Dentre os temas abordados pela Medida Provisória nº 1.227/2024, houve uma importante alteração da delegação de competência de instrução e julgamento dos procedimentos administrativos do Imposto Territorial Rural (ITR), a saber:
“Art. 4º – A Lei nº 11.250, de 27 de dezembro de 2005, passa a vigorar com as seguintes alterações:
‘Art. 1º Para fins do disposto no art. 153, § 4º, inciso III, da Constituição Federal, a União, por intermédio da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, poderá celebrar convênios com o Distrito Federal e os Municípios que assim optarem, com vistas a delegar as atribuições de fiscalização, inclusive a de lançamento dos créditos tributários, de cobrança e de instrução e julgamento dos processos administrativos de determinação e exigência relacionados ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR, de que trata o art. 153, caput, inciso VI, da Constituição Federal, sem prejuízo da competência supletiva da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.
- 4º. Na hipótese de julgamento dos processos administrativos de determinação e exigência do ITR pelo Distrito Federal ou por Município, deverão ser observados os atos normativos e interpretativos editados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.”
Aparentemente ocorreu a tentativa de conceder alguma forma de compensação aos municípios em virtude dos efeitos da desoneração da folha de pagamento. Porém, olhar essa medida como uma forma de compensação sem se refletir nos efeitos práticos, pode se considerar apenas uma “publicidade” de mão amiga e não um auxílio efetivo aos municípios, isso porque dos 5.565 municípios do Brasil, há convênio vigente em apenas 1.418 [1] municípios.
O ITR é um imposto em que 50% da arrecadação pertence à União e os outros 50% aos municípios, conforme o inciso II, do artigo 158 da Constituição, porém, quando o município celebra o convênio de delegação de competência de fiscalização e lançamento, 100% por cento desses valores pertencem aos municípios, competência delegada pelo artigo 153, § 4º, inciso III, da Constituição .
Logo após, a Lei nº 11.250/2005 repete o texto constitucional sobre a delegação de competência de fiscalização e lançamento. A Instrução Normativa RFB nº 1.640/2016, então, disciplina o fluxo de celebração, de renovação e de denúncia de convênios do ITR e detalha os requisitos formais para adesão ao convênio.
Requisitos
Importante ressaltar que para o município poder celebrar o convênio, ele deverá, conforme o artigo 7º da Instrução Normativa RFB nº 1.640/2016, preencher cumulativamente os seguintes requisitos:
“Art. 7º […]
I – estrutura de tecnologia da informação suficiente para acessar os sistemas da RFB, que contemple equipamentos e redes de comunicação;
II – lei vigente instituidora de cargo com atribuição de lançamento de créditos tributários;
III – servidor aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos para o cargo de que trata o inciso II, em efetivo exercício; e
IV – optado pelo Domicílio Tributário Eletrônico (DTE).”
Logo após, enviada a documentação à Secretaria da Receita Federal, por meio do E-CAC do município. Caso seja aprovada a documentação — o que nem sempre ocorre no primeiro envio, conforme número de pedidos de convênios indeferidos (464 municípios) [2], o servidor nomeado deve aguardar a abertura de turma para a realização do “Curso de Formação de Servidores Municipais ou Distritais para a Fiscalização e a Cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR)”, conforme o artigo 14 da Instrução Normativa RFB nº 1.640/2016. E, somente após a conclusão do curso e envio do certificado, o município passa a receber 100% dos valores de arrecadação de ITR [3].
Aparentemente delegar a competência de instrução e julgamento poderá aumentar as receitas para compensar, em partes, as perdas oriundas com os reflexos da desoneração da folha de pagamento. Contudo, esse complemento de receitas não será tão simples.
Longo caminho
Para aqueles municípios que ainda não firmaram o convênio com a Receita Federal ou aqueles que aguardam a realização do curso de “Curso de Formação de Servidores Municipais ou Distritais para a Fiscalização e a Cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR)”, ainda há um longo caminho a ser percorrido.
Isso porque neste ano ainda não houve a abertura de turmas e, considerando os últimos anos, são duas turmas no máximo [4]. Só assim, então, haverá o repasse de 100% dos valores.
