Como bem definido pela Constituição de 1988, especificamente em seu artigo 155 I [1], compete aos estados e ao Distrito Federal instituir impostos, dentre outros, sobre a transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens e direitos (ITCMD).

 

Tal dispositivo garante aos entes federados, desde que respeitadas as diretrizes principiológicas impostas pelo texto constitucional e as normas gerais em matéria tributária fornecidas pelo Código Tributário Nacional (CTN). No mais, os estados possuem autonomia para o exercício de sua competência legislativa para dispor sobre as alíquotas (respeitando o limite máximo fixado pelo Senado), prazos e procedimentos para pagamento, dentre outras normas relativas à tributação do fenômeno jurídico das sucessões e das transmissões não onerosas de bens e direitos.

 

Porém, como dito anteriormente, tal autonomia não se manifesta de forma ilimitada. O §1º, do referido artigo 155, por meio de seu inciso III, alíneas “a” e “b” [2], determina que, caso o doador tenha domicílio ou residência no exterior, ou então se o de cujus (falecido) possuía bens, era residente, domiciliado ou teve seu inventário processado fora do país, a cobrança do ITCMD fica na dependência de lei complementar para regulamentar essa exigência.

 

Nestes casos específicos e com a finalidade de evitar disputas entre os estados, a Constituição transfere a responsabilidade para legislar à União, impondo as regras específicas que irão reger o processo de incidência e cobrança do tributo.

 

Em contrapartida, exercendo o racional inverso, caso não editada a referida lei complementar nacional, como ocorre na prática, visto que o diploma jamais foi elaborado, os estados não poderiam exercer sua competência para cobrança do imposto, sob pena de incorrer em flagrante inconstitucionalidade.

 

Lições dos especialistas

Este raciocínio encontra plena validade na melhor doutrina tributária. Para Regina Helena Costa, por exemplo, a “competência tributária é a aptidão para criar tributos, mediante a edição do necessário veículo legislativo (artigo 150, I, CR), indicador de todos os aspectos de sua hipótese de incidência” [3] Ou seja, a edição do veículo legislativo necessário envolve, quase sempre, apenas a lei que estabelece o fato gerador do tributo pelo ente federativo escolhido pela Constituição, porém, na hipótese em exame, a lei estadual deve necessariamente se precedida de lei complementar editada pela União.

 

Portanto, a liberdade que o legislador estadual, no caso do ITCMD, tem para discriminar as hipóteses de exigência do tributo são limitadas, claramente, pelo comando constitucional citado. Quanto a essa limitação da competência tributária, ensina Roque Antonio Carrazza que [4]:

 

“A Constituição, ao discriminar competências tributárias, estabeleceu – ainda que, por vezes, de modo implícito e com certa margem de liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo, a regra-matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à normapadrão de incidência do tributo pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital), enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional. Portanto, o Constituinte estabeleceu, de modo peremptório, alguns enunciados que necessariamente deverão compor as normas jurídicas instituidoras dos tributos. Estes enunciados formam o mínimo necessário (o átomo), de cada tributo. São o ponto de partida inafastável do processo de criação in abstracto dos tributos.”

 

Ocorre que, muitas das vezes, essa não é a interpretação fazendária, que tende a autuar os contribuintes que, de maneira correta, deixam de recolher o ITCMD no cenário descrito, acarretando na judicialização da questão.

 

Iniciativa dos estados e o entendimento do Judiciário

Tendo em vista que a União foi omissa em exercer sua competência legislativa para regular a matéria, os estados poderiam lançar mão de sua competência legislativa plena para suprir suas peculiaridades, nos termos prescritos pelo artigo 24, §3º, da Constituição [5]?

 

O estado de São Paulo, por exemplo, editou a Lei nº 10.705/00, que, em seu artigo 4º [6], determina que o ITCMD também é devido se o doador estiver no exterior ou se a doação ocorrer no exterior, defendendo a exigência do tributo com base neste dispositivo, autuando os contribuintes que não procederem com o recolhimento.

 

Em reação a essa atitude arrecadatória do Fisco Paulista, sabe-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), ao julgar a Arguição de Inconstitucionalidade nos autos nº 0004604-24.2011.8.26.0000, declarou inconstitucional o referido dispositivo legal, consignando que a Constituição determina que essa situação seja regulada por lei de caráter nacional, que exige a edição de lei complementar específica.

 

“O Constituinte atribuiu ao Congresso a instituição, mediante Lei Complementar nacional, do imposto sobre transmissão causa mortis de bens localizados no exterior. Desse modo, inexistindo no ordenamento jurídico norma nacional a regular a matéria, não pode a legislação paulista, sem as balizas de Lei Complementar, exigir mencionado tributo. Os Estados não dispõem de competência tributária para suprir ausência de Lei Complementar exigida pela Magna Carta.

