O anteprojeto de reforma do Código Civil de 2002 (CC/02) retirou da invisibilidade jurídica o tema da terapia gênica coligada às técnicas de reprodução humana assistida (RHA). Isso porque, consoante o inciso V do art. 1.629-D, excepciona a possibilidade de intervir sobre o genoma humano, com vista à sua modificação, desde que haja a finalidade de tratar doenças graves via diagnóstico genético pré-implantacional – DGPI (anterior a implantação do embrião no útero) ou diagnóstico pré-natal – DPN (momento em que o embrião se encontra em desenvolvimento intrauterino).1

 

Todavia, distinguir a terapia gênica das práticas de aconselhamento genético se torna premente no debate sobre governabilidade genética. Isso, pois o propósito e o impacto na estrutura do genoma humano guardam especial diferença. De um lado, o condão da terapia gênica está na intervenção direta na estrutura do DNA, afetando, consequentemente, o genoma contido na dupla hélice.2 A exemplo, menciona-se o potencial da técnica CRISPR-Cas9, responsável por atuar como uma tesoura genética capaz de inserir, recortar ou excluir qualquer gene de animais ou plantas, seja em linhagem somática ou germinativa.3

 

Por outro lado, em regra, as práticas de aconselhamento genético mediante diagnósticos, consubstanciam a possibilidade de fazer a mera leitura das características genéticas atribuíveis e, a partir disso, possibilitar a seleção do material biológico ou proceder com possíveis cuidados à gestante ou à prole. Além disso, poderá atuar em diferentes momentos: a) anteriormente a concepção dos gametas reprodutivos (diagnóstico pré-conceptivo); b) posteriormente a concepção dos gametas reprodutivos, havendo, neste momento, o embrião em estágio pré-implantacional (diagnóstico genético pré-implantacional); c) após o momento de nidação e o desenrolar do desenvolvimento intrauterino, para verificar as condições de saúde do nascituro (diagnóstico pré-natal); e d) a partir do nascimento com vida, para se atentar às possíveis doenças congênitas (diagnóstico pós-natal).4

 

Diante disso, a proposta do anteprojeto parece ter excepcionado a regra geral de vedação às práticas de intervenção no genoma humano desde que haja o único propósito de ser fundamentado em um protocolo terapêutico, também chamado de eugenia negativa pela doutrina especializada. Em contrapartida, a eugenia positiva se baseia na ideia de utilizar a biotecnologia com o propósito artesão ou de melhoramento humano. Sendo assim, lembra-se da crítica moderna do filósofo alemão Habermas no sentido de que a preocupação na atualidade repousa, sobretudo, na possibilidade de não se saber distinguir, na prática, esses dois protocolos (terapêutico x aprimoramento humano) a partir dos valores sociais, fundamentando, portanto, a chamada eugenia liberal, que merece atenção e cuidado.5

 

À frente desse cenário, ainda que pareça acertada a regra de exceção à vedação na proposta de reformulação da legislação civil, carece de debate a determinação conceitual, também em esfera jurídica, quanto ao entendimento sobre o que seriam as doenças graves. Afinal, o avanço da biotecnociência no campo da genética e da reprodução humana fundamenta o que Norberto Bobbio6 intitulou de quarta era dos direitos, ao referir-se “aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo”.

 

Ademais, a proteção do patrimônio genético encontra-se tutelado pelo legislador constituinte, no art. 225, na condição de interesse difuso, uma vez que importa a toda a coletividade ver protegida para as atuais e futuras gerações a biodiversidade. Dentro dessa percepção, o ser humano, enquanto um animal, ainda que dotado de racionalidade, deve ser abrangido nessa percepção para se proteger o patrimônio genético humano. Contudo, na própria ótica de proteção da herança genética, também merece proteção a diversidade biológica humana, cabendo a necessidade de distinguir (a) doença hereditária, (b) doença incompatível com a vida e (c) deficiências.7

 

Afinal, nesse quadro, merece distinção específica o conceito de deficiência e doenças. Isso porque a deficiência não deve ser vista como sinônimo de ausência de saúde, qualidade de vida ou incompatibilidade com a vida.  Na verdade, seguindo a própria tendência de reformulação da codificação civil, conforme os mandamentos do modelo social de deficiência, seria a pessoa com deficiência detentora de autonomia, inclusive, para gerir aspectos específicos da sua vida, ainda que demande apoio.

