Lei 14.879/24 altera eleição de foro no CPC, restringindo-a ao domicílio das partes ou ao local da obrigação, combatendo práticas abusivas

 

  1. A mudança legislativa

 

A promulgação da lei 14.879, de 4/6/24, trouxe mudanças significativas ao CPC, particularmente no que se refere à eleição de foro. Antes dessa alteração, a eleição de foro era permitida de maneira mais flexível, desde que as partes concordassem, mas a nova legislação impõe restrições com base no domicílio das partes ou no local da obrigação. A lei 14.879/24 alterou o art. 63 do CPC, que passou a vigorar com a seguinte redação:

 

“Art. 63. § 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.

 

  • 5º O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício.”

 

Esta mudança legislativa se fundamenta sob justificativa de combater práticas abusivas de escolha de foro, onde uma das partes escolhe um foro aleatório para obter vantagens processuais, como evitar maior demora ou ineficiência na tramitação processual.

 

Para a relatora do projeto, deputada federal Érica Kokay (PT-DF), o texto acaba com uma brecha legal que atolava o TJ/DF de ações judiciais entre partes de outros estados. “Nós vimos que havia um acúmulo muito grande de processos de vários locais do Brasil aqui no TF/DF em função de sua capacidade de ser célere e por suas custas (mais baratas).” O TJ/DF mesmo antes da mudança legislativa, vinha reconhecendo  destaca a abusividade na escolha de foro quando não houvesse conexão relevante com o local da demanda. Nesse sentido, registre-se algumas decisões do ano de 2024:

 

“O abuso de direito processual é matéria de ordem pública e, por isso, a possibilidade de declínio da competência de ofício, ainda que antes da citação, é medida essencial para o devido exercício da jurisdição. O exercício abusivo de direito de escolha do foro viola os critérios norteadores da fixação da competência no processo civil. Por isso, a competência, ainda que relativa, está sujeita ao controle jurisdicional” (Acórdão 1863829, 07059443320248070000, relator(a): LEONARDO ROSCOE BESSA, 6ª turma Cível, data de julgamento: 15/5/24, publicado no PJe: 24/5/24. Pág.: Sem Página Cadastrada.).

 

“A escolha do foro da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios no presente caso não está relacionada ao local onde a obrigação deve ser cumprida e não guarda qualquer conexão com os fatos que fundamentam a demanda… Não é razoável, portanto, reconhecer a competência da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios para processar e julgar demandas que não têm relação com o Distrito Federal, especialmente quando há uma disposição legal que estabelece a competência no local de cumprimento da obrigação”(Acórdão 1860576, 07006015620248070000, relator(a): JOÃO EGMONT, 2ª turma Cível, data de julgamento: 8/5/24, publicado no DJE: 23/5/24. Pág.: Sem Página Cadastrada.)

 

  1. Aplicabilidade da nova lei aos processos em andamento

 

A questão da aplicabilidade da nova lei aos processos em andamento é crucial. Existe uma interpretação dominante de que a lei se aplica imediatamente, incluindo processos em curso. Porém e nos casos em que há decisão já estabilizada sobre a jurisdição? A nova regra pode ser invocada para declinar a competência de ofício?

 

Há incerteza sobre como essa aplicação se dará em casos nos quais o foro de eleição já está estabilizado. A dúvida persiste sobre se a nova legislação permitirá a revisão dessas decisões já consolidadas, ou se a perpetuação da jurisdição deverá prevalecer, mantendo a escolha original das partes. Essa incerteza destaca a complexidade da transição entre as antigas e novas normas processuais e a necessidade de uma interpretação judicial clara para garantir a segurança jurídica e evitar práticas abusivas nos processos em andamento.

 

A nosso ver, uma vez que foi mantido o art. 63, § 3º, só é possível reconhecer a abusividade antes da citação.

 

A arbitragem oferece às partes uma liberdade considerável para escolher a câmara arbitral que considerem mais adequada para resolver suas disputas, levando em conta fatores como eficiência, especialização e custos. Essa liberdade contrasta com a restrição imposta pela nova lei no âmbito judicial.

 

  1. Especialização judicial e eficiência econômica

 

A especialização dos tribunais e das câmaras judiciais é uma tendência crescente que visa aumentar a eficiência e a qualidade das decisões judiciais. Tribunais especializados são capazes de oferecer decisões mais rápidas e tecnicamente adequadas, atraindo mais negócios e gerando um ambiente jurídico mais seguro. O caso do Estado de Delaware nos Estados Unidos, conhecido por suas leis empresariais avançadas e tribunais especializados, serve como exemplo de como a especialização pode ser benéfica para o ambiente de negócios.

 

Enquanto não houver varas especializadas em todos os tribunais, as empresas vão continuar a se preocupar em eleger o foro onde eventuais litígios serão julgados com maior propriedade e conhecimento. A busca por jurisdições que ofereçam maior eficiência, especialização e custos adequados é uma prática comum no ambiente empresarial. As empresas tendem a escolher foros que garantam uma resolução de conflitos mais eficaz e que ofereçam maior segurança jurídica, fatores que são cruciais para a continuidade e sucesso de suas operações.

 

A mudança legislativa introduzida pela lei 14.879/24 vai interferir diretamente nessa problemática. Ao restringir a eleição de foro aos domicílios das partes ou ao local da obrigação, a nova lei limita a capacidade das empresas de escolherem livremente o foro que consideram mais eficiente. Isso pode impactar a maneira como as empresas planejam suas estratégias jurídicas, especialmente em setores onde a especialização judicial é crucial. A nova regulação busca evitar abusos e sobrecarga em tribunais específicos, mas também pode trazer desafios para empresas que dependem de jurisdições especializadas para a resolução de seus conflitos.

 

Conclusão

 

A alteração trazida pela lei 14.879/24 ao CPC brasileiro busca equilibrar a necessidade de eficiência processual com a proteção contra abusos na escolha de foro. Embora restrinja a liberdade das partes na eleição de foro, essa medida visa garantir um processo judicial mais justo e eficiente, coibindo práticas abusivas que sobrecarregam determinados tribunais e causam ineficiência no sistema como um todo.

 

No entanto, essa mudança legislativa vai de encontro às modificações introduzidas nas alterações recentes do Código Civil brasileiro produzidas pela promulgação da lei 13.874/19, conhecida como lei da liberdade econômica. Essa lei tinha por objetivo proporcionar mais liberdade contratual às partes contratantes e fixar limites para a intervenção do Estado nas relações privadas, a qual somente deve ocorrer de forma excepcional. Assim, a nova regulação no CPC deve ser ponderada entre a liberdade contratual e a necessidade de prevenir abusos processuais, garantindo um equilíbrio entre eficiência e garantias processuais.

 

É importante ressaltar que quanto mais intervenções estatais na liberdade de contratação, maior será a insegurança para investidores externos. A previsibilidade e estabilidade jurídica são fundamentais para atrair investimentos estrangeiros, e qualquer medida que limite a autonomia das partes contratantes pode gerar incertezas e desestimular o ambiente de negócios no país. Portanto, é essencial que as futuras regulamentações levem em consideração não apenas a eficiência processual, mas também o impacto sobre o ambiente de investimentos e a segurança jurídica como um todo.

 

Fonte: Migalhas

 

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