 

A alínea b do inciso III do § 1º do art. 155 da Constituição Federal é exceção às hipóteses previstas nos incisos I e II do mesmo parágrafo. A exceção clarifica a regra. Prescinde de Lei Complementar a instituição do imposto sobre transmissão causa mortis e doação de bens imóveis – e respectivos direitos -, móveis, títulos e créditos de empresas situadas em Estado da Federação. Já as alíneas a e b do inciso III especificam a necessidade de regulação por Lei Complementar para as hipóteses de transmissão de bens imóveis ou móveis, corpóreos ou incorpóreos localizados no exterior, bem como de doador ou de de cujus domiciliados ou residentes fora do país ou no caso de inventário processado no exterior.

 

Com efeito, o que a torna excepcional é a extraterritorialidade do bem, da residência/domicílio do doador/de cujos ou do lugar aonde se processou o inventário.” (TJ-SP. Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível 0004604-24.2011.8.26.0000; Relator (a): Guerrieri Rezende; Órgão Julgador: Órgão Especial; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 8ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 30/03/2011; Data de Registro: 07/04/2011)

 

Não bastam, outrossim, as regras do CTN (artigo 35 e seguintes), pois a norma constitucional impõe, para além da disciplina genérica do ITCMD, a exigência de lei complementar para a regulamentação da incidência nesta hipótese.

 

Neste sentido são as lições Ives Gandra Martins [7], o qual sustenta a necessidade de disciplinar a questão por lei complementar:

 

“A dicção do constituinte pode ensejar dúvidas a respeito do espectro de atuação da lei complementar, visto que se refere ao veículo explicitador da Constituição, no inciso III, não tendo a ele se referido nos incisos I e II, o que justificaria a exegese de que tal matéria seria regulável por lei ordinária e não pela lei supra ordinária mencionada no art. 146 da Constituição Federal. Só à primeira vista o impasse se coloca. Em verdade, os incisos I e II devem ser regrados por lei ordinária, em nível de instituição, visto que a Constituição já ofertou tratamento à matéria, exigindo que o Estado em que se situa o imóvel ou o Distrito Federal tenha a sua competência assegurada, e, nos casos de bens móveis, seja o Estado em que se processar o arrolamento ou o inventário, ou o domicilio fiscal do contribuinte (doação) aquele com o direito à imposição, assim como o Distrito Federal. Em relação às hipóteses do inciso III, o constituinte não se posiciona. Transfere a explicitação constitucional para o legislador complementar.”

 

Da mesma forma, a doutrina de Hugo de Brito Machado [8] reforça que, na ausência da lei complementar, o imposto não pode ser instituído, por força do disposto no artigo 146, III, da Constituição [9].

 

Além dessas posições, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 851.108/SP, afetado ao regime de Repercussão Geral sob o Tema nº 825, cuja observância e aplicação se faz obrigatória pelas instâncias inferiores, fixou a tese no sentido de que “é vedado aos Estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no artigo 155, parágrafo 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional”.

 

Vale ressaltar que, apesar do STF ter modulado os efeitos da decisão em que fixou esta tese, essa modulação se deu por conta do possível impacto financeiro da invalidação de todas as cobranças de ITCMD sustentadas por leis estaduais em todo o Brasil. Assim, atribuíram efeito prospectivo à tese firmada a partir da data do julgamento – março de 2021 – ressalvando ações judiciais em tramitação naquela data [10].

 

Fisco de SP afronta o precedente

E, justamente por conta da modulação de efeitos fixada, não há qualquer razão para que a Fazenda estadual continue entendendo (após 2021) que pode exigir o ITCMD do doador não residente no país ou dos bens do inventário localizados no exterior, em clara afronta ao precedente vinculante do STF.

 

Tais julgados apenas reforçam a tese dos contribuintes pela impossibilidade de cobrança do ITCMD em tal cenário, que vêm obtendo êxito nas discussões judiciais envolvendo o tema.

 

Sabe-se que a jurisprudência do TJ-SP, por exemplo, aplicando a jurisprudência dos Tribunais Superiores, assim como exige a lei, é pacífica no sentido de não permitir autuações deste tipo, por flagrante ausência de lei complementar reguladora. Abaixo, transcreve-se a ementa de um destes recentes julgados:

 

“APELAÇÃO CÍVEL. REMESSA NECESSÁRIA. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. HERANÇA OU LEGADO ADVINDO DO EXTERIOR. PRETENSÃO A NÃO INCIDÊNCIA DO ITCMD. SENTENÇA QUE CONCEDEU A SEGURANÇA, MANTENDO-SE A LIMINAR. IMPOSSIBILIDADE DE REFORMA. Preliminar de rejeição monocrática que se confunde com o mérito. Sobre a possibilidade de os Estados-membros fazerem uso de sua competência legislativa plena (CF, artigo 24, § 3º, e ADCT, artigo 34, § 3º) ante a omissão do legislador nacional em estabelecer as normas gerais pertinentes à competência para instituir o ITCMD sobre transmissão causa mortis e doação de bens e direitos provenientes do exterior, o STF (RE 851.108) definiu a tese segundo a qual é vedado aos estados, enquanto não houver regulamentação por lei complementar, exigir o ITCMD nas hipóteses previstas no artigo 155, § 1º, III, ‘a’ e ‘b’, da Constituição (Tema 825). Pacificada a matéria e ausente lei complementar federal regulamentando-a, não se pode exigir o ITCMD com base na Lei Estadual 10.705/2000 (artigo 4º), reconhecidamente inconstitucional, por isso, pelo Órgão Especial deste eg. Tribunal. Decisão recorrida mantida, portanto. Remessa necessária e recurso voluntário não providos. (TJ-SP;  Apelação / Remessa Necessária 1047533-70.2023.8.26.0053; Relator (a): Camargo Pereira; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 8ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 10/01/2024; Data de Registro: 10/01/2024).

