Em 2023, um jornal brasileiro divulgou que aproximadamente 60% dos imóveis no Brasil apresentam irregularidades – a mais comum é a falta de escritura –, dado este apurado pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Trata-se de estatística alarmante, uma vez que mais da metade dos imóveis do país não possui registro atualizado a respeito de (i) quem seja o proprietário e (ii) de operações que envolvam esses bens (compra e venda, doação, cessão de direitos, permuta etc.). Há, inclusive, imóveis que nem sequer possuem registro.
Uma das justificativas desse fenômeno é a aquisição irregular de imóveis (urbanos e rurais) por meio dos afamados “contratos de gaveta”: pelo instrumento particular, vendedor e comprador acreditam ter formalizado o negócio jurídico, e deixam o documento “engavetado”, sem dar-lhe a publicidade que o instituto jurídico da propriedade – na qualidade de direito real oponível erga omnes – exige.
Seja pela desinformação, seja pela descrença em lidar com burocracias, fato é que muitas pessoas adquirem imóveis sem observar: se ele possui registro; caso possua, se a área delimitada está correta; se o vendedor é de fato proprietário e possui legitimidade para dispor do bem; a necessidade de lavrar escritura pública caso o valor do imóvel supere trinta salários-mínimos; e a essencialidade de registrar na matrícula do imóvel a operação realizada, em conformidade ao artigo 1.245 do Código Civil (a máxima “só é dono quem registra” nos ensina).
É inegável, porém, que os emolumentos cartorários e impostos como o ITBI e ITCMD traduzem elevada despesa, situação que torna a aquisição irregular mais atrativa, tanto pela menor onerosidade, como também pela sua simplicidade.
Todavia, esses atributos mascaram graves riscos.
O principal está relacionado aos credores do proprietário formal na matrícula do imóvel — que vendeu a um terceiro via contrato de gaveta —, que poderão, via processo judicial, penhorar o imóvel, e até levá-lo a hasta pública. Outro risco a ser citado é de o proprietário formal na matrícula do imóvel, imbuído de má-fé, transferir o bem a terceiro quando outro alguém já havia adquirido-o anteriormente, ainda que irregularmente. O “cardápio” de problemas que a irregularidade no registro dos imóveis traz é infindável.
Uma das soluções é, sem dúvidas, lavrar escritura pública de compra e venda do bem que está sendo adquirido (nas ocasiões descritas pelo artigo 108 do Código Civil) com o proprietário, e levá-la a registro no cartório competente. Todavia, essa saída não pode atender a todos, pois há situações em que: o proprietário é desconhecido ou já faleceu; o imóvel foi adquirido de pessoa jurídica agora extinta; houve perda ou extravio do contrato de compra e venda particular; entre inúmeras outras intercorrências.
Nessas ocasiões em que o registro da propriedade seja inviabilizado, e a insuficiência de provas hábeis a comprovar a aquisição do imóvel seja empecilho até mesmo para o ajuizamento de adjudicação compulsória, o processo de usucapião pode ser via utilitária.
Foi o que entendeu, recentemente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no julgamento da Apelação autuada sob o n. 5001268-92.2020.8.24.0055, publicado em 22/02/2024.
No caso posto sob julgamento, a autora da ação, no ano de 2000, adquiriu imóvel por meio de contrato particular de compra e venda firmado com os proprietários do bem, que não foi levado a registro à época. Anos após, o contrato e os comprovantes de pagamento foram perdidos durante as diversas enchentes ocorridas na região, de sorte que não restou a autora alternativa senão utilizar-se da usucapião para adquirir a propriedade do imóvel e, por conseguinte, regularizá-lo.
O acórdão do TJSC explica que, embora a jurisprudência “entende ser incabível o manejo de ação de usucapião quando o contexto fático ensejador da demanda estiver amparado por compromisso/contrato de compra e venda”, a autora da ação comprovou cumprir os pressupostos para usucapião, quais sejam: posse ininterrupta, mansa, pacífica e sem oposição; com intenção de dono; exercida em tempo superior ao mínimo previsto na lei.
Em arremate, o aresto conclui que os “tribunais mais recentemente têm flexibilizado essa inviabilidade quando a almejada usucapião […] fundamentar-se na dificuldade de regularização da questão pela via administrativa”.
Para além da ausência de documento hábil que dificulte a transferência da propriedade pela via administrativa; outra celeuma enfrentada é a inexistência de matrícula do imóvel adquirido, ou quando o bem integra uma área maior já inserida noutra matrícula. Aqui, a usucapião também revela-se útil, pois a sentença proferida em favor do usucapiente é ferramenta eficaz para abertura de nova matrícula junto ao cartório competente.
Conclui-se, desse modo, que a regularização de imóveis no país é medida que urge, pois inúmeros são seus benefícios. Cita-se, por exemplo: a) maior seguridade jurídica aos proprietários; b) redução de eventuais litígios; c) evita-se a desvalorização do imóvel; d) estímulo de práticas sustentáveis e investimentos a longo prazo, que contribuem para o desenvolvimento econômico da região; e) no caso dos imóveis rurais, reduzem-se os conflitos fundiários (comumente violentos) e amplia-se a possibilidade de acesso a crédito agrícola; entre outros.
A usucapião, como visto, revela-se como instrumento vital para a regularização da propriedade, sobretudo àqueles que não conseguem promover o registro da transferência do imóvel na matrícula do bem. Todavia, a eficácia dessa estratégia depende, sobretudo, do competente apoio jurídico, razão pela qual o advogado de sua confiança deve ser consultado.
Fonte: Rota Jurídica
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