodology on the calculation of time and procedures (.), a more faithful representation of the reality by these indicators would probably enhance further the important legal control made by highly qualified legal experts (notaries) completing many checks (procedures) faster than systems which do not adopt civil law notaries.” 15

 

Assim, separando os países analisados pelo doing business em dois grupos, segundo a existência ou não de intervenção notarial na transmissão imobiliária, Cappiello observou que os países que contam com a intervenção notarial receberam melhores notas, em todos os critérios analisados pelo relatório, quais sejam, velocidade, qualidade, número de procedimentos e custos, se analisados em conjunto, em comparação aos países sem intervenção notarial.

 

Essas conclusões apenas destoariam no caso de países com renda per capta acima de 45 mil dólares e população abaixo de dez milhões de habitantes, o que, além de representar menos de 7% do todo analisado, ainda faz ressaltar a importância da intervenção notarial para países em desenvolvimento, o que o autor associa a um contexto social mais complexo: “This is to say that the role of notaries is surely helping in the majority of the economies to reach the World Bank above mentioned objectives, especially where the legal certainty is ensured in a preventive way, and avoids inconveniences for all the connected sectors of the country system (e.g. alleviating the burden of tribunals and reducing the costs and damages for the citizens and economic operators). Moreover, in the case of countries with more evident unbalances and information asymmetries among agents involved in the transactions, notaries represent an indispensable guidance and guarantee to overcome cultural barriers and support and guarantee the vulnerable parties.” 16

 

Em suma, esse recente estudo demonstra, com os dados do próprio relatório doing business, justamente aquilo que os estudos anteriores já comprovavam: É uma grande ilusão achar que a eliminação do sistema notarial tout court possa levar ao desenvolvimento espontâneo de uma alternativa de mercado mais eficiente17. Ao contrário, o que se tem demonstrado por uma análise fria dos dados é justamente a eficiência do modelo notarial frente às alternativas existentes no mundo real – e não num idílico sonho de mercado sem custos de transação.

 

Nesses termos, mesmo instituições sérias e reconhecidas acabaram por produzir recomendações com base no senso comum e contrárias à literatura científica. Mas ao menos no que a literatura econômica especializada tem produzido até o momento, tem-se cada vez mais reforçada a função notarial em todos os seus aspectos, inclusive, sob a ótica de sua eficiência econômica.

 

E é um pouco sobre essa eficiência, e, em especial, sobre os “custos” que circulam a escritura pública que se pretende tratar.

 

__________

 

1 WEBER, M. Ciência e política: Duas vocações. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martin Claret, 2015. p. 27.

 

2 MURRAY, P.; STURNER, R. The Civil Law Notary: Neutral Lawyer for the situation. A comparative study on Preventative Justice in modern societies. Munique: C.H. Beck, 2010. p. 150

 

3 Idem, ibidem. 151.

 

4 Idem, ibidem, p. 150-151

 

5 O tema já havia sido tratado no Brasil sob o viés jurídico por Celso Fernandes Campilongo em CAMPILONGO, C. F. Função social do notariado: eficiência, confiança e imparcialidade. São Paulo: Saraiva, 2014., Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem em  A raposa e o galinheiro: a MP 1.085/2021 e os riscos ao consumidor. 02.05.2022. Disponível em https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-raposa-e-o-galinheiro-a-mp-1-085-2021-e-os-riscos-ao-consumidor/ . Acesso em 22.08.2023. E Gustavo Tepedino em TEPEDINO, G. O papel do tabelião no ordenamento jurídico brasileiro e a interpretação do art. 38 da Lei 9.514/97. (parecer). Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 1, n. 2, jul-dez/2012. Todos eles, contudo, sem adentrar nos aspectos econômicos.

 

6 MURRAY, P.; STÜRNER, R. op. cit. p. 153.

 

7 Idem, ibidem, p. 160.

 

8 V. Financial Crisis Inquiry Comission of the United States of America. The Financial Crisis Inquiry Final Report. Official Government edition. Jan. 2011. p. 407.

 

9 V. SCHILLER, R. P. The Subprime Solution: how today’s global financial crisis happened, and what to do about it. Princeton: Princeton University Press. p. 134. A mesma possibilidade de intervenção notarial nas transações econômicas de empréstimo com garantia foi elogiada pelo já citado Peter Murray em French notaries and the american mortgage crisis. Fev. 2012. Disponível aqui. Acesso em 08.12.2023.

 

10 PRIETO, S; P. Intervención notarial y litigiosidade civil Madrid: Consejo General del Notariado, 1995. p. 76

 

11 Ou talvez nem tanto, tendo em vista os graves problemas de metodologia e orientação deliberada recentemente revelados sobre o estudo. V. “Chefe do FM é acusada de turbinar China em ranking de negócios do Banco Mundial”. Folha de São Paulo, 16.09.2021. Disponível aqui, acesso em 04.12.2023. Ainda, “Revisão externa encontra problemas mais profundos em relatório ‘Doing Business’ do Banco Mundial”. G1. 20.09.2021. Disponível aqui. Acesso em 04.12.2023. E a própria posição do órgão que decidiu descontinuar seu relatório aqui. Acesso em 04.12.2023.

 

12 Pense-se, por exemplo, no extrato para o envio de títulos ao registro de imóveis. Embora afeito ao tema do registro, por óbvio, influencia diretamente a função dos notários. Sobre o tema, seja consentido citar o nosso KASSAMA, A. Extratos notariais e ‘privados’ na Lei 14.382/2022: uma análise segundo os princípios do sistema registral imobiliário. In: NALINI, J. R. (Org.) Sistema Eletrônico de Registros Públicos: comentado por notários ,registradores, magistrados e profissionais. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 17-34.

 

13 In: ABELHA, A.; CHALHUB, M.; VITALE, O. (Orgs.) Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Lei 14.382, de 27 de junho de 2022 comentada e comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 15

 

14 In: ABELHA, A.; CHALHUB, M.; VITALE, O. op. Cit. p. 7.

 

15 CAPPIELLO, A. Doing Business Report and Real Estate Transfers: Far better with legal controls and notarial guarantee. In: European Xtramile Centre of African Studies. 2020. p. 6-7.

 

16 Idem, ibidem.

 

17 No Brasil, o tema pode ser bem captado pela celeuma em idos de 2016 sobre a famosa “taxa Sati”, “Taxa do Serviço de Assessoria Técnico-imobiliária”, cobrada então pelas incorporadas para a instrumentalização dos contratos particulares. Referida taxa tinha por padrão de mercado a sua fixação em 0,85% do valor da transação, de modo que, considerado o valor da unidade padrão imobiliária na cidade de São Paulo, ter-se-ia a cobrança de valores maiores do que aqueles relativos à remuneração do notário na tabela paulista (desconsiderados os repasses a instituições públicas várias, que, acaso não existissem nas tabelas, acabariam inevitavelmente invocando um problema de financiamento público para toda a população).

 

Fonte: Migalhas

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