 

Outros casos análogos a esse podem ser observados em abundância no estado de São Paulo. [11]

 

Contudo, mesmo diante de um cenário jurisprudencial tão sólido e claro, a Fazenda do Estado de São Paulo segue com o entendimento de que o ITCMD é devido nestas hipóteses, dando interpretação equivocada ao precedente do STF e ignorando a inconstitucionalidade do artigo 4º da Lei 10.705/2000 declarada pelo TJ-SP. Como exemplo, é paradigmático o entendimento da Sefaz-SP em resposta de consulta recente sobre trust constituído no exterior, apenas com beneficiário residente no estado de São Paulo:

 

“ITCMD – Doação – Trust instituído no exterior – Beneficiário residente no Estado de São Paulo.

 

O ITCMD incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido por doação.

Exceto na hipótese em que a instituição do trust instrumentalize algum pagamento devido ao beneficiário, este passa a ser titular de direito sobre o trust no momento de sua indicação, de forma gratuita e por liberalidade, aperfeiçoando-se a doação.

III. O ITCMD relativo à doação de direitos realizada por doador com domicílio no exterior a donatário residente neste Estado deve ser recolhido ao Estado de São Paulo.” (RESPOSTA À CONSULTA TRIBUTÁRIA 25343/2022, de 31 de março de 2023. Publicada no Diário Eletrônico em 04/04/2023)

 

Nessa importante consulta, o Fisco Paulista deu interpretação própria e, a nosso ver, sem respaldo jurídico para equiparar a distribuição realizada pelo trust à doação, o que já é controverso e inadequado em nossa opinião. Além disso, que haveria incidência do tributo quando o beneficiário do trust fosse residente no Estado, o que absolutamente não consta na norma constitucional pertinente.

 

Conclusão

Portanto, é de suma importância que os contribuintes estejam atentos a tal situação, especialmente para se defenderem de possíveis autuações dessa natureza, as quais padecem de qualquer respaldo legal e jurisprudencial, sendo eivadas de flagrante inconstitucionalidade.

 

Por fim, destaca-se a relevância do cenário para realização de eventuais planejamentos sucessórios, principalmente diante das futuras alterações legislativas que tendem a ser impostas com o advento da atual reforma tributária.

 

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[1]  Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

 

I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;

 

[2] § 1º O imposto previsto no inciso I:

 

III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:

 

  1. a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior;
  2. b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;

[3] Curso de direito tributário: constituição e código tributário nacional. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 70.

 

[4] Curso de direito constitucional tributário. 25a. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 518.

 

[5] Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

 

3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

[6] Artigo 4º – O imposto é devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre que o doador residir ou tiver domicílio no exterior, e, no caso de morte, se o “de cujus” possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país:

 

[7] O Sistema Tributário na Constituição, Saraiva, 6ª edição, pp. 517-519.

 

[8] Curso de Direito Tributário. São Paulo, Malheiros, 2010. p. 376.

 

[9] Art. 146. Cabe à lei complementar:

 

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária (…).

 

[10] Conforme consta no acórdão publicado: “Modulam-se os efeitos da decisão, atribuindo a eles eficácia ex nunc, a contar da publicação do acórdão em questão, ressalvando as ações judiciais pendentes de conclusão até o mesmo momento, nas quais se discuta: (1) a qual estado o contribuinte deve efetuar o pagamento do ITCMD, considerando a ocorrência de bitributação; e (2) a validade da cobrança desse imposto, não tendo sido pago anteriormente.”

 

[11] (TJSP; Apelação Cível 1054089-88.2023.8.26.0053; Relator (a): Carlos von Adamek; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 11ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 12/04/2024; Data de Registro: 12/04/2024); (TJSP;  Apelação / Remessa Necessária 1080919-91.2023.8.26.0053; Relator (a): Vicente de Abreu Amadei; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 16ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 08/05/2024; Data de Registro: 08/05/2024); (TJSP;  Remessa Necessária Cível 1027732-76.2020.8.26.0053; Relator (a): Joel Birello Mandelli; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 7ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 09/04/2024; Data de Registro: 09/04/2024); (TJSP;  Apelação / Remessa Necessária 1082963-83.2023.8.26.0053; Relator (a): Ana Liarte; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 16ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 01/04/2024; Data de Registro: 01/04/2024).

 

Fonte: Conjur

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