Tumulto processual
E, para aqueles locais em que já há o convênio vigente, considerando o cenário do tempo de julgamento de um procedimento administrativo fiscal municipal do início até a conclusão, os resultados não ocorrem de um mês para o outro, além de todo o tumulto processual que poderá ocorrer, visto que atualmente a segunda instância de julgamento é o Carf e nos municípios será o conselho municipal de contribuintes — ausente na maioria do municípios — ou o prefeito, o que poderá gerar maiores discussões judiciais.
Inconstitucionalidade
Outro fator que ainda carece de uma análise aprofundada é o fato de que a Medida Provisória 1.227/2024 é inconstitucional quanto aos termos de delegação de competência de instrução e julgamento do ITR. Isso porque no artigo 153, § 4º, inciso III, da Constituição há menção apenas e tão somente sobre competência de fiscalização e lançamento:
“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
[…]
VI – propriedade territorial rural;
[…]
- 4º. O imposto previsto no inciso VI do caput:
[…]
III – será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal.”
Disparidade
E se a intenção da Medida Provisória 1.227/2024 era ampliar as receitas municipais, essa não parece ter sido a mais efetiva das ações, pois em 2023 o repasse de ITR nacional foi de pouco mais de R$ 2,2 bilhões [5], enquanto, por exemplo, a arrecadação de IPTU da cidade de Curitiba, foi de R$ 906 milhões [6], no mesmo período. Por certo que não se pode comparar impostos com fatos geradores e bases de cálculos diferentes, porém, ao olhar para o repasse anual de ITR em todo o país comparado ao IPTU de uma das suas capitais, as diferenças mostram-se grandes, isto porque ambos os impostos falam de propriedades imóveis.
A baixa arrecadação do ITR também pode ser relacionada com o estímulo indireto a evasão tributária, haja vista que ele é um tributo autodeclarável, ou seja, os próprios contribuintes definem o valor do seu bem imóvel [7], aliado ao fato de que como poucos municípios celebraram o convênio de fiscalização e lançamento, portante, há pouco questionamento sobre os dados informados e a realidade das declarações.
Propostas
Nesse cenário, uma das soluções a serem avaliadas seria a revisão do ITR, com foco na ampliação da autonomia municipal, a qual deixou de ser contemplada na reforma tributária. Ou, a simplificação do processo de convênio para a municipalização do imposto, eliminando burocracias e obstáculos, permitindo que mais municípios, os principais interessados na gestão do ITR, pudessem, de fato, utilizá-lo como ferramenta de desenvolvimento local.
[1] RECEITA FEDERAL DO BRASIL. ITR Convênio – Consulta de Entes Conveniados. Disponível em: https://servicos.receita.fazenda.gov.br/Servicos/termoitr/controlador/controleConsulta.asp. Acesso em 12/06/2024
[2] Idem.
[3] Art. 16. O ente conveniado fará jus a 100% (cem por cento) do produto da arrecadação do ITR, referente aos imóveis rurais nele situados, a partir da efetivação do cadastramento dos seus servidores solicitado nos termos do art. 15, observado o disposto no parágrafo único do art. 13 do Decreto nº 6.433, de 15 de abril de 2008. (Redação dada pelo(a) Instrução Normativa RFB nº 1954, de 21 de maio de 2020)
[4] RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Encontro Nacional de Administradores Tributários. Disponível em: https://www.enat.receita.economia.gov.br/pt-br. Acesso em 17/06/2024.
[5] TESOURO TRANSPARENTE. Valor repassado de ITR em 2023. Disponível em: https://www.tesourotransparente.gov.br/temas/estados-e-municipios/transferencias-a-estados-e-municipios. Acesso em: 17/06/204.
[6] PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Serviços puxam arrecadação de Curitiba pra cima em 2023, diz prefeitura. Disponível em: https://www.curitiba.pr.leg.br/informacao/noticias/servicos-puxam-arrecadacao-de-curitiba-pra-cima-em-2023-diz-prefeitura#:~:text=Liderando%20a%20arrecada%C3%A7%C3%A3o%20do%20Munic%C3%ADpio,(R%24%20194%20milh%C3%B5es).
[7] HECK, Claudia; NISHIMURA, Fábio; ARAÚJO, Beatriz Santos. Efeito da Municipalização do Imposto Territorial Rural sobre a Arrecadação Tributária dos Municípios Brasileiros. In: Revista Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE), Rio de Janeiro, v. 51, n. 3, p. 163-186, dez. 2021.
Fonte: Conjur
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