 

Outra reflexão que merece ser discutida, neste momento de tramitação do anteprojeto, seria a possível antinomia do inciso V, do art. 1.629-D, com o art. 25 da Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/2005).

 

Explica-se: segundo o art. 25 da Lei n. 11.105/2005 é proibido a engenharia genética em células germinativas (gametas, zigoto e embrião).8 Contudo, o anteprojeto fala que é proibido intervir no genoma, com a exceção de através da terapia gênica (sinônimo de engenharia genética) e do diagnóstico genético pré-implantacional (leitura do DNA) evitar doenças graves.

 

A tendência de usar as técnicas reprodutivas com o fim de evitar doenças graves já existia, no corpo das normas deontológicas do CFM, todavia, direcionadas para a seleção cromossômica via DGPI, isto é, fora do escopo da edição genética.9

 

Por esse motivo, a dúvida que surge seria a seguinte: o anteprojeto poderá criar um conflito entre normas, na medida em que relativiza a prática da engenharia genética em células germinativas? Isso, pois uma norma-regra encontra-se em lei específica, estando no âmbito penal, e a outra, por sua vez, no âmbito civil, no livro de família.

 

Nesse cenário, cumpre lembrar que a elaboração e a vigência da Lei de Biossegurança assentaram-se em momento próximo à conclusão do projeto genoma humano (1990-2003),10 responsável por se dedicar a decodificar quase que a totalidade dos genes que compõem a estrutura do DNA. Além do mais, o início do século XXI foi um momento de alarde na comunidade acadêmica no tocante a latente possibilidade de instrumentalização da vida humana a partir das técnicas medicamente assistidas. Neste momento histórico, também, as técnicas de edição genética disponíveis eram demoradas, demasiadamente onerosas e de difícil replicação pelos cientistas.

 

A forma mais eficaz existente no tratamento de doenças era o simples diagnóstico genético, em qualquer das fases de desenvolvimento da vida humana, que em verdade não se trata de uma técnica que intervém diretamente na estrutura do DNA, mas possibilita tão somente decifrar os genes.

 

A engenharia genética da precisão, por sua vez, através da ferramenta conhecida pelo acrônimo CRISPR-Cas9, tornou-se uma possibilidade científica somente no ano 2012, sendo provada cientificamente em 2014. Ao contrário das ferramentas disponíveis anteriormente, trata-se de metodologia inovadora por permitir intervir na estrutura do DNA de maneira rápida, pouco onerosa e de fácil replicação pelos cientistas. Ademais, a descoberta da técnica ocasionou uma verdadeira revolução no cenário da biotecnologia, ocasionando inclusive em briga, nos estados-nacionais, para o registro de sua patente consoante o impacto no mercado agrícola e de medicamentos humanos.11

 

Inclusive, as cientistas responsáveis pela descoberta do método, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, foram as responsáveis por ganharem o prêmio Nobel de química, no ano de 2020,12 pela incrível descoberta da técnica que revolucionou sem sombra de dúvidas a história da humanidade. Consoante o exposto, argumenta-se, por isso, que a técnica eficaz no tratamento de doenças surgiu em momento posterior a Lei de Biossegurança. Portanto, sequer era uma possibilidade científica à época de elaboração desta lei vigente. Por esse motivo, entende-se que esta norma merece ser revisitada à luz dos novos paradigmas em matéria de governabilidade genética.

 

Portanto, o diálogo promovido pelo anteprojeto do Código Civil nos leva a refletir sobre a atualização das potencialidades científicas não vislumbradas à época da Lei de Biossegurança, que atualmente promove a vedação absoluta à edição genética em linhagem germinativa (art. 25 da Lei de Biossegurança), não abarcando em sua proibição as células somáticas.

 

Além disso, a previsão indicada no anteprojeto suscita muitas dúvidas: as práticas da terapia gênica (a exemplo do CRISPR) e dos diagnósticos genéticos (a exemplo do DGPI ou do DPN, mencionados no anteprojeto) poderiam ser utilizadas para todos os fins, como nas doenças incompatíveis com a vida, nas doenças hereditárias e nas deficiências? Qual o sentido empreendido à finalidade terapêutica? A intervenção no patrimônio genético com base na deficiência seria ou não discriminatória? Reconhecer a deficiência como diversidade da condição humana importa em reconhecer que o patrimônio genético deve ser protegido em sua diversidade de forma isonômica? Haveria um princípio da proteção à diversidade do patrimônio genético? Em havendo, este deve ser aplicado indistintamente ou poderia ser aplicado de forma relativizada, a partir de estágios distintos de determinado patrimônio genético, por exemplo, como antes ou depois da sua fecundação ou implantação?

 

São perguntas cujas respostas são distintas em diversas doutrinas que, ao cabo, devem estar voltadas à uma construção benéfica para a humanidade.

 

Referências 

 

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.  Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

 

BRASIL. Senado Federa. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 08 mai. 2024.

 

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.230, de 20 de setembro de 2022. Adota normas e’ticas para a utilizac¸a~o de te’cnicas de reproduc¸a~o assistida – sempre em defesa do aperfeic¸oamento das pra’ticas e da observa^ncia aos princi’pios e’ticos e bioe’ticos que ajudam a trazer maior seguranc¸a e efica’cia a tratamentos e procedimentos me’dicos, tornando-se o dispositivo deontolo’gico a ser seguido pelos me’dicos brasileiros e revogando a Resoluc¸a~o CFM no 2.294, publicada no Dia’rio Oficial da Unia~o de 15 de junho de 2021, Sec¸a~o I, p. 60. Disponível aqui. Acesso em 24 abr 2024.

 

CORREA, Marilena. O admirável Projeto Genoma Humano. Physis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 277-299, 2002. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.

 

DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

 

DOUDNA, Jennifer; STERNBERG, Samuel. A crack in creation: gene editing and unthinkable power to control evolution. Boston: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2017.

 

GONÇALVES, Giulliana Augusta Rangel; PAIVA, Raquel de Melo Alves. Terapia gênica: avanços, desafios e perspectivas. Einstein (São Paulo), v. 15, p. 369-375, 2017. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.

 

HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

SOUZA, Iara Antunes de. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (Wrongful conception), nascimento indevido (Wrongful Birth) e vida indevida (Wrongful life). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014.

 

THE NOBEL PRIZE IN CHEMISTRY 2020. NobelPrize.org. Nobel Media AB, 2020. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.

 

__________

 

1 “Art. 1.629-D. As técnicas reprodutivas não podem ser utilizadas para: […] V – intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica para identificação e tratamento de doenças graves via diagnóstico pré-natal ou via diagnóstico genético pré-implantacional.” BRASIL. Senado Federa. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 08 mai. 2024.

 

2 Consultar GONÇALVES, Giulliana Augusta Rangel; PAIVA, Raquel de Melo Alves. Terapia gênica: avanços, desafios e perspectivas. Einstein (São Paulo), v. 15, p. 369-375, 2017. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.

 

3 Ver DOUDNA, Jennifer; STERNBERG, Samuel. A crack in creation: gene editing and unthinkable power to control evolution. Boston: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2017.

 

4 Sobre o tema, recomenda-se SOUZA, Iara Antunes de. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (Wrongful conception), nascimento indevido (Wrongful Birth) e vida indevida (Wrongful life). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014.

 

5 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

6 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.  Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 9.

 

7 DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

 

8 Lei de Biossegurança: “Art. 25. Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

 

9 “5. As te’cnicas de reproduc¸a~o assistida na~o podem ser aplicadas com a intenc¸a~o de selecionar o sexo (presenc¸a ou ause^ncia de cromossomo Y) ou qualquer outra caracteri’stica biolo’gica da crianc¸a, exceto para evitar doenc¸as no possi’vel descendente”. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.230, de 20 de setembro de 2022. Adota normas e’ticas para a utilizac¸a~o de te’cnicas de reproduc¸a~o assistida – sempre em defesa do aperfeic¸oamento das pra’ticas e da observa^ncia aos princi’pios e’ticos e bioe’ticos que ajudam a trazer maior seguranc¸a e efica’cia a tratamentos e procedimentos me’dicos, tornando-se o dispositivo deontolo’gico a ser seguido pelos me’dicos brasileiros e revogando a Resoluc¸a~o CFM no 2.294, publicada no Dia’rio Oficial da Unia~o de 15 de junho de 2021, Sec¸a~o I, p. 60. Disponível aqui. Acesso em 24 abr 2024.

 

10 CORREA, Marilena. O admirável Projeto Genoma Humano. Physis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 277-299, 2002. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.

 

11 Consultar DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

 

12 THE NOBEL PRIZE IN CHEMISTRY 2020. NobelPrize.org. Nobel Media AB, 2020. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.

 

Fonte: Migalhas

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